PUBLICIDADE

BantuLoja

Cerveja, uma história negra e diaspórica: Parte II - Parte no todo

15 de Junho de 2024
Cerveja, uma história negra e diaspórica: Parte II - Parte no todo

Partilhar

Produções cervejeiras, às vezes bem regionais, de pequena produção, são espaços para a criatividade – seja em Minas Gerais, onde há cervejas como a Serafina, uma APA (American Pale Ale) nascida em 2016, pensada e produzida por uma mulher negra, como homenagem a outra mulher negra; ou a Montclair Beer fundada em New Jersey pelo casal de negros americanos Leo Sawadogo e Denise Ford Sawadogo, além das também citadas na parte I deste artigo: Fina Uwineza e Apiwe Nxusani-Mawela, proprietárias de cervejarias em Ruanda e África do Sul, respectivamente. A produção também movimenta o cenário à volta da cultura cervejeira e cria paneleiros (homebrewers), cervejarias ciganas (produção por locação), mestres e mestras cervejeiras, sommeliers, pessoas que usam dos vários saberes para o desenvolvimento de pesquisas, testagem de sabores. Hobbies, paixões e negócios!


Para contar histórias como a de Cinara Gomes, criadora da Serafina e outras mulheres negras do mundo cervejeiro, ou história como da Cervejaria Implicantes, tida como primeira cervejaria de negros brasileiros, voltarei alguns anos na história desta terra já chamada de Pindorama, lugar onde indígenas, africanos e europeus construíram o nosso gosto pela cerveja. É certo que algumas são repetidamente contadas, mas outras nem tanto.



Mapa do Brasil Holandês no século XVII, por P.M. Netscher, Haia 1853


Terra de Pindorama, Brasil Holandês e a nação de muitos idiomas  

O Brasil tem uma história contada em fragmentos. Há relatos sobre as primeiras produções de cerveja em conexão com a colonização holandesa em Pernambuco do século XVII. Contudo, no texto anterior citamos o cauim, conhecido como “cerveja da terra”, adaptado pelo português do tupi: ca’o-y, água bêbada, parte integrante da cultura dos povos indígenas de beber preparados fermentados, antes mesmo da chegada dos portugueses, práticas essas entrelaçadas aos hábitos dos povos originários da África contados na parte I deste texto.


O cauim, como era conhecida a cerveja dos grupos Tupi-Guarani, era feito à base de mandioca (doce ou amarga) ou milho, podendo receber ingredientes extras, como mel ou frutas, para aumentar os teores de açúcar e, por consequência, de álcool. A arqueologia dos fermentados: a etílica história dos Tupi-Guarani – Revista da USP 2015.


O modo de produção indígena, vinculado às culturas de celebração, deram lugar ao modo de produção dos países europeus, que, aos poucos, iam invadindo a terra de  Pindorama. São os portugueses e os jesuítas os responsáveis por fazer arrefecer a prática de cauinagem dos povos indígenas, apagando-a da nossa própria história. Você deve estar se perguntando: acho que já ouvi este nome? Sim, Cauim é uma marca usada pela grande indústria de cerveja para dar nome a um de seus produtos. Aqui, entendemos a supressão dos costumes e a industrialização das culturas, e aos poucos vamos compreendendo uma ausência histórica da presença de outras contribuições para a história da cerveja no Brasil.


Para traçarmos o tempo cronológico da cerveja no Brasil é necessário também nos atermos aos comportamentos sociais e econômicos de cada época. 


Em 1637, chegaram por aqui o conde alemão Johann Moritz von Nassau-Siegen, mais conhecido como Maurício de Nassau, e o mestre cervejeiro Dircx Dicx, que era filho dos donos da ‘t Scheepje, cervejaria holandesa da época, e já havia trabalhado na Halve Maen, em Haarlem. Em suas bagagens, trouxeram a parafernália que deu origem à primeira cervejaria do Brasil. Na Nova Amsterdã (hoje Nova Iorque), a primeira cervejaria do Novo Mundo já havia sido criada por Adrian Block e Hans Christian. Em outubro de 1640, Nassau e Dicx teriam aberto o empreendimento “brasileiro”, na casa chamada “La Fontaine”, na região hoje conhecida como Bairro das Graças, na Zona Norte do Recife. 


