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A experiência diaspórica em África

África
📷: Nils Nedel

Imigrantes e os seus filhos transitam entre dois mundos: a cultura, a língua e as tradições da sua terra natal e as do seu país de adoção. A questão de como nos identificamos e como especificamente nos denominamos nacionalmente sempre foi complicada. E atualmente, estamos numa outra vaga cultural de influência Africana na sociedade Portuguesa, que tem um impacto direto na forma como os filhos de imigrantes navegam nas suas identidades. 

Então, inegavelmente, para aqueles vistos como membros da diáspora, como eu, as crises de identidade agravam-se à medida que crescemos, particularmente numa sociedade da qual parece inatingível fazer parte. Ainda assim, para outros, como testemunhámos ao longo de 2019 com o projeto Ganense “O Ano da Volta” (a marca dos 400 anos desde que os primeiros africanos escravizados chegaram a Jamestown, Virgínia), as coisas deram uma volta de 180°. Muitos diaspóricos reuniram-se no Gana em 2019 para comemorar a sua herança e colher os frutos da identidade e ancestralidade que pareciam inexistentes durante toda as suas vidas, até então. Consequentemente, eu também estava lá. E testemunhei o poder de união de duas comunidades que pareciam iguais, mas tinham caminhos de vida e histórias totalmente diferentes a entrelaça-las: nativos e diaspóricos. E apesar de nunca ter estado na Guiné-Bissau, nessa altura, o que muitos viam como um acto de “traição”, eu também me senti parte dum momento maior ao experienciar um sentimento de pertença que ansiei toda a minha vida: estar entre pessoas que se pareciam exatamente comigo e não temer como a sociedade me vê.

No geral, crescer em Lisboa quando criança, no início dos anos 2000, deu-me uma perspectiva extremamente estreita e demoníaca de África. Através da mídia, especialmente os pequenos anúncios da UNICEF, que angariavam doações, eu assimilei as noções de que qualquer coisa relacionada a África e as suas comunidades era equivalente a pobreza, crianças famintas e países devastados pela guerra. Portanto, como muitos de nós na diáspora, a falta de espaços negros, bem como a disseminação de conhecimentos necessários e historicamente diversos, impulsionados pelo nosso sistema educacional e pelos nossos pais, causaram danos adicionais em como nos víamos a nós mesmos e os nossos ancestrais. Enquanto me encontrava perplexa com a quantidade de crianças carecas, sujas e descalças, para além da nossa pele escurecida, eu não tinha vontade de ser comparada ou ligada a eles.

À medida que esta ingénua e pobre interpretação das nações Africanas desfilava pela mídia, descobri que outros filhos de imigrantes tinham exatamente a mesma necessidade de se afirmar como Portugueses de nascimento e distanciar-se de tudo o que fosse africano. Insinuar o contrário significaria inerentemente que poderíamos ser associados a noções de barbárie, falta de inteligência, sujeira e todos os estereótipos negativos que testemunhámos ao longo dos anos. No entanto, isso também alimentou uma ideologia onde ser Português era carregar um senso de sofisticação, um status de superioridade e o poder de menosprezar aqueles que, por comparação, nasceram em África e talvez simplesmente lutassem para se adaptar aos modos de vida ocidentais.

Mas, inevitavelmente, quando chegou o momento e finalmente decidi embarcar num avião e conhecer a Guiné-Bissau, fui recebida com muito desdém e desprezo por parte da minha mãe e de outros, que garantiram que “Bissau não tem nada para ti, tu és Portuguesa” ou “Tu não vais durar muito com esses maneirismos ocidentais”. Sem reconhecer o quão violentas eram essas palavras, elas excluíam-me socialmente e rebatizavam-me com a mesma identidade que me foi negada todos esses anos, em solo Português. Não era justo desacreditar ou negar-me essa experiência tendo eu vivido sob uma casca de assimilação cultural ao longo dos anos. Além disso, eles também se esqueceram que eu já tinha voado para Accra e prometi a mim mesma que, independentemente do que acontecesse, África era exatamente onde eu pertencia e a minha nacionalidade de nascimento não tinha nada a ver com isso.

