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Transito em muitos lugares e sempre me faço essa pergunta, principalmente no que diz respeito à ocupação dos espaços majoritariamente brancos. No livro Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, da psiquiatra, psicanalista e escritora Neusa Souza Santos, a autora, empregando metodologias próprias das práticas psicanalíticas, desenvolve logo no início um percurso que direciona nossa atenção para o processo de formação das identidades negras, apresentando-nos o ideal de ego centrado no que foi estabelecido como padrão – o branco.
Se há um padrão, um farol a ser seguido, onde está o negro? O ideal de brancura ainda nos direciona. Vacilantes, tentamos descobrir o ser negro, talvez sem compreender completamente o que isso significa, e, mesmo bem preparados intelectualmente, seguimos reproduzindo o ideal de ego branco. A fissura em nossa identidade é tão profunda que continuamos sujeitos percorrendo uma frágil construção, e uma ampla compreensão sobre a questão racial ainda se encontra com vazios a serem preenchidos.
O “mimimi” (sim, a ironia é necessária) que geramos há séculos sobre a questão racial já é conhecido por muitos – alguns compreendem de forma aprofundada; outros, de maneira superficial, mas ainda assim conhecido. O caso Floyd acelerou e massificou o debate sobre raça, reapresentando a existência do genocídio do negro no mundo. No entanto, o tokenismo continua a nos catapultar para uma fenda temporal que nos mantém trancafiados na ilusão de progresso e não temos estado atentos, muitas vezes, à amplitude necessária à discussão.
A questão racial, principalmente na ocupação dos diferentes postos de trabalho, já não é sobre o reconhecimento de nossas habilidades, competências e protagonismos; é sobre o branco (estrategicamente no gênero masculino) e a transformação de sua consciência, comportamento e cultura. “Aliado” já se tornou uma palavra insuficiente para o que precisamos, e é justamente nesse universo branco, de aliados e não aliados, que deve ocorrer uma mudança radical.
É preciso ir à raiz das questões, considerando inicialmente que não há sujeitos universais. O eu e o outro, somos muitos! Sendo muitos, teremos, portanto, muitas verdades, múltiplas histórias, múltiplas dissonâncias. É nesse contexto da multiplicidade do próprio ser que não cabem mais aqueles modelos hierárquicos que subalternizam e desumanizam determinados sujeitos.
O caso mais recente, envolvendo os dirigentes de uma instituição global, não é e nem será um ponto de interrupção dos modos violentos das relações que distanciam negros e brancos, assim também como o silêncio daquelas pessoas que vivenciam tais violências de forma cotidiana não será descontinuado. Existe, ao contrário, um ciclo vicioso que, como mencionei no início, nos mantém aprisionados nas mesmas posições e com a falsa sensação de mudanças.
Asad Haider, em Armadilha da Identidade – raça e classe nos dias de hoje (2019), uma obra essencial para o contexto atual, relata logo no início sua experiência em 2001, durante o ataque às Torres Gêmeas. Haider compartilha seu estranhamento diante da falta de percepção das pessoas ao seu redor em relação às múltiplas camadas de identidade que ele carregava. De um lado, estavam os estadunidenses, atordoados e construindo inimigos; do outro, ele, com referências de sua própria história, mas sem compreender totalmente o que significava assumir uma identidade paquistanesa. Afinal, seus ancestrais eram do Paquistão, mas ele, nascido na Pensilvânia, nunca se sentira totalmente ligado a essa identidade ou demais outras.
"Minha identidade se tornou uma questão de segurança nacional. Mas como eu poderia responder a esse cenário? Deveria afirmar orgulhosamente uma identidade paquistanesa fixa, uma que nunca pareceu se ajustar direito, que pertencia a um lugar do outro lado do mundo? Ou deveria assimilar o mundo de branquidade à minha volta, mesmo que ele fosse racista e provinciano e nunca tivesse realmente me acolhido?"
Asad Haider – 2019
Ao refletir sobre essas armadilhas, Haider lança pontos fundamentais sobre raça e a formação de identidades, fios que deveríamos puxar ao pensarmos na constituição de espaços seguros e em como confrontar as realidades que nos expulsam. Para ele, olhar para a questão dissociada do sentido de poder político ao povo, do capitalismo, do neoliberalismo, é observar apenas parte das relações sociais, e é neste sentido que este texto se direciona: é necessário observar a amplitude do ser social na realidade atual, como também é importante olhar as interrelações possíveis entre as nossas múltiplas identidades. É, portanto, necessário confrontar abertamente mais do que simplesmente aceitar a posição a partir de uma identidade fixa, que, no fim, nos garante um estar momentâneo. Negligenciar, por exemplo, a necessidade da impostação de uma voz em tons mais altos, no momento que exige nitidez e precisão no discurso e na ação, é permitir que o sujeito branco privilegiado se mantenha em uma posição de neutralidade e distanciamento das violências que ele próprio produz. Confrontar é também apontar, sem receio de ser posto fora, pois fora já estamos, os erros cometidos por aqueles que têm o poder. Contudo, tal confronto não se faz de maneira solitária, pois há um poder que é maior do qualquer esforço realizado individualmente e ele não está fixo somente na raça, ainda que ela seja instrumento de consolidação de tais forças.
