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“Casa Guilhermina”, uma casa também angolana com certeza

Ana Moura

O ano de 2022 foi marcado pelo regresso de uma das artistas mais faladas da língua portuguesa, Ana Moura. Casa Guilhermina é o espaço seguro que a fadista em desconstrução criou para uma sonoridade que transcende o género que lhe deu fama. Um álbum que vive da sua voz, possante, grave, e com a textura granulosa que sempre a caracterizou, mas que percorre paisagens distintas. Vai pelas margens do Tejo acima, de Lisboa ao Ribatejo; vai até à barra do Kwanza, Atlântico abaixo, de onde sobe o Mussulo até à Ilha de Luanda. Neste álbum há fado, claro, mas também fandango, malhão, e, de forma mais surpreendente, muita kizomba e uns apontamentos de semba. O resultado, aclamado, muito deve à plasticidade da maneira de cantar fado, que tem um pé na Europa, mas muito deve ao Norte de África, e à interpretação notável da cantora portuguesa.

Meritoriamente, o disco foi celebrado nos media portugueses como um dos pontos altos da música do país. A crítica não se coibiu de elevar o semba e de até aceitar a kizomba, agora sem vergonhas e sem risco de ser associado a algo brega. Ana Moura levou estes géneros da música popular negra onde, antes, os Buraka Som Sistema haviam levado o kuduro — e não nos podemos esquecer do privilégio que a sua condição, branca e europeia, carrega. Até alguns cronistas racistas, com a falta de vergonha de sempre, não deixaram de clamar que a kizomba também lhes pertencia, também era muito portuguesa, fazendo o exercício lusotropicalista básico do costume. Faltou-lhes, porventura, cantar a letra da música “Conquistador” dos DaVinci seguido de um “Angola é nossa” para ganharem a medalha na modalidade dos 100 anos retaguarda. Curioso, que não reclamaram a kizomba para si quando esta se começou a fazer ouvir pelo YouTube, através de CDs pirata, ou em aulas de dança e a galgar léguas pelo hemisfério norte dentro, da Alemanha aos Estados Unidos. Mas isso são outros 500 (anos de colonialismo).

📷: Pedro Pires

Na verdade, o que a estes senhores faltou foi o contexto, tanto da história mestiça da cultura portuguesa, como da “herança negra do fado”, conforme nos contou em entrevista a própria Ana Moura. Faltou-lhes perguntar sobre que cuidados teve a intérprete quando construiu Casa Guilhermina, movida por uma intenção de “devolver a África” o que esta deu ao fado e à cultura popular portuguesa. Vamos, por isso, ao contexto antes de passarmos à entrevista.

Não é a primeira vez que o Semba chega a Lisboa. Os N’Gola Ritmos, já desfalcados de Liceu Vieira Dias e Domingos Van Dunem, enviados pela PIDE para a prisão do Tarrafal, apresentaram-se na então “metrópole” para impressionar os “Portugueses de Primeira” (como constava dos bilhetes de identidade do Estado Novo) com a versão adaptada ao formato canção da sonoridade mwangolé. Esta modernidade africana chamava-se semba e foi apresentada pelo conjunto uma primeira vez em Lisboa, em 1965, altura em que este já era a banda residente do Festival da Canção de Luanda. Um nome incontornável da vibrante cena musical moderna de Luanda, portanto.

Cresci a dançar música angolana, semba. Sempre fez parte do meu universo

Ana Moura

Também a kizomba não é nova. Paulo Flores mudou-se muito jovem de Luanda para Lisboa, e foi de lá, movido pelo fascínio que nutria pela coleção de música do seu pai, que começou a cantar. Quando se deslocou, ainda adolescente, a Luanda para gravar, foi apadrinhado por Eduardo Paim, por muitos considerado o pai da kizomba, o visionário que sedimentou as influências zouk na música mwangolé. Com um pé em África e outro na Europa, Flores cantou a nova cena angolana para negros e brancos, sendo, ainda assim, celebrado sempre mais em Angola do que em Portugal. Ainda hoje, agora veterano do semba e rodeado dos mais importantes artistas do som luandino (Joãozinho Morgado, epitetado rei dos batuques, Boto Trindade dos lendários Kiezos, Yuri da Cunha e colaborador de Carlitos Vieira Dias, filho do kota Liceu), Flores ainda não goza da atenção que o seu legado merece.

