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“Não há nada com que eu tenha uma ligação tão pura como a música”, KD One Seven

28 de Outubro de 2023
“Não há nada com que eu tenha uma ligação tão pura como a música”, KD One Seven

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KD One Seven, aos 26 anos, é um rapper que desde muito novo demonstrou uma grande paixão pela música. Aos 12 anos, influenciado por um colega da escola, deu os primeiros passos na produção musical.

Nascido em Portugal, mas com raízes angolanas, cresceu num ambiente onde a música desempenha um papel de destaque. Desde cedo, teve contato com artistas nacionais de renome, como Yuri da Cunha, Matias Damásio e Anselmo Ralph, assim como com ícones internacionais como Mario, Usher e Ne-Yo.

O que começou como um passatempo rapidamente se transformou numa paixão séria. Após anos de prática e projetos ainda não divulgados, KD One Seven decidiu investir profissionalmente na carreira musical em 2016, com o lançamento do single “Ego”.

Desde então, tem lançado músicas de forma independente, incluindo faixas como “RIP”, “Game”, “Blakkkout Freestyle” e “Topo”, entre 2019 e 2021. Em 2022, KD One Seven lançou as faixas “Dirt”, “Illest Nigga” e “Dei”. Paralelamente à sua carreira musical, o artista também se destacou no circuito underground de batalhas de rimas, conquistando impressionantes 10 títulos em apenas um ano.

No mesmo ano, KD One Seven estreou-se na Liga Knockout, após um convite do “padrinho” do hip hop em Portugal, Nuno Varela. Além disso, lançou a faixa “Tocar”, produzida por Madkutz, um dos nomes de destaque na produção em Portugal. Este foi também o ano em que o rapper concluiu o curso de Produção e Criação de Hip Hop na ETIC, uma instituição de renome no cenário musical e da comunicação.

KD aborda temas relevantes nas suas músicas, como a realidade de pessoas negras na Europa, como é o caso da faixa “Pergaminho”. Com as suas letras, o rapper procura transmitir uma mensagem de diversidade, resiliência e autenticidade através de sua arte.

Ao alinhar a sua rota na música, KD One Seven tem conquistado não apenas os ouvidos de cada vez mais ouvintes, mas também um lugar de destaque no cenário musical em ascensão de Portugal. Com uma jovem carreira em constante evolução, o artista promete continuar a surpreender e a inspirar.

Como é que começaste aos 12 anos?

Na altura, houve um concurso de leitura em inglês entre as turmas todas do 6.º ano e eu representei a minha. Aprendi a falar inglês sozinho aos 5, 6 anos ao ver desenhos animados e sempre fui o melhor aluno desde aí. É quase como a minha segunda língua e o nível que tenho hoje em dia é exatamente o mesmo que tinha nessa altura, tanto na componente oral como escrita.

Quando me convidaram para entrar no concurso, pensei que fosse ganhar mas fui eliminado logo na primeira ronda (risos). E quem ganhou foi um colega de escola chamado Edson (que vocês hoje em dia conhecem como Cozzy2x). Enquanto ele lia o poema dele, um amigo que tínhamos em comum disse-me que ele é que tinha escrito o poema e eu fiquei tão chateado por ter perdido e por de abuso ter perdido para um poema que ele próprio escreveu. Eu ia ler um que o meu professor escolheu. Pensei: “eu também consigo” e fui escrever nesse mesmo dia. Depois de rasgar o primeiro poema e mandá-lo para o lixo, por estar horrível (risos), continuei a praticar e fui ganhando mesmo o gosto pela escrita e pelo hip hop. Já consumia algumas faixas, quer por procurar, quer por ouvir na TV ou através das minhas irmãs, mas esse foi o gatilho inicial que me impulsionou para a via da criação artística.

Que influências musicais mais te inspiraram?

Posso falar em inúmeras ao longo da minha infância mas, no sentido de “carreira”, ou seja, tentar viver da música, diria talvez mais recentemente a Força Suprema e o Russ.