Assim, a Guiné-Bissau ia fazer parte dessa promessa, como uma verdadeira reintrodução às minhas raízes, e obter o passaporte Guineense facilitou-me certamente a vida para me afirmar como a africana com que sempre sonhei. Em 2022, ao pousar no Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, lembro-me das minhas narinas e da minha pele inundadas pelo ar úmido, que ingenuamente confundi com o calor dum motor. Mesmo assim, o episódio mais relevante foi relembrar-me que naquela realidade, assim como no Gana, não havia discriminação racial ou olhares duvidosos no aeroporto e que os cargos de poder ou respeito também eram ocupados por pessoas que se pareciam comigo. 

Dos penteados cobertos de missangas e dos corpos lindamente beijados pelo sol aos cheiros poderosos de comida fresca e árvores de cabaceira régias, Bissau chegou ao meu coração e ao meu estômago numa questão de dias, desmistificando todas as epistemologias ocidentais que fui forçada a digerir desde pequena. A miríade de experiências que tive o prazer de viver não era nada como eu tinha visto antes e a capacidade de poder navegar no mesmo lugar que os meus antepassados, simplesmente aqueceu o meu coração também. De Buba a Quinhamel e de Cacheu a Gabu, as paisagens pitorescas da Guiné têm o poder de arrastar-nos no tempo, num abrir e fechar de olhos. Embora não tenha conseguido ir a nenhuma das nossas 88 ilhas, porque a família veio mesmo em primeiro lugar, tenho 100% de certeza, até hoje, que elas me deixariam um sentimento de conforto e paz ainda maior.

Por outro lado, as diferenças culturais também pesaram na minha mente quando me via a questionar as minhas roupas e até as minhas palavras, muitas vezes impulsionadas pela política de respeito e religião. Além disso, a romantização da imigração e o desprezo ao racismo e outros traumas coloniais, que experienciei como criança da diáspora, fizeram-me entrar em conflito com outras pessoas e entender que todos nós tínhamos uma noção diferente de privilégio, pobreza e sucesso. Assim, embora as suas infraestruturas e desenvolvimentos tecnológicos não pudessem ser comparados com países por onde passei, como o Senegal, Cabo Verde, Marrocos ou mesmo o Gana, na minha ótica Bissau não era nada menos. A sua capacidade de derrotar o colonialismo e as feridas da colonialidade é muito mais valiosa no meu coração, levando orações melódicas de patriotismo através de mim e uma vontade de querer fazer parte de tudo isso para sempre.

Porém, também compreendi a importância da linguagem e o seu poder de conectar-nos não apenas aos locais, mas também às nossas famílias e tradições. Ser a única pessoa que não conseguia comunicar em Pepel (língua nativa da minha tribo), na nossa casa, magoou-me mais do que eu pensava. O meu orgulho ao vaguear por Bissau, cantando aos sete ventos que tinha aprendido crioulo e pretendia dominá-lo, sem ser ridicularizada pelos meus priminhos, parecia agora uma tentativa fracassada de me encaixar. Foi então que tive que lembrar-me de que nunca seria capaz de encaixar-me, mas sim de adaptar-me, porque no final do dia, o meu swing ocidental era tão alto quanto eles vêm e não importava o quanto tentasse, eu nunca seria capaz de negá-lo.

Não obstante, fiquei com a marca desta viagem na minha alma e o que antes parecia o desconhecido, finalmente tornou-se um lar para mim. Simultaneamente, assim como Chimamanda Ngozi Adichie descreveu, em 2009 TED Talk, ‘O perigo de uma única história‘, a Guiné-Bissau estava agora transcendendo, muito além dos meus sonhos mais loucos, e superava os meus equívocos ocidentais duma nação africana empobrecida, condenada a um rótulo ocidental e colonial dum narco-estado. Eu aprendi que o meu berço é um lugar onde a riqueza, o sol e a felicidade te banham todos os dias, mas a sua mente precisa de ser curada. E será também para sempre a requintada pintura a óleo com a paisagem exuberante nos meus olhos, assim como todas as nações Africanas que ainda irei visitar.

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