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Amílcar Cabral, a memória que ainda hoje planta o futuro

“Memórias e Reflexões” é um livro de 1947 escrito pelo professor primário cabo-verdiano Juvenal Lopes Cabral (1889-1951), pai de Luís Cabral (1931-2009) – que mais tarde se tornaria o primeiro presidente da Guiné-Bissau – e de Amílcar Cabral (1924-1973), principal nome da luta independentista contra Portugal colonial e fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o PAIGC. 

Elaborado no contexto de uma das piores crises de seca e fome no arquipélago, o registro é um exemplo das diversas reivindicações e ações práticas encabeçadas por Juvenal ao longo da sua vida. Mobilizações que ajudam a entender a trajetória intelectual e política do seu primogénito, figura intelectual e política tida como uma das maiores referências de líderes do século XX.

“Tudo indica que Juvenal teve um papel importante na formação de Amílcar. Durante a sua viagem à Guiné, ele acumula todo o tipo de informação etnográfica, e parte dela é transmitida ao filho. Esses acontecimentos e ações políticas certamente marcaram o caráter de Amílcar”, escreve o cubano Oscar Oramas Oliva, 87 anos, na biografia de sua autoria Amílcar Cabral, um precursor da independência africana, publicado em 1998.

Essa é provavelmente uma das razões pelas quais, entre 1945 e 1950, o jovem Amílcar, aos 21 anos, foi estudar agronomia em Portugal, como bolsista do departamento de engenharia agrícola do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Afetado pelo problema da terra em Cabo Verde, o estudante passa a centrar o seu foco em pesquisas detalhadas acerca da situação rural para buscar soluções para a fome. Por um lado, atribui grande importância à terra para extrair os alimentos necessários à população e, por outro, também para resolver a questão do emprego. Abordagem que se mostrará constante nos momentos mais complexos da guerra de libertação.

“O pensamento de Cabral se desenvolve e passamos a conhecê-lo pelos seus escritos, poesias, leituras e as coisas que aprecia. Ele está no quinto ano da faculdade e quer mostrar aos cabo-verdianos como são as suas ilhas. Explicar-lhes que Cabo Verde era um ponto de passagem para os navios portugueses e um ponto de partida para o transporte de escravos para as Américas. Fazê-los saber que no século XIX essas mesmas ilhas estavam cobertas de florestas e que agora o abate indiscriminado de árvores as converteu em terras áridas, como se fossem uma extensão do deserto do Saara”, aponta Oliva, mestre em História da Arte e o primeiro embaixador de Cuba em Angola. É ainda autor de vários livros sobre o processo de descolonização em África e sobre personalidades políticas do continente berço.

Para Cabral, também conhecido pelo pseudónimo de Abel Djassi, é a partir dos anos 1950 que o engajamento com a ideia da luta anticolonial se dá como consciência crítica e de maneira mais persistente. Resultado também do seu encontro com os estudantes e futuros líderes dos movimentos das independências africanas, como os angolanos Agostinho Neto (1922-1979) e Viriato Clemente da Cruz (1928-1973), do Movimento Popular de Libertação de Angola; e os moçambicanos Eduardo Mondlane (1920-1969) e Marcelino dos Santos (1929-2020), da Frente de Libertação de Moçambique.

Cabral tinha as características de um verdadeiro líder. Intuição, raciocínio e pensamento articulado. Não se deixava abater pelas circunstâncias e não se esquivava dos problemas

Oscar Oramas Oliva, escritor

Juntos, desenvolvem as suas respetivas formações políticas e ideológicas no âmbito académico, e também passam a participar ativamente de organizações democráticas. Exímio interlocutor e comunicador, Cabral é enriquecido igualmente por inúmeras leituras, em português e francês, de pensadores como o cubano Nicolas Guillén, o chileno Pablo Neruda, o brasileiro Jorge Amado, o francês Paul Nizan, o estadunidense Langston Hughes, o senegalês Léopold Sédar Senghor e os martinicanos Frantz Fanon e Aimé Césaire, poeta e um dos criadores da teoria da “negritude”, inspirador conceito para a emancipação dos países africanos na década de 1960 e para a reafirmação das suas identidades nacionais.

Segundo Oliva, Cabral aspirava uma libertação definitiva do espírito, a eliminação de todo atavismo cultural. O seu desejo era de que o homem africano absorvesse conhecimento universal para, ao transformar-se a si próprio, transformar a sociedade.