No caso da FS, eu acompanhava os vlogs deles quando era mais novo e, ao ver indivíduos da banda a fazerem um rap diferente e a abraçarem as suas raízes, tanto na sonoridade como na sua identidade comunicativa, vi que era possível. O facto de terem feito tudo de forma independente, sem o apoio da midia convencional e por todos os pontos da CPLP, deu-me um exemplo palpável e “realista” de que o sucesso vem se trabalharmos o suficiente. O Russ e a mentalidade de “Do It Yourself” dele mostraram-me que é possível fazer tudo mesmo que não tenhamos o apoio de uma editora. Também fui sempre muito fã do Kanye West, Eminem, entre outros.

Consegues descrever o impacto e o poder da música na cultura angolana?

A música é simplesmente indissociável da cultura angolana. Acho que as minhas raízes e a sua relação com a música tiveram um grande impacto consciente e inconscientemente na minha musicalidade porque sempre tive música na minha vida. Seja em casa, nas viagens longas de carro para ir visitar familiares, em que cantávamos o caminho inteiro ou nos próprios convívios de família em que dançávamos a tarde inteira, tinha sempre música a tocar no fundo.

Isso e a relação que temos com a dança, em que aprender a dançar é meio que um “ritual de passagem” para a idade adulta ou até o facto de, em todos os convívios, haver um momento em que toca Kizomba ou Semba e dançamos todos.

Quais foram os artistas que mais te influenciaram na infância?

Diria Força Suprema e Dope Boyz. Eu já ouvia o Monsta e o Deezy no tempo dos SWCK e da Ghetto Star porque, na era do Jerk, eles eram febre no segmento juvenil. Pouco tempo depois, um colega meu mostrou-me o vídeo da battle do Prodígio contra o Ivandro e eu e os meus colegas todos começámos a ouvir FS.

Quanto aos internacionais, talvez Kendrick, Cole e Drake. O Kendrick descobri, se não estou em erro, porque as pessoas estavam a debater – aliás, debate ainda por resolver (risos) – na secção de comentários de um som do J. Cole. O tema era quem era melhor entre os dois, isto antes do GKMC. Fui pesquisar, ouvi sons soltos e depois o Section 80… Fiquei maluco.

O Cole descobri num blogue que tinha uma lista dos melhores new rappers, na altura em que ele apenas tinha o Sideline Story. Já o Drake, já tinha ouvido algumas faixas por causa das minhas irmãs mas um primo meu mostrou-me o som “Fireworks”, com a Alicia Keys, e fui depois ouvir o primeiro álbum dele, o Thank Me Later, e fiquei fã. O facto de eles serem também três rappers que fugiam do estereótipo gangsta fez com que me identificasse muito com eles, porque vinham de backgrounds talvez mais semelhantes ao meu.

Também ouvia imenso Kanye e a reinvenção que ele fazia em cada álbum também me influenciou imenso porque, hoje em dia, tento explorar sem medos muito por ter crescido a vê-lo a reinventar-se.

Como é que, em 2016, começou a transição para uma cena mais profissional?

Nessa altura estava a morar no Reino Unido e foi a primeira vez que entrei num estúdio musical. Lá havia um espaço chamado “Pavilion”, em que podíamos gravar gratuitamente, e quando o visitei conheci o DJ Paul Lyons, que era o responsável pelo estúdio e foi o organizador de algumas das primeiras festas de Hip Hop na cidade quando o movimento começou lá.

Eu já escrevia letras mas frequentar o estúdio deu-me uma visão daquilo que era estruturar uma música. O comprimento standard dos versos, como estruturar um refrão, o que fazer para tentar torná-lo mais catchy, etc. Com base nisso, criei e lancei as minhas 3 primeiras músicas- Ego, Do They Pursue U, e Life Line.

Eu digo que esta foi a transição para o profissional porque foi quando comecei a profissionalizar-me do ponto de vista da criação e também no de ir em busca de oportunidades, workshops e de criar relações com pessoas do meio também. Foi quando deixei apenas de “sonhar” com tentar ser músico e passei a tentar investir verdadeiramente nisso.

