Preservam histórias para depois conta-las em palco, expressam-se através do corpo, da sua estrutura, das imagens. Fazem-se ouvir entre os monólogos e dramaturgias, causam estranheza e esperança. São o sonho de quem sempre quis sonhar representar. São os GRIOT.
Daniel Martinho, Gio Lourenço, Matamba Joaquim e Zia Soares são os corpos negros que dão vida ao GRIOT, numa equipa onde os colaboradores são tantos, mais do que os dedos das mãos possam contar. A génese dos Griot só o é devido às pessoas que trabalham em conjunto para que as histórias possam ser contadas. O espectáculo é de todos para todos. Desde a equipa de produção, cenários, comunicação, guarda-roupa e som.
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No relógio batiam vinte e uma horas e trinta minutos. No Teatro do Bairro em Lisboa, a sala se enchera e os atores já estavam posicionados para dar início à representação de O lugar por onde a vaca passou, com adaptação e encenação de João Fiadeiro. Passavam cinco minutos depois da hora marcada, quando a BANTUMEN se sentou na plateia. Silêncio… que ia começar a peça de teatro.

O espectador tem a sensação de já ter entrado numa peça em andamento que parece não ter fim. Numa tragédia mítica e grega que faz parte da trilogia de Ésquilo, composta pelas tragédias Prometeu acorrentado, Prometeu libertado e Prometeu portador do fogo.
À volta do palco os rostos eram diversificados, brancos e negros, portugueses, brasileiros e alguns camones (termo popular para identificar turistas que se expressem em inglês, principalmente norte-americanos ou ingleses) que fazem parte dessa Lisboa eleita “Melhor Cidade Destino” e “Melhor Destino City Break”a nível mundial, pela World Travel Awards.
Passaram-se dez anos desde o início do Teatro GRIOT. O público é maior e dentro dele existe um multiculturalismo interessante, mas nem sempre foi assim. “Há mais negros nos espetáculos. Desde que o trabalho se foi repercutindo e que se foi tornando mais visível, esse público negro também se sentiu atraído a assistir aos nossos espetáculos”, explicou Zia Soares à BANTUMEN, nos bastidores do Teatro do Bairro.
Paralelamente aos espetáculos, a companhia de teatro faz intervenções junto das comunidades, maioritariamente negras, como oficinas de expressão dramática. Essas iniciativas acabam por criar uma maior ligação com pessoas que, antes, possivelmente não equacionavam ou não teriam a possibilidade de interagirem com o mundo teatral. Além de ir até essas comunidades, o GRIOT também acaba por criar uma vontade da comunidade “vir ao teatro e assistir ao que fazemos. E também, o próprio teatro lisboeta ganha outro público. Primeiro vêm para nos ver e depois ganham gosto pelo teatro em geral. Acaba por ser uma capitalização do público para o Teatro no geral”, continuou Zia.
O Teatro GRIOT é composto por corpos negros, desde a sua génese. Mas os primeiros olhos que os viram atuar em palco eram de não negros, realidade que tem vindo a mudar ao longo dos anos. O público negro começa agora a estar mais presente nos espectáculos devido ao trabalho constante da companhia, “porque não desistimos, porque há uma coerência no nosso trabalho e isso fez-nos ganhar a confiança deles, que começam agora a vir mais”, sublinhou Joaquim Matamba.
Existe uma empatia de pele, é inegável. E o grupo trabalha com isso, com o corpo que é dotado de memória, com as temáticas que são próximas a esse público. No entanto, é preciso frisar que “o Teatro Griot não são espetáculos apenas para negros, queremos fazer espetáculos para todos”.

