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Moçambique enfrentou, no dia 9 de outubro, as sétimas eleições presidenciais, manchadas pelos confrontos violentos entre manifestantes e a polícia desde então. A Comissão Nacional de Eleições anunciou a vitória de Daniel Chapo, candidato da FRELIMO, partido no poder desde a independência. No entanto, dados irregulares e a morte do advogado do candidato político da oposição, Venâncio Mondlane, despertaram a revolta do povo, que sonha com um país mais justo nas diferentes esferas sociais.
No dia 9 de outubro, mais de 17 milhões de moçambicanos prepararam-se para votar nas sétimas eleições presidenciais e legislativas do país, onde se apresentaram quatro candidatos: Daniel Chapo, apoiado pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), partido no poder desde a independência, há quase 50 anos; Ossufo Momade, apoiado pela Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), o maior partido da oposição; Lutero Simango, apoiado pelo segundo maior partido de oposição e terceiro parlamentar, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM); e Venâncio Mondlane, apoiado pelo Partido Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS).
Mondlane, ex-membro da RENAMO e também ex-membro do MDM, tornou-se uma figura emergente que rapidamente conquistou o apoio de muitos eleitores, especialmente dos jovens, transformando-se, portanto, no verdadeiro oponente do partido no poder. Durante os resultados intermediários das eleições, Venâncio Mondlane mostrou-se bastante vocal sobre uma possível fraude e manipulação dos votos, opinião também visível na insatisfação da população face à divulgação dos resultados das comissões distritais e provinciais de eleições. Muitos acusam a RENAMO de também “entrar no esquema”.
Na madrugada do dia 19, o advogado de Venâncio Mondlane, Elvino Dias, foi morto a tiro, no interior de uma viatura em Maputo, capital do país. Elvino Dias, conhecido por defender casos de direitos humanos em Moçambique, atuava como assessor jurídico de Venâncio Mondlane e da Coligação Aliança Democrática (CAD), grupo político que inicialmente apoiou Mondlane como candidato à Presidência da República de Moçambique. No entanto, a candidatura de Mondlane para as eleições gerais de 9 de outubro foi rejeitada pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). Posteriormente, Mondlane recebeu o apoio do partido Povo Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS). Paulo Guambe, representante nacional das listas legislativas e provinciais desse partido, também estava no veículo que foi alvo do ataque. Elvino já havia revelado, na sua página de Facebook, a existência de um plano para o assassinar, juntamente com o candidato à presidência Venâncio Mondlane.
Segundo testemunhas, Elvino Dias morreu no local, enquanto Paulo Guambe faleceu horas depois, após a Polícia da República ter impedido a sua evacuação por uma ambulância que estava no local para prestar socorro. As testemunhas ressaltaram que a polícia realizou um intenso trabalho de censura e intimidação, impedindo que registassem o incidente e confiscando ou danificando diversos telemóveis.
Wilker Dias (@dr_wilker_dias), ativista e defensor moçambicano dos Direitos Humanos, protagonizou um dos momentos mais comentados das últimas semanas ao interromper a sessão da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, realizada na Gâmbia, para destacar as violações dos Direitos Humanos em Moçambique durante o período eleitoral e protestar contra as mortes ocorridas ao longo do processo. Dias é um dos responsáveis pela plataforma DECIDE (plataforma de monitoria eleitoral moçambicana), que esteve no terreno em cinco províncias: Sofala, Zambézia, Cabo Delgado, Nampula e Niassa.
"Pessoas eram impedidas de votar porque já tinham os seus nomes assinalados nos cadernos como se já tivessem votado"
Wilker Dias
Em conversa com a BANTUMEN, Wilker contou que, à medida que a contagem dos votos ia sendo divulgada, já se notavam irregularidades, o que o levou a querer levar o caso para a Comissão. “Pessoas eram impedidas de votar porque já tinham os seus nomes assinalados nos cadernos como se já tivessem votado. Nós verificámos que, em muitas mesas de voto, as pessoas quiseram votar, mas os cadernos eram trocados, não pertenciam àquela mesa. E isso tudo influenciou para que tivéssemos mais de metade da população a abster-se de votar, porque as pessoas acabavam por voltar para casa. Constatando isso, já tínhamos matéria suficiente para que pudéssemos declarar como um processo que acabava com a liberdade dos cidadãos. Foi por isso que aproveitámos o encontro da Comissão Africana para expor esta situação.”
Contudo, foi o sentimento de revolta que teve ao receber a notícia da morte do advogado de Venâncio Mondlane que o incentivou e deu coragem para apelar por mudança no sistema. “Naquela noite, recebemos a notícia da morte do Elvino e do Paulo. Eu digo, sinceramente, que desde o mês de setembro só durmo três a cinco horas, no máximo, por conta da carga de trabalho na campanha, na votação e pós-votação. E, naquele dia, eu não dormi. Senti-me na obrigação de fazer alguma coisa. Tivemos muita ajuda dos angolanos e dos guineenses e paralisámos a sessão. Tentaram deter-nos, mas conseguimos escapar”, acrescenta.
Na manhã seguinte ao tiroteio, a polícia moçambicana disparou granadas de gás lacrimogéneo contra jornalistas e Venâncio Mondlane durante uma marcha pacífica que repudiava o crime cometido, em Maputo. Desde então, a população tem estado nas ruas em protestos e manifestações, condenando a postura de indiferença do partido FRELIMO face aos últimos acontecimentos.
No passado dia 25 de outubro, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) anunciou a vitória de Daniel Chapo (partido FRELIMO) com 70,67%, totalizando 4.912.762 votos. Venâncio Mondlane (partido PODEMOS) ficou na segunda posição com 20,32%, acumulando 1.412.517 votos. Em terceiro lugar ficou Ossufo Momade (partido RENAMO), com 403.591 (5,81%) votos, e, por último, Lutero Simango, com 223.066 (3,21%) votos. Somando os votos, apenas 43,48% dos eleitores inscritos votaram. Os resultados ainda precisam ser validados pelo Conselho Constitucional.
O atual presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, aparece num vídeo polémico a cantar “Chapo Presidente, doa a quem doer”. Já Daniel Chapo declara querer ser o “presidente de todos os moçambicanos”, incluindo os que se manifestam nas ruas. Em live no Facebook, Venâncio Mondlane rejeita os resultados e afirma: “Nós rejeitamos de forma liminar, de forma taxativa, estes resultados. São resultados tremendamente e absurdamente falsos, adulterados, mentirosos. Não são resultados que refletem a vontade do povo.”
O candidato político Venâncio Mondlane tem-se destacado pela sua presença nas redes sociais e no terreno, ao lado dos manifestantes. Os resultados divulgados pela CNE coincidiram com o primeiro dia dos dois dias de greve que Mondlane convocou, face à negação dos mesmos.
📸 ©Yasmin Fortes
Ele [Venâncio Mondlane] juntou a tecnologia à política e é isso que precisamos hoje em dia
Wilker Dias
“Quando criámos a plataforma (DECIDE), a nossa principal ideia era chamar a atenção dos jovens, principalmente a nível das redes sociais. Nós tínhamos muitos jovens que reclamavam sobre a situação atual do país e acontecimentos, mas apenas nas redes sociais. E não tinham muita coragem de ir à rua e expor aquilo que vinha acontecendo. Foi isso que fomos fazendo ao longo do tempo, principalmente com a plataforma, que era tentar fazer as pessoas debaterem pelas redes sociais, mas depois puxá-las para o cenário real, neste caso, as mesas de voto. Nas eleições autárquicas, conseguimos puxar o pessoal e resgatar um pouco essa credibilidade. Os próprios partidos políticos da oposição, principalmente o próprio Venâncio Mondlane, foram criando canais muito antes, ajudando a incentivar a participação das pessoas e a demonstrar o que estava a acontecer no país. Então, isso tudo foi um processo que culminou nisto: termos alguém que, mesmo não estando presencialmente a falar com todos os moçambicanos de forma física, consegue ter uma voz de comando virtual. Ele juntou a tecnologia à política e é isso que precisamos hoje em dia. Eles mostraram os direitos e deveres dos cidadãos através das redes sociais, e o resultado é este: o maior nível de participação”, afirma Wilker Dias. “Isto não é apenas uma manifestação a nível político. É também uma manifestação a nível social, porque as pessoas já estão cansadas e querem mudança. Todos nós, principalmente os jovens, podemos fazer a diferença, quer indo à rua, quer não indo. De qualquer forma, podemos fazer a diferença. Há quem seja corajoso e consiga ir à rua. Há quem não seja corajoso e não consiga, mas essa pessoa pode prestar assistência aos que conseguem. O grito de mudança começa aí. Com aqueles que estão na diáspora têm os melhores mecanismos de manifestação possíveis. Digo isto porque, se estás na Europa, tens as sedes da União Europeia, por exemplo, e as principais missões diplomáticas ou organizações a nível mundial. Não é necessário manifestar apenas em frente à Embaixada de Moçambique; podes manifestar-te à frente dessas embaixadas. Moçambique não é um estado isolado. É soberano, mas não está isolado. Depende de todos estes para poder sobreviver. E, se conseguirmos fazer com que aqueles que apoiam Moçambique percebam o que está a acontecer, eles, automaticamente, vão sentir a pressão e perceber que devem mudar alguma coisa”, conclui o ativista moçambicano.