Ana Moura sabe isto, e o cuidado com que abordou a entrevista da BANTUMEN, a par da sensibilidade com que conduziu a produção deste disco e operou a desconstrução do rotina de fadista a que se sentia presa, demonstraram isso mesmo. Essa sensibilidade foi formada no seio da sua família que, tipicamente portuguesa, viveu de uma forma particular a Guerra Colonial e o seu desfecho. Filha de um português de Amarante e de uma professora natural do Lubango, que se haviam conhecido em Moçâmedes, depois do seu pai se mudar para Angola aos 11 anos, a desfadista só pisou Angola já quando era artista feita, mas reconhecia-lhe o som desde tenra idade. “Eu cresci num ambiente muito musical e onde se ouvia muita música angolana. Cresci a dançar música angolana, semba. Sempre fez parte do meu universo.”

A história de Casa Guilhermina é, por isso, a história de uma família que também tem raízes em África. É a história de uma casa que tinha na figura matriarcal, a avó Guilhermina, uma alegria que também vem de um porto seguro (que quer partilhar, mas lá iremos). É o cubico de Ana Moura, que se redescobriu depois de uma fase particularmente difícil da sua vida. Finda uma digressão, a rotina de artista enviou-a para mais uma sessão de estúdio que sentiu ser, porventura, desinspirada; isto na sequência de ter perdido uma amiga muito próxima, sua prima, um pilar que também assentava muito na alegria de comungarem da cultura africana.

📷: Pedro Pires

Na nossa conversa, os episódios que ligavam esta cultura à do seu convívio com a sua melhor amiga sucederam-se, desde memórias de dançar semba com a sua prima para os avós Guilhermina (a matriarca da “Casa”) e Francisco verem, às bandas sonoras de viagens em conjunto, invariavelmente compostas por kizomba. O cubico que é o álbum, é, por isso mesmo, um regresso, uma redescoberta e uma homenagem. “Eu queria fazer uma música que refletisse isso e que também refletisse esta herança que nos unia e que era tão forte na nossa amizade. Eu comecei por escrever uma letra e uma música que eu sentia que era um semba e fui buscar músicos para a tocar. Pedi ajuda ao Paulo Flores, que trouxe o Kiari, o seu filho, para tocar a música com a sua direção.” Estavam dados os primeiros passos para levar o fado ao seu lado mais negro, em direção a um sul sonoro.

Interrompidas as sessões difíceis em estúdio, Ana Moura partiu também em descoberta do som que vibra em Lisboa. A sua conclusão não será diferente da nossa: África faz-se ouvir cada vez mais, ora nos seus descendentes, ora nos que inspira, e está muitíssimo bem representada. “Comecei a sair e conhecer alguns produtores e DJs, como o Pedro da Linha, o Pedro Máfama [da Enchufada de Branko, produtor de Buraka Som Sistema], e outros produtores, da Príncipe Discos, por exemplo. Deixaram-me completamente apaixonada.” Também menciona incontáveis da batida lisboeta, como Nídia e Marfox.

Com a pandemia da COVID19 a chegar e impôr o confinamento, a intérprete convidou os da Linha e Máfama para se juntarem a si e a Conan Osiris em sua casa e, numa espécie de residência artística descontraída, criarem algo em conjunto. O resultado é o que se pode ouvir: um pouco de Angola em semba tradicional, interpretado com a direção de Paulo Flores; uns toques da contemporaneidade lisboeta e cada vez menos branca, com a produção de Pedro da Linha e Pedro Máfama; e várias incursões sobre a tradição portuguesa em forma de fandangos, de malhões e outros que tais, influências que havia recolhido graças ao “saltitar” de sua mãe, professora sem base certa na sua profissão. O elo de ligação é sempre o mesmo: a sua voz, de fadista, com uma elasticidade melódica proveniente das raízes árabes do género, e uma desenvoltura na interpretação que é de invejar. Ana Moura é, de facto, uma belíssima cantora, que não haja dúvidas disso.

É esta ligação, de resto, que Ana Moura quer explorar e que pauta as suas intenções por detrás do álbum: “Essa ideia reconciliadora da origem negra do fado é também uma [algo] que me agrada. A origem [que não é] só do Norte de África, mas [também supostamente] (…) do lundum. Há registos, gravuras e textos escritos por jornalistas que descrevem o fado naquela altura [finais do século XIX] como sendo o fado batido, que era de bater com as ancas. Aliás, no século XIX, o fado ainda era dançado. Mas foi-se… branqueando! Se este disco servir como conciliador dessa herança eu fico muito feliz.”