Podes falar-nos mais sobre o teu primeiro single, “Ego”, e o que representa para ti?

Foi um momento especial porque foi a minha primeira faixa. Era surreal eu ouvir-me numa faixa e pensar “damn, eu é que escrevi e cantei mesmo esse mambo?” (risos). Naturalmente, não se compara aos trabalhos que lanço hoje em dia mas foi um momento que me ajudou a quebrar a barreira mental de “será que é possível mesmo eu gravar algo?”. Foi nessa altura que criei o meu perfil no Soundcloud e publiquei-a por lá. Nessa faixa, falo de não me querer enquadrar no estereótipo de que um MC tem de ser gangsta para que valha a pena ouvi-lo. Talvez um dia eu a republique (risos).

Quais foram os principais desafios que enfrentaste ao lançar música de forma independente?

São vários, mas o principal, diria que é a criação da própria arte sem ter alguém a financiá-la. As minhas primeiras 4 ou 5 faixas foram captadas e misturadas todas por mim usando o material que eu próprio comprei (computador, placa de som, microfone, auscultadores, soundshield, monitores). Elas soavam bem mas notou-se uma diferença quando fiz, por exemplo, a faixa “Dirt” porque esta já foi gravada num estúdio e tive de pagar para fazê-la.

Às vezes, o problema do músico independente não é ter ou não criatividade mas sim ter meios para materializar aquilo que imagina. Podemos até ter a melhor ideia do mundo mas sem os recursos, contactos e conhecimento para a executarmos, o processo torna-se por vezes frustrante e muito mais difícil do que talvez seria para um artista que tenha um deal com uma major, que conta com todas as infraestruturas para o apoiar.

Como artista independente, além de artista, eu tenho de ser o booker, o manager, o engenheiro de som, o profissional de marketing e o investidor. Nós ganhamos uma polivalência e uma resiliência maior mas é um processo duro, ainda que continue a ser imensamente divertido descobrir tudo. Foi justamente isto que me levou depois a entrar no Curso de Produção de Hip Hop que concluí este ano.

O processo das faixas como “RIP,” “Game,” “Blakkkout Freestyle,” e “Topo”, entre 2019 e 2021, foi o mesmo?

Todas estas faixas foram captadas e mixadas por mim em casa depois de ter comprado o meu material de estúdio. Em 2019 cruzei-me com o NGA, na barbearia do Madyba (shoutout para o Madyba!) e ele deu-me algumas dicas. Uma delas foi a de não depender de ninguém para criarmos a nossa arte e de como termos o nosso estúdio em casa é quase como termos o nosso gym lá. Nesse mesmo dia, saí da barbearia e fui comprar um studio kit e um tripé. Um ou dois meses depois, comprei um computador e passado algum tempo uns monitores e tudo o resto.

O facto de ter tido a possibilidade de gravar-me deu-me a possibilidade de descobrir-me artisticamente e desenvolver o meu próprio método de trabalho e essas faixas foram o resultado de todo esse trabalho. Até aquela timidez que temos quando nos começamos a ouvir pela primeira vez e aprender coisas – como a forma correta de projetar a voz – foi desaparecendo por ter tido a possibilidade de fazer as coisas da minha maneira.

Como é que chegaste ao circuito de batalhas de rimas?

Por ser um artista independente e estar a financiar a minha própria carreira, acabo por dispor de menos meios para conseguir ter notoriedade e destacar-me, tanto no underground como no mainstream. Por esse motivo, fiz um plano de ações para que conseguisse ser mais conhecido e estar enquadrado no movimento. Este plano incluía entrar em open mics, cyphers, podcasts e, evidentemente, batalhas de improviso.

Eu já tinha visto batalhas no tempo do H2Tuga no YouTube mas ao vivo calhou passar no Arco do Cego (Lisboa) e Colombo (Benfica) algumas vezes e estarem a decorrer. Ou seja, já sabia que existiam mas não sabia qual a periodicidade da mesma ou quem eram as figuras no movimento. Um dia, vi um story da página “Código Aberto” a dizer a hora e data e decidi participar na Batalha do Colombo, em 2022. Apesar do nervosismo, adorei a sensação e conforme fui explorando mais e mais o movimento, fui apaixonando-me por ele e deixou de ser tanto pela promoção e, graças a Deus, tem dado certo até agora!