Moçambique tem vivido episódios de tensão e confrontos entre manifestantes e a polícia. Segundo a plataforma DECIDE, que tem estado a trabalhar em conjunto com a Ordem dos Advogados de Moçambique, entre os dias 21 e 27 de outubro, foram registadas pelo menos 47 pessoas baleadas e 11 mortos. Para além disso, o país tem sofrido cortes de Internet, limitando assim a comunicação e dificultando a partilha dos acontecimentos em tempo real. O governo moçambicano apelou às empresas e negócios para que se mantenham abertos e garantiu a sua segurança. No entanto, a população continua a sair à rua para reivindicar os seus direitos, desde as cidades até aos distritos.
Cídia Chissungo, outra ativista moçambicana, parte do movimento Geração 18 de Março, tem estado bastante ativa e envolvida no apoio aos feridos, no auxílio às denúncias de vítimas da violência policial e na assistência aos presos, juntamente com a sua equipa. Cídia descreve a situação do seu país como “muito preocupante” devido às restrições ao uso das redes sociais, relembrando que “há muita informação que não estamos a ver”.
Cídia contou à BANTUMEN que a restrição de Internet já se faz sentir. Na semana passada, recebia casos pouco depois de ocorrerem, mas, desde que a comunicação ficou limitada, passaram a receber denúncias um dia após o acontecimento. “Continuamos a notar um grande número de pessoas a serem baleadas. A polícia não se retrai e continua a usar balas reais. As pessoas continuam a manifestar-se de qualquer forma. Ainda estão com a mesma determinação que tinham na semana passada. Nada mudou. Absolutamente nada. Isto é histórico.” Cídia acrescenta que tem sentido um tom mais tenso e uma maior sensação de revolta nas últimas denúncias, o que significa uma determinação crescente em continuar a luta.
📸 ©Yasmin Fortes
"O povo moçambicano foi muito marginalizado. O slogan ‘Doa a quem doer’ é mesmo uma facada para os moçambicanos, e dói mesmo"
Cídia Chissungo
Inspirada por Samora Machel, líder da luta pela independência de Moçambique, Chissungo descreve o episódio atual do país como “quase um sonho”, por não acreditar que este “dia finalmente chegou”. “O povo moçambicano foi muito marginalizado. O slogan ‘Doa a quem doer’ é mesmo uma facada para os moçambicanos, e dói mesmo. É muito triste vermos um país onde várias classes profissionais estão em greve. O meu sonho é que Moçambique seja dos moçambicanos e não de nenhum partido. Só assim acredito que, a longo prazo, podemos construir algo sólido. Uma nação sólida. Que as pessoas nos possam respeitar.”
“Já é tarde para desistir. Mesmo que quiséssemos, não podemos voltar atrás. Isto significa que só há um caminho: o povo vai vencer! O povo vai vencer, é só isso. A FRELIMO vai ceder, porque já sacrificámos muito. Vês todas estas pessoas que estão a morrer? Voltar atrás, agora, é impossível. O que vai acontecer a seguir é que as pessoas não vão parar de sair à rua até que a FRELIMO reconheça que o povo é que manda em Moçambique. Gostaria de dizer ‘Não sei’, mas sei sim! Estou a registar cada caso, e será muito difícil acordar um dia, depois de estar traumatizada com a quantidade de informação que recebo, e permitir que a FRELIMO passe impune. A minha esperança é que a FRELIMO se retrate. É a única forma de parar. Já não temos mais nada a perder”, finaliza Chissungo.
O candidato político Venâncio Mondlane convocou mais uma greve geral, desta vez com a duração de uma semana, de 31 de outubro a 7 de novembro, na cidade de Maputo. Os conflitos violentos continuam e o número de mortes aumenta. O bloqueio de internet mantém-se, na tentativa de reprimir os movimentos populares.
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