Sem relatos de sua existência após 1654, ano de saída dos holandeses do Brasil, o negócio parece não ter dado muito certo. Cartas datadas de 1650 revelam que os holandeses não se assentaram como os portugueses aos costumes da terra – dessa forma entende-se que não fizeram como as cervejeiras dos Estados Unidos, que se adaptaram usando ingredientes da terra, além de uma extensa produção de açúcar que promoviam uma monocultura e a consequente produção de cachaça. Fato curioso que diferencia as experiências brasileiras e o ocorrido na África, Europa e nos Estados Unidos, é que aqui a presença feminina na produção não avançou para além das mulheres indígenas do cauim. Ainda que as mulheres tenham perdido espaço na produção cervejeira europeia a partir de 1700, sessenta anos antes, no Brasil, elas não estão relacionadas como integrantes do processo do empreendimento dos holandeses. Entretanto, é importante salientar que a vinda dos holandeses se deu através das Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que mantinham um intenso comércio de pessoas escravizadas com o Caribe, Brasil, América do Norte e também partes da África Ocidental, esta última com habilidade de fermentação cervejeira de milênios. Tatiana Rotolo e Eduardo Marcusso nos contam que a presença dos holandeses foi marcada “pela exploração extensiva da monocultura, pela exploração do trabalho humano, e por condições degradantes dos habitantes da região. A cervejaria no Recife deve ser entendida como um fruto deste processo, em que as inovações urbanas foram construídas em meio a uma situação mais caótica que idílica”.  A presença da mão de obra escravizada era a realidade da época. Dessa forma, ainda que não tenham sido encontrados registros históricos, a contribuição das populações africanas e diaspóricas na cultura cervejeira brasileira não pode ser descartada. Nos EUA, Peter Hemings (1770-aproximadamente em 1834), escravizado da família Jefferson (sim, família de Thomas Jefferson), foi o mestre cervejeiro da Monticello, a casa desenhada pelo terceiro presidente dos EUA e principal autor da declaração de independência do país. A história pode ser encontrada no site da Fundação Monticello.




Hiato

A Imperial Fábrica de Cerveja Nacional (Bohemia), de Henrique Leiden, fundada no Rio de Janeiro em 1848 e transferida para Petrópolis em 1853; a Companhia Antarctica Paulista e a Manufactura de Cerveja Brahma Villiger e Companhia, sendo as duas do ano 1888, são as referências oficiais de início da indústria da cerveja no Brasil. O processo industrial está documentado pelas próprias cervejarias ou, de acordo com Sérgio de Paula Santos (2004), por mídias pagas à época. Contudo, após a experiência da cervejaria de Dicx e Nassau, no intervalo entre 1654 e 1848, o que temos é uma possível produção artesanal local e um histórico de contrabando, visto que os portos brasileiros ficaram fechados por mais um século e meio para navios estrangeiros. Somente em 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa e o gosto de D. João VI por cervejas inglesas, criou-se uma circulação de cerveja aqui. Foi o hábito da coroa, de assimilação da cultura inglesa, que trouxe ao país um princípio de cultura cervejeira, ainda restrita aos portugueses com recursos; também foram os incentivos da coroa que promoveram a criação de pequenas cervejarias, abertas por europeus ou seus descendentes. Aqui temos indícios do perfil cervejeiro que será a história brasileira, ou seja, o fortalecimento da história e dos negócios europeus na colônia e ex-colônia. Lembrando que somente em 1888 acontece no Brasil a abolição da escravatura, portanto, encontrar relatos ou registros que possam indicar uma presença negra na indústria é como encontrar uma agulha na cevada. 


Do final do século XIX até os anos 90, o Brasil viu crescer pequenas indústrias principalmente no Sul e Sudeste, viu também crescer o poder das grandes indústrias como Antarctica e Brahma, até então concorrentes. Em 1999 ocorre a fusão de ambas e é criada a Ambev, hoje pertencente ao grupo Anheuser-Busch InBev, maior produtor de cerveja do mundo. No Brasil, a Ambev possui mais de 30 marcas, além de indústrias de maltarias, refrigerantes, rolhas, vidros e rótulos. 


À população negra e indígena nas Américas, a sociedade associou ao álcool e deu a eles sinônimos de embriaguez, marginalidade, encarceramento, adoecimento e morte. Não houveram incentivos e ainda não há. O alcoolismo é uma realidade: dados mais recentes indicam que no Brasil 6 milhões de pessoas abusam do consumo do álcool. Ao longo da história brasileira, crítica, repressão e cumplicidade são as marcas deixadas pela sociedade branca europeia. Atualmente a cumplicidade da indústria garante o lucro: o Brasil é o terceiro maior mercado consumidor de cerveja do mundo e o volume de vendas teve um crescimento de 1,1% frente ao ano anterior, fechando 2023 com 112 milhões de hectolitros vendidos, de acordo com a plataforma Catalisi em notícia de 2024.

IMPORTANTE: o consumo abusivo de álcool provoca danos irreversíveis para a sociedade, por isso beba com moderação e pratique o “beba menos, saboreie mais!”

Aqui cabe retomar aquela pergunta do primeiro texto: se hoje pensarmos na larga produção industrial, que mantém uma perspectiva de produção que atende bilhões de consumidores no mundo, qual o sentido de buscar vínculos em passados remotos?

Acredito que até aqui você já tenha algumas respostas, por isso te convido para a terceira parte, onde conto a parte final ou o início de uma nova história. Aquela que fecha um ciclo histórico e se abre a um presente e um futuro em comunidade.


Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

bantumen.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile