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A Memória Colectiva no Antigamente de Ondjaki

Ondjaki | ©BANTUMEN

-Estórias de antigamente é assim que já foram há muito tempo?
-Sim, filho.
-Então antigamente é um tempo, Avó?
-Antigamente é um lugar.
-Um lugar assim longe?
-Um lugar assim dentro.

“Será que somos os únicos que não nos lembramos da infância como o Ondjaki?”

Na passada sexta-feira (24), estive na estreia da segunda edição do Cinéfilos & Literatus, um projecto artístico-cultural que consiste na projecção de filmes adaptados de obras literárias nacionais e internacionais, seguido de um debate em torno do mesmo. O filme de fevereiro foi “AvóDezavove e o Segredo do Soviético” baseado no romance de Ondjaki.

Durante o debate, um dos participantes perguntou a audiência porquê que só Ondjaki se lembra do antigamente assim, com gritos azuis, explosões bonitas e estrelas calientes.

Depois de ver o filme, terminei de ler o livro e fiquei com um gostinho agridoce de saudade e nostalgia dessas “memórias distorcidas para inventar estórias (…) em busca de outros flancos (…) do mesmo sonho,” como escreve Ondjaki à Ana Paula Tavares, numa carta.

O antigamente de Ondjaki me remete à memória colectiva de um passado presente em Luanda, onde tudo pode mesmo “acontecer de repentemente,” mas principalmente, às memórias inventadas e lembradas da minha infância. A Praia Do Bispo deixou em mim a saudade de um tempo vivido em sonhos e brincadeiras, no meu pequeno antigamente no BairroDaLage, no Lubango.

O meu antigamente também é na casa da avó. É ficar na rua até tarde e só sair quando o vento soprar um bocadinho mais forte. É levar a vizinha para casa e comer os rebuçados importados da colecção de doces da minha tia. É tomar banho de mangueira no quintal e andar descalça e de cuecas nos dias de Sol.

O meu antigamente é ainda casa da avó, só nós as duas, agora num apartamento. É brincar com os tacos de madeira do chão e fazer mobília para as bonecas. É a música interrompida no rádio para ninguém gravar. É comer a sopa de feijão com pedaços grossos de repolho e cenoura , semi-iluminada pela lamparina em cima da lata de Nido quando não há energia.

O meu antigamente também tem gargalhadas redondas de brincadeiras inventadas no pátio do Colégio Sol, tem banhos de caneca com água fria, e tem descer a Leba para acampar no Namibe.

A recolha e a representação da memória colectiva na voz das crianças que Ondjaki escreve, pode até ser de um tempo que não vivi, mas trazem com elas as lembranças do que foi, a saudade do que poderia ser e mais do que tudo, a angústia do que talvez não seja nunca mais.

“AvóDezanove e o Segredo do Soviético” é um livro para se ler em família, para lembrar daquele camarada que morreu, só assim, na casa dele atingido por um raio num dia de chuva, para lembrar de todos os médicos e professores cubanos da vida, e também do camarada que lutou com um leão na guerra e agora ouve só com uma orelha.

A prosa poética de Ondjaki é como uma música de embalar que nos devolve aos sonhos de criança e nos faz inventar o antigamente que depois de crescermos, nos esquecemos de lembrar.

Ondjaki traz-nos em forma de estória o que na Europa se chama de realismo mágico mas, em Angola, é apenas a realidade. 

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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