A observação que têm do palco para fora e, tendo em conta o trabalho que fazem junto e com a comunidade, permite-lhes ter um olhar mais atento sobre o que se passa ao seu redor e como influenciam a juventude, mesmo que não seja expressamente intencional. “O que acontece é que quando vejo uma menina negra a olhar para mim, que sou atriz, que estou num palco, isso acaba por ser inspirador e abrir outro caminho. Quando nos conhecem e conhecem o nosso trabalho, de alguma forma, abrem-se possibilidades de sonhos que, se calhar, antes da nossa presença estavam mais longínquos [de se concretizarem].”
E não são apenas possíveis novos atores e atrizes que influenciam. O trabalho que desenvolvem fora e dentro do teatro, acaba por ser um campo aberto de possibilidades para potenciais novos dramaturgos, cenógrafos, designers de som, figurantes, entre outros.
São a única companhia de teatro negro em Portugal que conseguiu ultrapassar a marca dos dez anos. Não se consideram apenas uma companhia mas sim um grupo, uma associação “com o objetivo de educar culturalmente o público. Não é fácil porque as comunidades ou as pessoas, que não têm a possibilidade de vir ao teatro, nunca presenciaram que as coisas podem acontecer. E ao verem-nos, pode-se criar um pouco de esperança. Isso só faz com que venham ter mais connosco e nós com eles”, manifestou Daniel Martinho.

As barreiras vão-se quebrando ao passo do tempo e as pessoas vão acreditando cada vez mais no ofício desta companhia,”que na verdade só quer desmistificar mentes, porque o negro não se trata apenas de fazer papéis de empregado, motorista ou ladrão. Estamos a fazer com que nos aceitem e acreditem em nós. Estamos a fazer com que as coisas mudem, a lutar para tal. Nós existimos e queremos que os outros acreditem que é possível alimentarem os sonhos. Estamos a marcar presença e a dizer que existimos e temos capacidades para tal”, acrescenta.
Segundo Zia, o que a companhia tem feito também é questionar os “estereótipos estabelecidos de uma auto-proclamada normalidade branca”. E essa questão é feita através dos seus lugares de fala e gesto, o palco, onde fazem e dizem tudo. Sublinha ainda que, “o contributo feito é no palco, para a mudança. A nossa presença no palco, torna-se importante quando as pessoas se sentam na plateia e o seus olhares que estão tão habituados a ver determinados corpos e a ouvir determinados vozes, vêem e sentem algo diferente. O que o Teatro GRIOT faz é uma diferença para o resto do panorama.”
“Essa desconstrução e descolonização da imagem é o início para uma mudança, de como vemos, ouvimos, ou de quem pode dizer o quê, quem pode ouvir o quê. Passados dezanos é-nos permitido pensar sobre isso.”
Desde o iníco que decidiram que, o palco seria onde tudo aconteceria e onde pudessem falar de tudo sem que a cor fosse importante ou o protagonista dos espetáculos. O objetivo era e é apenas resolver a cena como ator. Mas com o passar dos anos, a companhia acabou por ter uma responsabilidade de descolonizar e desconstruir as imagens estereotipadas. A ideia de ver negros em cima do palco a representarem papéis desconsiderados pela sociedade ou confinados à dança ou à comédia acabou, pelo menos para o Teatro GRIOT.
O combate ao racismo e ao preconceito “pode ser uma consequência do que fazemos. Porque é uma luta que tem de se ter, mas é de todos, é necessária. Não estamos aqui a lutar diretamente contra ou a lutar por inclusões, estamos a existir, somos pessoas normais daqui e que fazemos tudo aqui. O teatro tem uma função de intervenção, as nossas comunicações são feitas de acordo com o que nos vai na alma. Os textos são escolhidos com base nos assuntos que colmatam as nossas preocupações e situações do quaotidiano”, afirmou Daniel.

Existem estudos publicados por investidores portugueses que concluem que, apesar de Portugal ter mais de 160 mil africanos a viver – em 2007-, raros são os que em alcançam lugares de sucesso. Na sua maioria, ocupam lugares em profissões de baixa qualificação, devido essencialmente a problemas sociais e ao insucesso escolar.
Em 2002, outro estudo revelava que a maioria dos jovens de origem africana considera-se discriminada no acesso ao consumo, mas sobretudo na forma como são tratados nos estabelecimentos de saúde, nas escolas, nos tribunais, entre outros. E é essa a realidade que está a sofrer uma mudança. De dentro. E a cultura é um dos, senão o maior, catalizadores dessa abertura de mentes.
“Existem poucos negros ainda no teatro português, existem poucos funcionários negros nos bancos, nos departamentos estatais, nas várias áreas de estudo e porquê? É uma pergunta que tem de se fazer ao país. Tendo em conta o número tão grande de comunidades negras em Portugal. Como é que possível que os meus filhos de 14 anos e 18 anos nunca tenham tido um professor negro. Eu tenho 47 anos e só tive uma. Os meus filhos em 2019 nunca tiveram. Por quê que nao há mais negros nos sítios, essa falta de representatividade é um problema que o país tem de encarar de frente e debater”, disse Zia.

A solução, segundo Zia, passa pela “recolha de dados étnicos raciais. Enquanto não nos depararmos com estatísticas com números, não podemos começar a criar medidas efetivas para que isso seja alterado, enquanto não se criar essa base de dados e a seguir criar leis de oportunidade para que as pessoas possam estar em pé de igualdade para as oportunidades que se criam onde for, é muito difícil. Enquanto o próprio país negar que essas pessoas existem e que estas pessoas têm os mesmo direitos que o cidadão português [branco] deve ter, torna-se mais complicado.”
Matamba Joaquim sublinha ainda que, “em certo ponto Portugal olha para os negros como sendo africanos, não fazendo parte de um Portugal ou uma Europa. É altura de verem os negros como portugueses também, que nasceram aqui.”
Nas eleições legislativas de 6 de outubro, pela primeira vez os portugueses elegeram três deputadas afrodescendentes, Joacine Katar Moreira, do Livre, Romualda Fernandes, do PS, e Beatriz Dias, do BE, todas elas ativistas dos direitos humanos e antirracismo. O que mudou a forma como os africanos olham para o panorama governamental, mas ainda é motivo de espanto para muitos, tendo em conta todo o feedback visto nas redes sociais. “Agora temos representatividade na Assembleia, mas tinha de ser normal, e não um espanto. Temos de ter mais pretos no cinema, na televisão, no teatro, nas faculades, na Assembleia, nos bancos, em tudo.”

À medida que Lisboa foi-se tornando numa das cidades mais visitadas do mundo, em 36ª posição, no Global Destination Cities Index, anualmente realizado pela Mastercard, o consumo da multiculturalidade que existe dentro da cidade tem crescido, principalmente das comunidades africanas, desde a gastronomia à música. Mas será que a “Nova Lisboa“, que canta Dino D’Santiago, é real?
“Estamos a caminhar para lá, mas essa Nova Lisboa que é vendida ao turista não é real na efetividade onde as coisas acontecem. É uma Lisboa africana capitalista, a Lisboa africana não existe enquanto não reconhecerem os negros e negras enquanto cidadãos portugueses e europeus. Enquanto não se “encaixotar” de onde tu és tem muita coisa que tem de ser repensada”, respondem.
O Teatro GRIOT não quer ser rotulado ou visto como exótico, apenas quer que as pessoas se questionem e reconfigurem a sua maneira de pensar e ver. Porque “um tigre não proclama a sua tigritude”, dizia Sowinka, citado por Matamba Joaquim. “Porque nós apenas existimos, nós somos. Somos os corpos pretos, essa voz, essa estrutura, vêem algo diferente e precisam de um tempo para assimilar.” É certo que o número de espectadores tem aumentado de peça em peça. O facto de serem atores negros causa curiosidade, mas o mérito é também do trabalho constante que tem sido feito ao longo destes dez anos.”
Para Matamba, Zia, Daniel e Gio, o trabalho está apenas a começar. Ainda sentem que falta muito por conquistar e que nada está feito. “Falta tudo, falta criarmos novas dramaturgias, não há na Europa nenhuma dramaturgia clássica que nos abarque. Como não encontramos textos feitos para nós, temos de ser nós a escrever, falta-nos muita coisa, falta fazer chegar a nossa mensagem. Mas nestes dez anos, com orgulho, ainda distribuimos folhetos e colamos cartazes, é algo que tem de ser feito. Ainda temos muito caminho pela frente, nada é garantido.”
Wilds Gomes
Sou um tipo fora do vulgar, tal e qual o meu nome. Vivo num caos organizado entre o Ethos, Pathos e Logos – coisas que aprendi no curso de Comunicação e Jornalismo.
Do Calulu de São Tomé a Cachupa de Cabo-Verde, tenho as raízes lusófonas bem vincadas. Sou tudo e um pouco, e de tudo escrevo, afinal tudo é possível quando se escreve.