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Damara Inglês é estratega criativa e designer de experiências digitais. Mas é o título de "designer de metaverso" que mais levanta perguntas e ela responde com clareza: o metaverso não é uma realidade paralela, é uma extensão da nossa realidade social. Para Damara, ele é parte de um contínuo histórico da comunicação, desde as conversas à volta da fogueira até aos avatares em mundos virtuais.
Neste universo, desenha experiências sensoriais e visuais, filtros de realidade aumentada, roupas para videojogos, ambientes em realidade virtual e design de avatares. A sua missão vai além da técnica: procura injetar humanidade, empatia e diversidade num espaço ainda em construção. "É ser designer dessa extensão social que está a ganhar momento agora".
Defende que o metaverso replica os mesmos sistemas de exclusão e preconceito que existem no mundo físico. A ausência de diversidade entre os criadores de conteúdos digitais tem um impacto direto nas representações disponíveis. Plataformas, softwares e bibliotecas 3D refletem uma estética dominante, muitas vezes eurocêntrica e excludente. "Quem tem acesso às ferramentas normalmente não se parece connosco, então as ferramentas também não se vão parecer connosco".
A prova disso foi visível quando, ao procurar por avatares afro, encontrou representações que considera grotescas: trajes de palha, flechas, hipersexualização. "As coisas que apareciam eram literalmente chocantes. [...] Os avatares afro tinham sempre flechas, estavam com roupa de palha, em cubatas ou eram mulheres com seios gigantes e um rabo gigante." A resposta para o problema surgiu através da criação de iniciativas como a Afro Hair 3D Library, um repositório de penteados afro desenvolvidos por designers negros, que desafia os estereótipos visuais coloniais. "Essa library foi a primeira ação que eu conheci criada por designers 3D negros que disseram: não, queremos uma representação mais expansiva".
Damara frisa que esta representação não se trata de negar tradições, mas de evitar visões monolíticas sobre o que é ser negro. "Essa mesma identidade negra também inclui pessoas nós, que estamos a ter essa conversa agora".
Entre os exemplos concretos de resistência cultural digital cita o coletivo Black Girl Gamers, responsável por introduzir roupas afrocêntricas no jogo The Sims. "Eu jogo The Sims desde criança e nunca pensei 'o que falta mesmo agora é um bubu”, assume, acrescentando que, muitas vezes, a importância da representatividade só é reconhecida depois de posta em prática. Apesar de na sua época não ser tema, não esconde o significado do passo para as gerações vindouras, sobretudo se se considerar o facto a forma como as gerações mais novas começam a estar presentes na internet cada vez mais cedo. "Os meus sobrinhos vão conseguir ver o mesmo bubu que a mãe usa em casa num espaço de gaming”. Esse gesto, explica, permite que se crie um espaço de pertença para novas gerações, especialmente para a geração alfa. "O corpo deles é um corpo igualmente político, igualmente vivo e contemporâneo”, afirma acrescentando que "uma boa parte da identidade, da autoestima e da autoimagem dessa geração é desenvolvida também em espaços de gaming”.
Formada em Fashion Media Practice and Criticism, Damara tem uma carreira marcada pela interseção entre identidade, tecnologia e espiritualidade. Criou o conceito de cyberkimbandism, que funde cosmologias espirituais bantu com tecnologias digitais. E vê paralelos entre máscaras tradicionais e filtros de realidade aumentada, entre corpos espirituais e avatares, entre sabedoria ancestral e inteligência artificial. "Somos ancestrais da inteligência artificial", explica.
O entendimento sobre a forma como a tecnologia acaba por ser uma extensão da mão humana, traduziu-se para o plano concreto. Ao trabalhar no Snapchat, desenvolveu um wearable digital inspirado nos Zangbeto. Em colaboração com a NARS, desenhou um filtro baseado no blush Orgasm X, pensado para peles negras. Representou a timidez com flores a crescer das bochechas, desafiando a ideia de que pessoas negras não coram. "Biologicamente todos coramos. Agora é a perceção de ser visível ou não”. A ideia era o filtro pode ser usado por todos, mas de forma a que pessoas negras não se sentissem excluídas. Mas não seria apropriação cultural uma pessoa branca usar algo criado/pensado por uma pessoa negra?
“No mundo em que nós estamos a viver, a nível social, político, económico, geopolítico, é cada vez mais perigoso termos imagens que parecem super reais e não são”
Damara Inglês
📸: Damara Inglês
A designer é incisiva: o problema não reside em quem usa, mas em quem cria. "A apropriação cultural vem do lugar de quem cria e não do lugar de quem usa". Para Damara, há uma tendência preocupante em transformar a apropriação cultural numa desculpa para limitar a presença de criadores negros em espaços de visibilidade. "Comparar ou às vezes usar a apropriação cultural torna-se uma espécie de desculpa ou motivação para segregar os designers negros também". Denuncia a lógica que associa automaticamente a estética negra a um grupo restrito, quando a estética branca é tratada como universal. "Porque é que a minha estética tem que ser segregada e a tua não?" E vai mais longe, ao questionar a dualidade entre apropriação e apreciação: "A estética negra também tem o direito à universalidade, tal como qualquer outra. Não pode ser tratada como exótica ou periférica."
O seu trabalho, por isso, é construído numa base de partilha e abertura. "Estamos a falar de metaverso, de expansão, de interação social. Então também temos que falar da expansão da estética, de quem é que controla a estética."
Na palestra “Em Voo com Damara Inglês”, que irá conduzir no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, no dia 24 de maio, Damara vai apresentar o metaverso como uma “gaveta” dentro do vasto “móvel” tecnológico. Explicará a diferença entre realidade aumentada, virtual, mista e inteligência artificial, e a importância de nomear corretamente essas tecnologias para compreendê-las.
Partilhará também a forma como a inteligência artificial reproduz conceitos humanos, partindo de uma experiência pessoal. Ao escrever "Queen in Angola" num gerador de imagem por IA, a resposta foi uma representação da Rainha Elizabeth, com escravos ao fundo. "Se essa for a perceção que a inteligência artificial tem do que é ser rainha em Angola, como é que vai reagir quando vir uma rainha africana e não reconhecer essa rainha como rainha?"
Assume que as imagens que a IA devolve, os filtros que dominam o Instagram, os algoritmos que alimentam o consumo são cultura, política e escolha, tudo é cultura, tudo é política, tudo é escolha. E chama a atenção para o facto de muitas dessas imagens parecerem reais quando, na verdade, não são. "No mundo em que nós estamos a viver, a nível social, político, económico, geopolítico, é cada vez mais perigoso termos imagens que parecem super reais e não são".
Esse risco, reforça, tem consequências que vão além do estético. Afeta a perceção coletiva sobre quem é humano, quem pertence, quem é valorizado. "Temos carros que se conduzem a si mesmos e que têm que reconhecer uma pessoa negra como uma pessoa igual a uma pessoa branca." A representatividade, neste contexto, torna-se uma urgência técnica, ética e política.
Apesar disso, recusa o discurso de inclusão como ato generoso do centro dominante para com as margens. Para ela, é necessário romper com a ideia de que há um modelo-padrão do qual todos os outros são variações. "Não gosto muito da expressão inclusão, porque implica que há um centro e que todos os outros estão a tentar entrar. Todos somos standard".
É nesse cruzamento entre arte, memória, política e tecnologia que constrói o seu trabalho. E é aí que Damara se posiciona: a exigir que o futuro digital seja também um espaço de verdade, pluralidade e justiça.
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