📷: Gonçalo Afonso

Serve esta intenção de base para correr alguns riscos, como o de juntar uma música de Amália Rodrigues sobre África, “Calunga”, a “Mona Ki Ngi Xiça” do “Angola 72”, disco histórico de Bonga. Na sequência, surge em interlúdio outra música que também havia sido interpretada por Barceló de Carvalho (e por outros grandes nomes da canção angolana, como Ruy Mingas), composta pelo artista e herói da resistência independentista angolana Liceu Vieira Dias, reconhecida figura fundadora do semba. Portanto, corre o risco de juntar um símbolo do estado colonialista a um ícone que se lhe opôs; a ocupação e a sua resistência. “A junção destas músicas é a interpretação que eu faço da história da minha mãe, da minha avó e das minhas tias [em Angola]. É um bom ponto de partida para aquela reconciliação e para se voltar a falar sobre este assunto da origem negra do fado, que está de facto muito escondida.” Moura rodeou-se de Paulo Flores na produção e recorreu a Betinho Feijó, guitarrista que acompanha Bonga, para interpretar estas peças num kimbundu que lhe é familiar e não nos soa nada mal.

O universo que está a desenhar à volta do disco também permite levantar-se a questão da marginalidade do fado, anulada pelo Estado Novo por vós da instrumentalização de Amália e a sua consequente projeção nacional e internacional — os famosos três Fs:Fátima, futebol e fado. Na sua origem, fora uma expressão ligada às classes operária e pobre da cidade de Lisboa, cantando letras de resistência e oposição à exploração e ao poder. Foi numa tentativa de refletir sobre estes assuntos que Ana Moura dispensou um concerto de apresentação em prol de uma conversa, moderada por Jesualdo Lopes, fundador do coletivo queer e negro The Blacker The Berry. “Fiz um evento de apresentação e chamei pessoas para falarem sobre o disco. No final, abri o microfone à plateia porque eu queria mesmo que as pessoas questionassem o álbum e que isso servisse para levantar várias questões. Ali também quis dar plataforma ao espaço queer. Sem querer ter muita pretensão, mas é minha intenção que este disco dê palco a muitas vozes [diferentes].”

Todas estas questões vão ficando de fora das discussões sobre Casa Guilhermina, o cubico seguro que Ana Moura parece querer erigir, ainda que deixe a sua mensagem ser cautelosamente passada pela “narrativa estética do álbum”. “Eu prefiro ficar do lado das pessoas que fazem as coisas do que do lado que atribui o nome. A semântica às vezes pode ter diferentes interpretações,” contou-nos sobre a forma como tem evitado epitetar esta sua nova fase. 

Há um privilégio em ser-se Ana Moura, fadista, branca, de que os pioneiros e as inovadoras que lhe precederam não beneficiaram, algo que não lhe é alheio: “Eu confesso que tenho as duas coisas. Eu sou uma pessoa querida pelo público português em geral. As pessoas brancas ouvem mais uma coisa [cantada] por mim do que por outra pessoa negra.” Contudo, Casa Guilhermina não caiu da mesma maneira no goto de todos os que o ouviram. A começar pela equipa da própria intérprete, que lhe descrevia a pluralidade de sonoridades como sendo “três discos diferentes”, e mais tarde, quando começou a ser revelado, por pessoas que lhe acompanham o trabalho há mais tempo. “Quando lancei o single ”Jacarandá”, o primeiro single com uma sonoridade próxima da kizomba, recebi algum algum hate de pessoas que estavam habituadas a ouvir-me noutro registo. Também tenho recebido muitas mensagens de pessoas a dizer-me para voltar a fazer algo semelhante ao que fiz antes, como se isto fosse quase uma brincadeira…”

O cubico está construído, a Casa Guilhermina abriu as suas portas e ao sermos convidados a lá entrar conhecemos esta nova faceta de Ana Moura, que é na verdade bem antiga. Também vemos uma nova porta para a lusofonia que era sistematicamente excluída dos locais aonde Ana Moura a tem conseguido levar. Já todos vimos esta história antes, mas importa vermos também a intenção e o cuidado com que a sua autora se lançou nesta aventura antes de partirmos para o julgamento. “Sendo eu filha de pai português e de mãe angolana, tendo eu estas duas heranças, interessa-me fazer esta ponte, pôr as pessoas a pensar e reconciliar o fado com a sua herança negra.”

Resta-nos esperar que quem faz de porteiro destes locais, sejam eles salas de concertos, festivais, jornais, sites, ou rádios, esteja disposto a fazer este caminho, a pensar com Ana Moura, e a, finalmente, dar as mesmas oportunidades a quem não partilha do mesmo privilégio. Há já demasiado tempo que os artistas negros esperam por isso.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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