Mergulhei também no mundo das batalhas porque tinha perdido uma tia nessa altura e isso afectou-me imenso psicologicamente. Foi a primeira vez que, em adulto, tive de lidar com a perda de uma pessoa e ver a forma como isso afetou a minha família e, em particular, a minha mãe, teve um efeito com que até agora estou a lidar. As batalhas ajudavam-me a “não pensar” e davam-me um lugar para me abstrair da dor e, para além disso, para canalizar a raiva e frustração toda que sentia na altura.

Como é que conseguiste acumular 10 títulos em batalhas com apenas um ano de experiência?

Na realidade, eu já fazia improviso desde a minha pré-adolescência mas batalhas é que não. Quem rima sabe que existe uma diferença entre ser um bom freestyler e um bom emcee de batalhas. Eu posso ser um freestyler incrível e conseguir ficar três minutos a fazer egotrip, mandar trocadilhos e/ou fazer comentário social. Porém, se me metem à frente de outra pessoa para a enfrentar e não consigo mandar uma única punchline direcionada a essa pessoa, não sou um bom emcee de batalhas. Então, no meu caso, a questão principal foi mesmo conseguir fazer essa transição.

Na minha segunda final, num torneio (que foi apenas a 9ª ou 10ª batalha que fiz na vida), fui contra o 2R, que é atualmente o maior campeão de batalhas de rua a nível nacional e conta com mais de 60 títulos. Foi uma batalha renhida e fomos ao terceiro round mas, depois de eu ter visto os vídeos da nossa batalha, eu senti que perdi porque ainda estava muito “verde” no aspeto de batalhar e não por eu não ter skill de improviso. A partir daí, foi uma questão de ir aprimorando mais essa vertente. Fui ganhando mais conhecimento e mais gosto pelo “desporto” em si e as vitórias foram surgindo.

Conforme eu ia batalhando, eu estava simultaneamente a trabalhar na minha vertente musical e a ser convidado para fazer shows e/ou open mics. Tudo isto foi contribuindo para que trabalhasse também na minha presença de palco, controlo de multidão, linguagem corporal e até na minha respiração e projeção de voz. Todas estas valências foram também ajudando-me nas batalhas, da mesma forma que o que aprendi nas batalhas também ajudou-me a desenvolver-me na componente musical.

Para ti, qual é a importância do campeonato nacional de batalhas de improviso da Red Bull Francamente para a tua carreira?

Seria um marco incrível. Aos 26 anos, eu meio que sou um “middle child” da cultura porque tenho idade suficiente para me lembrar dos vídeos do AC na MTV mas também consigo curtir um trap ou um drill com os youngins (risos). Por esse motivo, a minha parte mais OG é da altura em que o improviso não era uma coisa de nicho e tinha de fazer parte do leque de valências de um MC. Conquistar essa vitória iria satisfazer-me nesse sentido e seria a consumação de toda a jornada que tive até agora. Em 2022 não participei porque o dia em que fui ter a minha primeira batalha era também a data limite para as inscrições e eu preferi experimentar primeiro e ver se me encaixava nas batalhas para tentar depois. Ainda assim, fui ver o torneio e já é incrível pensar que no ano passado eu estava na plateia e, este ano, não só estive no regional como vou participar no nacional.

Quando comecei a batalhar, eu aparecia muito pouco comparando a agora, porque estive a morar na Lourinhã de setembro de 2022 a março de 2023. Foi também nessa altura que entrei no curso na ETIC, comecei a frequentar mais eventos (incluindo as batalhas), tudo em Lisboa.

