BANTUMEN na Gulbenkian

22 de Janeiro de 2025
BANTUMEN na Gulbenkian
Looking Both Ways das Esquinas do Olhar, Lisboa, 2005 ©Fundação Calouste Gulbenkian

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Em criança e adolescente, além da natural ligação à música (em casa, os meus pais acumulavam VHS, vinis e cassetes, sobretudo de música cabo-verdiana, angolana e congolesa), arte nunca foi uma palavra que me revelasse proximidade. Ir a uma exposição ou a algum tipo de evento cultural também nunca foi uma possibilidade imaginada, nem por mim, nem pelos meus pais, cujo tempo era escravo do trabalho servil e cujos parcos rendimentos tinham destinos estritamente voltados à sobrevivência.


Vivi em Portugal até aos 22 anos e, até então, não me recordo de ter tido a possibilidade de sequer imaginar que visitar uma exposição poderia ocupar o meu tempo livre ou proporcionar-me novas possibilidades de imaginário. Além, claro, das exposições em que tinha participado nas aulas de Educação Visual e Tecnológica, no ensino secundário. A Arte sempre surgiu no meu consciente e inconsciente como algo distante da minha percepção, tanto individual como social. Na escola, falar de Arte era falar de Monetvan Gogh e companhia, o que lhe conferia automaticamente um estatuto de inacessibilidade. Até porque, para poder admirar as suas obras, seria necessário viajar.


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Agenda cultural

Saí de Portugal pela primeira vez aos 22 anos, altura em que já trabalhava e podia dar-me ao luxo de pensar em viajar. Nesse ano, 2007, entrei pela primeira vez num museu: o Louvre.

É curioso como a falta de imaginário e de consciência sobre possibilidades/oportunidades guia, de forma indelével, as nossas experiências sociais e culturais. Sempre tive noção desse lugar inatingível em que a Arte se situava para mim, e lembro-me perfeitamente de quando passei pela primeira vez pelos portões da Fundação Calouste Gulbenkian, em 2005. Por acaso, na altura, estava patente a Looking Both Ways, uma exposição itinerante do Museum for African Art, de Nova Iorque, centrada na arte contemporânea da diáspora africana.


Em 2015, já com 30 anos, com o Eddie Pipocas, lancei-me no desenvolvimento da BANTUMEN, que surgiu para criar um espaço onde pudesse dar palco a notícias e histórias sobre a comunidade afrodescendente que se expressa em português, longe das perspectivas enviesadas e limitadoras habituais dos grandes meios de comunicação tradicionais. A Cultura esteve desde sempre no epicentro dessa iniciativa, sendo que é através dela que acreditamos profundamente ser possível mudar mentalidades, por meio do conhecimento e da empatia em relação àqueles denominados “os outros”.


Arrancamos logo com uma longa reportagem sobre o Little Africa Paris, um guia turístico sobre a arte, moda e empreendedorismo com origens africanas presentes na capital francesa. A fundadora, Jacquiline Ngo Mpii, guiou-nos pela Beauté Congo, Congo Kitoko (Fundação Cartier), uma audaciosa exposição coletiva que retratava quase 90 anos (1926-2015) de arte contemporânea congolesa, entre pintura, fotografia, instalações e banda desenhada. Foi ali que descobri a magia artística de Chéri Samba, mestre da pintura popular, com obras exibidas pela primeira vez em 1978. A crueza e o arrojo de cada pertinente crítica social e política, naquela época e hoje, fizeram-me, pela primeira vez, contemplar e refletir sobre a Arte, no campo das artes plásticas, como um vetor de consciência social e de reflexão crítica.


Lembro-me, como se fosse hoje, de pensar que deveria ter tido acesso a esse tipo de exposição artística em miúda. Mas como? A Linha de Sintra sempre foi o limite da imaginação, e ir a Lisboa só acontecia em comitiva familiar, tal qual evento – ainda tenho registos daquela que imagino ser a minha primeira vez na Praça dos Restauradores, com uns 11 anos, talvez –, para no máximo ver as montras, os barcos a sair do Terreiro do Paço, comer um gelado e voltar para casa.

BANTUMEN na Gulbenkian

Primeira edição da feira AKAA, Paris, 2015 ©BANTUMEN

Entretanto, também tivemos a oportunidade de fazer a cobertura da primeira edição da AKAA (Also Known As Africa), feira dedicada à arte contemporânea africana, por acaso também em Paris; promovemos FRAGMentes, em 2016, em Lisboa, a nossa primeira exposição, com fotografias de Indi Nunez e ilustrações de Piera Moreau, numa primeira parceria de muitas com a curadora Ivanova Araújo; e, além de todas as entrevistas e reportagens que temos realizado no âmbito das artes afrocentradas, nas suas mais variadas disciplinas, realizámos também o MIA (Mês da Identidade Africana), com uma exposição no seu epicentro.


Agora pergunto: numa altura em que a Internet ainda não era uma opção, se o conhecimento e a vontade não me fossem incutidos pela família ou pela escola, enquanto jovem adulta, como poderia imaginar que poderia transpor os portões de espaços como a Fundação Calouste Gulbenkian?


Valeu-me, aos 30 anos, Chéri Samba para despertar a curiosidade e o desejo de saber mais – e de dar mais a conhecer àqueles que, como eu, não imaginavam que também podem imaginar.


Hoje, graças à facilidade que a Internet nos trouxe, permitimo-nos aliviar a ânsia de ocupar, criar e visibilizar espaços e imaginários. Por isso, nos próximos meses, a BANTUMEN aceitou um convite da Fundação Calouste Gulbenkian – a miúda que um dia fui piscou-me o olho e disse: “quem diria?” – sem qualquer hesitação.


Vamos por lá ocupar as nossas próprias histórias e possibilidades artísticas, através dos artistas que lá vão passar, para as transmitirmos à comunidade, com a nossa essência e perspectivas imbuídas de descentralização, periferia, negritude e provocações.

Este movimento é um alerta, um chamado à comunidade, que está convidada a ocupar este e outros espaços cujas portas, até então, estavam abstratamente empenadas pelo classicismo. Hoje, através do Centro de Arte Moderna, ali está um espaço que, como o próprio se identifica, “pretende desbloquear o poder transformador da arte de modo a promover a transformação individual e social”.


Refletir, considerar, reconsiderar, integrar e expandir são os exercícios que nos propomos fazer, através de artigos, entrevistas e reportagens, pelo menos três vezes por mês, neste espaço, nos próximos meses.


Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

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