Em carta escrita a 8 de janeiro de 1949, já anunciava: Vivo a vida intensamente e isso permitiu experiências que me deram uma direção determinada, um caminho que devo seguir, custe o que custar pessoalmente. Esta é a minha razão de estar neste mundo. “Ele tem apenas 27 anos quando escreve essas linhas, mas já acreditava numa missão a cumprir. Tomou consciência de seu destino e está pronto para correr todos os riscos que tal projeto acarreta. Uma consciência aguda, forjada no contato com uma sociedade hostil, de constantes humilhações do colonialismo, da cólera contida nos oprimidos, do ódio de quem não esquece a dominação”, pontua.

Ainda segundo o biógrafo, a personalidade de Cabral era composta por muitas facetas. Homem jovial, bem-humorado, sempre pontual em seus compromissos. Bom orador e de espírito independente, pesava cuidadosamente cada palavra a ser pronunciada. Redigia os próprios discursos e os principais documentos do PAIGC. Regularmente de sumbia na cabeça (gorro utilizado por homens africanos, sobretudo na Guiné Bissau, Gâmbia e Senegal, feito de malha de lã ou algodão de duas cores) e fumante de Marlboro, tinha um sorriso cordial, conhecia todos os seus colaboradores e os chamava pelo primeiro nome. Mantinha a simplicidade de quem estava acostumado a grandes feitos. 

“Cabral tinha as características de um verdadeiro líder. Intuição, raciocínio e pensamento articulado. Não se deixava abater pelas circunstâncias e não se esquivava dos problemas. Procurava tirar forças de si mesmo para enfrentar fatos e perigos com confiança. Tinha um senso de história e cultura. Era ousado na luta e clemente com o adversário. E rejeitava tenazmente qualquer pessimismo”, diz Oliva no capítulo oito “A personalidade de Amílcar Cabral – Suas ideias políticas”.

Na juventude, demonstrava interesse por futebol. O seu clube do coração era o Sport Lisboa e Benfica. Sua primeira esposa, Maria Helena Rodrigues (1927-2005), revolucionária portuguesa e fiel colaboradora durante os anos universitários, confirmaria, mais tarde, que Cabral era exímio a executar cantos diretos e que teria sido até convidado a ir treinar no clube português.

Para além do protagonismo político e da ação vanguardista que marcaram a história das independências de Guiné-Bissau e de Cabo Verde, em 1974 e 1975, respetivamente, as múltiplas faces do homem e suas outras vidas ganham atenção em “Amílcar, uma exposição”, organizada pela Comissão Executiva da Estrutura de Missão para as Comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974 e no contexto dos 50 anos do assassinato do líder guineense, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, por membros do seu próprio partido e com contornos com diferentes versões. Algumas apontam a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado português) como principal responsável por esse assassinato.

De acordo com o comissário científico da mostra, o historiador português José Neves, 45 anos, o conjunto de 50 fotos, cartazes, pinturas, filmes, músicas, documentos da vida profissional e algumas das cartas trocadas com a companheira Maria Helena cumpre a função de apresentar aos visitantes a vida do homenageado a partir da perspectiva de artistas, músicos, pintores, ativistas e pesquisadores de distintas nacionalidades.

Como exemplo, o trabalho da fotojornalista italiana Bruna Polimeni, responsável por registrar imagens de Cabral a partir de 1969. “O interesse fotográfico de Polimeni pela figura de Cabral somava-se ao do cinema. A importância da câmera de filmar era estimada pelo próprio PAIGC, que enviou para estudarem em Cuba aqueles que viriam a tornar-se os primeiros cineastas guineenses, casos de Flora Gomes e de Sana Na N’Hada”, diz trecho do catálogo de natureza biográfica “Cabral Ka Mori” (“Cabral não morreu”, 16 páginas, 2023), idealizado por Neves e a investigadora Leonor Pires Martins. A imagem de capa é de autoria da profissional.

No caso de Portugal, a luta anticolonial e as independências africanas ocorrem e emergem para a Revolução do 25 de Abril. Então, desse ponto de vista, acho que é interessante haver – de alguma maneira – uma comemoração nacional por parte de libertistas e de movimentos que lutaram contra a própria eleição portuguesa no momento em que ela se via a si própria como Império

José Neves, historiador

“Mais do que a trajetória histórica do líder de um movimento anticolonial, é essa figura persistir tanto no presente e de formas tão diversas: em banda desenhada [“A Turma do Cabralinho e o Búzio Mágico”, Coralie Tavares da Silva] ou como motivo para ser musicado [“Evocação de Amílcar Cabral no folclore Cabo Verdiano”]. Esse caráter quase fantasmagórico, como alguém que morreu mas que, ao mesmo tempo, continua a existir de inúmeras formas, desde o merchandising aos movimentos do Black Lives Matters, nos Estados Unidos, e na Marxa Kabral, em Cabo Verde”, pontua Neves.