Já virei noites no club porque já não tinha autocarros para voltar para casa. Já dormi em casa de familiares e já aluguei quartos no Booking. Na noite em que ganhei o meu primeiro título, eu não tinha onde ficar em Lisboa porque os autocarros acabavam às 20h e as batalhas que decorrem em espaços fechados geralmente terminam por volta das 23h. Depois da semi-final, ou da final, eu estava lá a conviver com as pessoas e discretamente a fazer uma reserva no booking.com de um quarto num hostel qualquer em Picoas. Depois do evento terminar, fui a pé à meia noite, de Martim Moniz até Picoas, dormi num hostel e na manhã seguinte voltei para a Lourinhã. Uns dias depois, no dia em que ganhei o meu segundo título, fui de Bolt para o terminal de autocarros em Sete Rios às 3 ou 4 da manhã e fiquei à espera até às 8h para apanhar o autocarro e ninguém sabia. Tudo isto por acreditar numa visão que mais ninguém entendia e porque eu tinha decidido que era mesmo isso que eu queria.

Desde o início do ano, já moro novamente em Lisboa (daí ter começado a aparecer mais em batalhas) e já está tudo mais simplificado.

Todos esses sacrifícios já valeram a pena porque vivi momentos incríveis e aprendi imenso nas batalhas mas estaria a mentir se dissesse que não me sentiria mais realizado ainda se fosse o campeão nacional. Agora é trabalhar em prol desse objetivo e fazer a minha parte para tornar isso possível!

Podes contar mais sobre a tua estreia na Liga Knockout e o convite do Nuno Varela?

Eu conheci o Varela num workshop que ele organizou com artistas norte-americanos chamado “Next Level Academy”, em 2022, e demo-nos logo bem. Durante o workshop, e até depois, ele ouviu-me a improvisar e a cantar faixas minhas (no workshop e convidou-me depois para cantar num open mic da Hip Hop Sou Eu) e elogiou-me bastante. Para além disso, nós começámos a seguir-nos nas redes sociais e isto foi apenas 1 ou 2 meses depois de ter começado a frequentar as batalhas de improviso. Depois do workshop ter terminado, comecei a frequentar o Kriativu (o espaço dele em Chelas) e fui lá gravar ainda algumas vezes.

Ele via as batalhas nas redes sociais e convidou-me várias vezes para ir à Knockout mas eu não aceitava justamente por estar mais focado nas de improviso e só queria passar para as escritas depois de ter conquistado mais no improviso e de me sentir pronto para mudar.

Passado alguns meses, recebi um convite da página da Knockout no Instagram e decidi aceitar.

A estreia não correu como queria mas acredito que seja apenas o início. Eu aceitei a batalha e arrependi-me logo de ter aceite porque pensei que não estava pronto mas na vida, quando estamos a passar de uma fase para outra, dificilmente estaremos e por isso haverá sempre dificuldades quando nos tentamos reinventar. Na altura eu tinha dois trabalhos, um full-time das 9h às 17h e um part-time das 18h às 22h. A minha hora de “intervalo” entre os dois era passada no comboio e a andar até ao segundo local de trabalho e sobravam 30 minutos. Isto de segunda a sexta-feira. Nos tempos livres, escrevia músicas, produzia conteúdos para o meu perfil e aos sábados ia batalhar no Cais do Sodré. .

Psicologicamente, estava numa das minhas fases mais complicadas mas, apesar de pensar todos os dias em cancelar, eu decidi cumprir com a minha palavra e ir na mesma.

Não estava tão pronto como deveria nem fiz aquilo que sei que consigo fazer. Ainda assim, algumas das pessoas que viram a batalha vieram ter comigo e dizer-me para continuar e que estive bem apesar das falhas e por isso continuo a acreditar no meu potencial e no que o futuro me reserva.

Como foi trabalhar com o Madkutz na produção da faixa “Tocar”?

Foi um sonho realizado e às vezes ainda fico incrédulo quando penso que tenho uma faixa com o Madkutz. Em 2022, a Mano a Mano organizou um workshop de beatmaking e, como eu já tinha ido a um em que o TOM era o convidado e gostei, resolvi ir a este também. Eu já tinha o plano de mostrar alguma coisa ao Kutz e tentar colaborar com ele mas as coisas alinharam-se perfeitamente porque no fim do workshop ele decidiu espontaneamente fazer um open mic e aí eu já não iria iniciar a nossa interação como “mais um puto” a querer trabalhar com ele, como imagino que deverá acontecer imenso.