O confronto deve ser aberto e coletivo!
O controle do Estado e a submissão promovida por diversas instituições privadas nos afastam dos confrontos necessários, enfraquecendo a disputa política coletiva e ampliando o foco nos desejos individuais. Esse afastamento reflete uma estratégia de adoecimento coletivo, que nos impede de transitar entre o “eu” e o “nós”. Isolados e exaustos, tornamo-nos reféns de uma felicidade momentânea, centrada em gozos individuais. Desta forma, o pacto que acolhe apenas o indivíduo, e não a coletividade, se torna uma estratégia perfeita para nos adoecer. Adoecidos, tornamo-nos reféns de uma felicidade baseada apenas em gozos momentâneos - e assim voltamos ao Tornar-se negro do início: o ideal de ego tem muito mais espaço do que o próprio ego. Com o ideal ocupando tanto espaço, falta lugar para a verdadeira satisfação do ego – essencial para nosso bem-estar e segurança psicológica, que dependem de uma integração saudável do “eu” no coletivo.
O exemplo das mobilizações feitas pela comunidade luso-africana em Lisboa nos últimos dias ilustra a importância dos confrontos no coletivo. "Nu Sta Djuntu, Nu Sta Forti" (Estamos juntos, estamos fortes) foi a palavra de ordem nas manifestações pela morte de Odair Muniz, provocada pela PSP (Polícia de Segurança Pública), em outubro, na Amadora, bairro daquela cidade. Em casos de violência policial ou institucional, agir no coletivo é uma estratégia de segurança para o indivíduo – e não podemos nos afastar dessa estratégia.
Ele se constrói na responsabilidade e na ação direta da branquitude em confrontar e abandonar seu domínio. Também significa que o branco deve desaprender, sair da posição de neutralidade e trabalhar, de fato, pela desconstrução do sistema que o privilegia. Esse movimento é radical porque exige que o branco reveja seu papel – não mais como aliado, mas como agente transformador da própria cultura, comportamento e estruturas.
O espaço seguro se cria quando a mudança não é apenas sobre nós, negros, mas sobre como brancos enfrentam suas próprias barreiras e se predispõem a abandonar sua herança maldita. Se nós nos alojamos no ideal de brancura, o branco se alojou no ideal de centralidade e universalidade. Ele é o sujeito neutro e hegemônico, aquele que determina o padrão e a norma. Pensadores como Frantz Fanon, Stuart Hall e Grada Kilomba descrevem como esse ideal de ego pode se manifestar por meio de mecanismos de dominação e negação, onde a construção de uma identidade branca é formada pela dissociação da "branquitude" de qualquer característica que remeta ao "outro" racializado. Esse ideal de ego do sujeito branco envolve a universalização, em que o sujeito se considera o padrão ou norma, o que leva a ver outras culturas e identidades como derivativas ou exóticas. A branquitude é frequentemente tratada como uma não-identidade, pois o sujeito branco se enxerga apenas como "humano" ou "neutro", e essa invisibilidade preserva sua posição de privilégio, impedindo que a branquitude seja questionada como construção racial. E é nesse lugar que reside o perigo sobre identidades serem vistas como “identitarismos”, pois é no ser branco que reside a ideia central de identidades supremacistas. Há ainda outros pontos, entre eles um distanciamento e uma negação, uma vez que o sujeito branco frequentemente minimiza o impacto histórico e social da supremacia branca e do colonialismo, tratando esses eventos como questões do passado ou relacionadas a outros grupos. Além disso, reforça-se a imagem de um indivíduo meritocrático que acredita alcançar o sucesso exclusivamente por mérito próprio, ignorando as vantagens estruturais e o privilégio de acesso à educação, à riqueza e a outras formas de capital social e econômico. É, portanto, necessário promover rupturas com toda e qualquer ideia que nos condiciona aos mesmos lugares. Apesar de nada disso ser novidade, a sociedade brancocêntrica persiste nos mesmos modos de atuação, repetindo modelos ancestrais que violam a humanidade do outro.
A questão racial é, acima de tudo, uma questão política. Sendo política, ela envolve a composição social por classe, as múltiplas identidades dos sujeitos e aqueles que se esquivam das responsabilidades de suas próprias escolhas. Se o branco, no seu conceito de branquitude, optou por hierarquizar, dividir, distanciar-se do outro e, em última instância, matar, ele deve ser visto como o inimigo existencial que é, e responsável pela radicalização necessária. Ao se recusar a criar um equilíbrio entre o ideal de ego e o ego real, ele também não mudará sua visão sobre o extermínio, seja ele subjetivo ou físico, do outro. A segurança coletiva começa quando reconhecemos nossa interdependência e agimos pela justiça e dignidade de todos. Se há recusa, há morte!
Hoje não temos espaços seguros, mas temos meios reais de constituí-los, e isso começa por nos entendermos no coletivo que somos.
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