De 2016 a 2019, o investigador do Instituto de História Contemporânea e professor auxiliar na Universidade Nova de Lisboa já havia participado com outros colegas de um projeto que se chamou “Amílcar Cabral, da História Política às Políticas da Memória”, iniciativa que se propunha a analisar a articulação entre as ideias de Amílcar e a sua recepção no decurso das guerras coloniais que levaram ao fim do Império Português.

“No caso Português, o regime democrático é indissociável das lutas anticoloniais. Quando olhamos para a história das democracias Francesa ou da Britânica, vemos que nesses países já existiam regimes democráticos que foram e continuaram a ser colonialistas. No caso de Portugal, a luta anticolonial e as independências africanas ocorrem e emergem para a Revolução do 25 de Abril. Então, desse ponto de vista, acho que é interessante haver – de alguma maneira – uma comemoração nacional por parte de libertistas e de movimentos que lutaram contra a própria eleição portuguesa no momento em que ela se via a si própria como Império”, diz em entrevista à BANTUMEN.

“Em momentos fundamentalmente críticos no sentido de se expressar uma identidade nacional muito questionada, nesse sentido, acho interessante que justamente a comemoração nacional trabalhe ‘contra’, digamos assim, àquilo que durante muito tempo teve o Império Português como o seu centro. E, nesse caso, é uma comemoração nacional às avessas, em parte”, completa. Neves também é autor do artigo científico “Ideologia, Ciência e Povo em Amílcar Cabral” (2017) e dos livros “1998 – o Ano da Expo” (Tinta-da-china, 2019) e “Comunismo e Nacionalismo em Portugal” (Tinta-da-china, 2008).

Prevista para ser lançada em 2024, ano do centenário de nascimento de Cabral, a cinebiografia Amílcar, do espanhol Miguel Eek, 41 anos, trará entrevistas com amigos, familiares e colegas de Cabral em uma tentativa de refletir sobre quais circunstâncias e fatos implicaram o falecimento do ícone anti-imperialista.

“Durante os últimos cinco anos, Amílcar tem assombrado a minha mente. O documentário tornou-se um projeto romântico sobre o qual tenho pensado e repensado, tendo-me dedicado a ele em total liberdade criativa. Nesta cinebiografia, vejo a sua vida e pensamentos como uma forma de explorar a vulnerabilidade do ser humano e a necessidade de estar atento. Atravessamos tempos difíceis e agitados em que a intolerância prolifera na Europa e fora dela. Hoje, a vida de Cabral lembra-nos que os direitos de justiça social adquiridos pelos povos de nossa civilização não são eternos, mas devem ser recuperados por cada geração e que o pior perigo que corremos é o esquecimento”, diz o realizador em comunicado no site.

No teatro, em 2022, o ator são-tomense Ângelo Torres levou ao palco o monólogo “Amílcar Geração”, encenado e escrito por Guilherme Mendonça. Na música, o poema “Regresso”, escrito por Cabral nos anos 1940, foi interpretado nas vozes da cantora brasileira Alcione, no álbum “Almas e Corações”, de 1983; pela cabo-verdiana Tété Alhinho em “Sentires”, de 1998; e por Cesária Évora e Caetano Veloso, no álbum São Vicente di longe, de 2001.

Para o sociólogo guineense Miguel de Barros, 42 anos, em participação no programa especial da publicação DW sobre os 50 anos da morte de Cabral, exibido a 20 de janeiro, quando presenciamos expressões por parte das artes urbanas, do rap, da literatura, do cinema ou do teatro, é exatamente esse movimento cultural que possibilita não apenas o resgate da imagem e do lugar de Amílcar, mas também proporciona a atualização daquilo que é o seu pensamento.

“Quando os rappers fazem um sample, misturando o discurso vivo de Cabral com as suas narrativas para questionar o papel do próprio Estado, isso é de uma inovação enorme. Mas tem um impacto estrutural na forma como as novas gerações que não conheceram o processo de luta, que não viveram o advento da libertação política, mas que hoje trazem Cabral para as variadas lutas: na questão da emancipação das mulheres, da luta contra o racismo, na preservação do meio ambiente, da economia criativa e mais solidária e na questão geoestratégica. Então, esse movimento também tem permitido o diálogo entre as diásporas negras africanas no mundo, com as suas origens e facilitando a criação da autoestima. E, nesse campo, Cabral acaba por ser um ícone, um mensageiro, um elemento que produz esperança e mobiliza os espíritos para as lutas que são necessárias nos contextos de hoje”.


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