Quando ele começou o open mic perguntou quem queria começar e, como pareceu que todos os outros estavam meio envergonhados, eu levantei a mão e fui. O people vibrou imenso com o meu verso, aplaudiram imenso e até o Kutz me deu um cool antes de eu descer do palco.

Quando o evento terminou, fiquei a conversar com o MLK e com um dos organizadores do evento enquanto o Kutz falava com alguém junto ao palco e eu ia controlando para ver quando podia ir lá. Do nada, olho à minha volta e o Kutz já tinha evaporado. Não o encontrei nem dentro nem fora do recinto e fiquei imensamente triste por pensar que tinha desperdiçado uma oportunidade. No dia seguinte, recebo duas notificações no Instagram do nada, uma a dizer “Madkutz começou a seguir-te” e outra com um elogio dele. Quando abro o dm, vejo que ele não só me elogiou como disse que queria ouvir as minhas cenas e trabalhar comigo. Aí, ele desafiou-me a escolher um beat dele e cantar por cima e foi assim que surgiu a faixa “Tocar”.

O que aprendeste durante o curso de Produção e Criação de Hip Hop na ETIC?

Aprendi de tudo um pouco. Tivemos aulas sobre a História do Hip Hop Tuga com o Ricardo Farinha e Alexandre Ribeiro; Beatmaking com o TNT e Madkutz; Mix & Master com Nastyfactor, Benji Price e Maria dos Purple Hazin’; Mcing com o TNT, Beware Jack e Nerve; Marketing com o Rui Miguel Abreu e TNT.

Eu entrei no curso com o objetivo de me tornar mais auto-suficiente e conseguir pelo menos entender o fundamental de cada uma dessas áreas e consegui cumpri-lo.

Eu sinto também que cresci imenso como pessoa e como artista porque conviver com pessoas com o mesmo sonho que tu faz-te acreditar que tudo é possível. Dei por mim a explorar outros géneros musicais, outras técnicas de edição e outras técnicas de escrita.

Também obtive imenso knowledge com os workshops que tivemos e com os convidados que a escola trouxe.

Este curso também consolidou ainda mais na minha mente a ideia de que o factor que determina o nosso sucesso é o trabalho. Quando estás 24/7 com pessoas talentosas, o teu talento deixa de ser o “factor mágico” que faz com que as coisas funcionem e tens de distinguir-te pelo mérito e pelo esforço.

Fale-nos sobre a faixa “Right Now” e a colaboração com a produtora Lirys.

Esta faixa surgiu na sequência de um trabalho do curso que fiz na ETIC em que os emcees do curso tinham de colaborar com os produtores. Eu já tinha esta letra há imenso tempo mas nunca a terminei porque a escrevi sem um beat concreto em mente e nunca encontrei nenhum que casasse bem com ela. Quando fomos fazer o projecto, ouvi este beat da Lirys, adorei e acabei por usar esta letra. Como tínhamos de gravar, eu tive a ajuda do meu mano Tim Brandon que era do curso de Técnico de Som e veio fazer a captação e mixagem. Entreguei o trabalho mas como eu adorei o produto final, falei com a Lyris e perguntei-lhe se era ok lançá-lo e ela aceitou!

Como a faixa “Pergaminho” explora a realidade do negro na Europa?

Esta faixa surgiu na sequência de uma conversa que tive com uma pessoa portuguesa com quem adoro conversar mas que às vezes tem dificuldade em ter empatia para com a realidade das pessoas não-caucasianas aqui em Portugal. Nós tivemos um debate sobre a realidade das pessoas negras e sobre o preconceito e esta pessoa estava a ter uma postura de “argumentar” e até de justificar o que se passa, ao invés de ouvir para entender. Nessa mesma semana, eu e um amigo (também negro) fomos parados pela polícia ao sair de um autocarro porque eles estavam a “fazer uma revista espontânea por reportes de tráfico de drogas na área” e, “coincidentemente”, as únicas duas pessoas que foram paradas depois de saírem de um autocarro cheio, foram as negras.

