“Se uma canção fosse um apartamento, quantos de nós estaríamos a dormir na rua?”, Dino d'Santiago

9 de Abril de 2025
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O segundo dia do Atlantic Music Expo 2025, que decorre até 10 de abril na cidade da Praia, em Cabo Verde, foi marcado por uma conversa necessária. Sob a moderação de Dino D’Santiago, artista e presidente da Associação Mundu Nôbu, o debate reuniu vozes de especialistas das indústrias criativas para pensar a propriedade intelectual enquanto ferramenta de justiça económica e soberania cultural.

Criolo (rapper e ativista cultural brasileiro), Sónia Duarte (diretora do Instituto de Gestão de Qualidade e Propriedade Intelectual de Cabo Verde), Miguel Carretas (diretor-geral da Audiogest em Portugal) e Ricardo Castanheira (vice-presidente da Sony Music para Europa e América Latina) compuseram um painel que desafiou o público a refletir sobre quem está, de facto, a beneficiar da criação artística no mundo de hoje.


Abrindo a conversa com uma metáfora provocadora, “Se uma canção fosse um apartamento, quantos criadores estariam hoje a dormir na rua?”, Dino convidou os participantes a refletir sobre o valor invisível da arte. “A propriedade intelectual tem mais poder do que um imóvel. Mas nós, criadores, continuamos sem ferramentas para habitarmos aquilo que construímos”, afirmou.


Sónia Duarte, em representação do IGQPI, explicou que Cabo Verde está a trabalhar na revisão da legislação para incluir conhecimentos tradicionais, expressões de folclore e indicadores geográficos, como o vinho do Fogo ou o batuku, por exemplo. “A criatividade é o nosso petróleo. Estamos a criar um novo código que valoriza o que é nosso, que reconhece que o saber ancestral e a cultura popular são também formas de propriedade intelectual.” Mas essa proteção não acontece de forma automática. Sónia sublinhou a necessidade de sensibilizar e capacitar os artistas para compreenderem os seus direitos e protegerem as suas obras, seja registando marcas, músicas, nomes artísticos ou produtos culturais. “Muitos artistas ainda não sabem que têm direitos, ou não os exercem. E isso faz com que outros tirem proveito do seu trabalho.”


“O mundo usufrui, mas quem inventou não recebe nada”, Criolo


Num dos momentos mais impactantes da conversa, Criolo falou com emoção sobre a apropriação cultural silenciosa que continua a acontecer na indústria musical global: “O mundo apaixona-se por uma estética, como o funk carioca, por exemplo, mas quem a criou, muitas vezes, continua na pobreza. O que vemos são grandes empresas a lucrar com a alma de um povo, sem reconhecimento nem remuneração.” O rapper alertou ainda para o elitismo que define o que é ou não “intelectual” na música: “Querem interpretação de texto de quem nunca teve acesso a uma escola pública de qualidade? O que falta não é talento, é investimento em educação. E no fim, são os mesmos que negam o valor dessa arte que ficam com o lucro.”


O debate também trouxe para cima da mesa um dos temas mais sensíveis do momento: a inteligência artificial (IA). Miguel Carretas e Ricardo Castanheira expuseram os perigos de uma IA desregulada, que utiliza obras de artistas reais como matéria-prima para gerar conteúdos automatizados, muitas vezes, sem autorização ou compensação. “Estamos a falar de máquinas que competem com humanos usando o trabalho dos próprios humanos. Isso não é justo. É uma questão de ética, não só de inovação”, defendeu Castanheira. Ambos reforçaram a urgência de implementar três princípios fundamentais nas leis de regulação da IA: consentimento do autor; remuneração justa em caso de uso da obra e transparência total sobre as obras usadas para treinar algoritmos. “Se a tua voz, o teu beat, a tua letra são usados por uma IA, tens o direito de saber. E de ser pago por isso”, reforçou Miguel Carretas.


Cabo Verde pode ser exemplo para África


O painel reconheceu ainda o trabalho pioneiro que Cabo Verde tem feito na área dos direitos autorais e propriedade intelectual. “Cabo Verde tem uma das legislações mais avançadas de África. Agora, tem a oportunidade de liderar uma nova geração de proteção cultural, inclusiva, justa e conectada com os desafios da era digital”, disse Castanheira.


Essa liderança, afirmaram os oradores, não se faz apenas com leis. Exige também educação artística, programas de capacitação, inclusão digital e valorização do saber tradicional, como exemplificou Sónia Duarte ao falar da importância de proteger o batuku ou a produção de objetos artesanais de geração em geração.


No final, Dino D’Santiago deixou claro que esta não é uma conversa para elites ou especialistas, mas uma questão prática que afeta o futuro da juventude criativa: “É preciso levar esta discussão aos bairros, às escolas, aos estúdios, aos coletivos artísticos. Só assim conseguimos que os criadores deixem de ser os últimos da fila a beneficiar da sua própria arte.”


O AME 2025 mostrou que, num mundo onde a criação é cada vez mais digital, efémera e vulnerável, a propriedade intelectual é a chave para garantir dignidade, sustentabilidade e autonomia aos artistas. “Criar é poder. Mas proteger o que se cria é liberdade”, resumiu Dino d'Santiago num dos painéis mais esperados do evento.

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