Fiquei tão frustrado com a situação que resolvi escrever esta faixa, que não é biográfica mas fala do struggle que todo o homem negro passa aqui na Europa.

Falo do efeito da ausência dos nossos pais em casa, de como não termos os nossos pais presentes nos leva a duvidar da existência do nosso “Pai” celeste, do desrespeito que essa atitude dos pais para com as nossas mães revela e de como por vezes acabamos por repetir esse ciclo quando nos queremos envolver com alguém e de como isso sistematicamente se repete na nossa comunidade. Ou seja, eu tento humanizar as pessoas que são crucificadas por não serem anjos quando no mundo em que vivem ninguém as ensina como devem lidar com os seus demónios. E de como elas carecem de líderes porque no inferno em que vivem se deifica a maldade.

Eu acredito que toda a pessoa negra se identifica, nem que seja parcialmente, com aquilo de que falo nesta música e quis dar voz àqueles que por vezes não a têm. Às vezes, a arte é uma forma mais eficaz de começarmos estas conversas e foi neste sentido que criei esta track.

Qual é a mensagem que queres transmitir aos ouvintes através da tua música?

Eu pretendo transmitir a autenticidade. Às vezes, não só como rapper mas também como homem negro, as pessoas meio que esperam que sejamos seres unidimensionais. Ou és agressivo ou és soft. Ou és consciente ou és gangsta. Ou és old school ou és new school. Ou és A ou és B. Eu pretendo fazer a minha arte da forma mais genuína possível e divertir-me no processo. Quero transmitir que podemos ser aquilo que somos e vencer na arte e na vida. Toda essa pluralidade é digna de ser representada e eu pretendo fazer isso.

Como descreverias o teu estilo musical e as principais temáticas abordadas nas suas músicas?

Acho que a palavra mais adequada seria “eclético”. Como eu tinha mencionado anteriormente, a cultura angolana é muito ligada à música e toda a gente em minha casa adorava. As minhas irmãs ouviam Ne-Yo e Aaliyah, os meus pais ouviam Yuri da Cunha e Matias Damásio, eu ouvia Kanye West e Kendrick. Todas essas influências se podem manifestar na minha arte a qualquer momento.

Eu sou rapper e venho evidentemente da escola riquíssima que é o Hip Hop mas sempre bebi e bebo de diversos estilos musicais e formas de criação artística para além do Hip Hop.

Hoje, posso ter uma música mais romântica por estar nesse mood fazer algo com vibe mais de Kizomba ou R&B. Amanhã, uma mais melancólica por estar em baixo e isso traduzir-se num boom bap com uma sample de soul. Depois disso, uma mais de ego trip num beat de trap porque me vi ao espelho e me estou a sentir extra-fresh hoje ahahah.

Quais são os teus planos para o futuro?

O meu sonho é viver da música. Já trabalhei em várias áreas e já experimentei várias atividades mas não há nada com que eu tenha uma ligação tão pura como a música. De forma mais imediata, aquilo que quero fazer é criar uma equipa para que possa funcionar de forma independente e não depender de “outsourcing” para criar a minha arte, como o Nipsey Hussle fez na América. Para isso, quero ter o meu próprio estúdio, equipamentos de fotografia, vídeo e criação de merchandise. Já tenho algumas pessoas com quem tenho trabalhado mas quero formar uma equipa. Depois disto, pretendo afirmar-me não só em Portugal como na lusofonia como um todo.

Acho que estamos na melhor era de sempre para criar música. Muitos dos fundamentalismos do Hip Hop desapareceram, é mais fácil que nunca publicarmos a nossa música e fazer networking. Pela primeira vez, estamos a ver artistas a conseguirem verdadeiramente atravessar fronteiras e irem para o Brasil, por exemplo. Eu não quero “criar música especificamente “para bater” no Brasil (ou em qualquer ponto do globo). Quero fazer arte boa e que a transição seja uma consequência disso, porque os artistas em Portugal estão, em termos de talento, prontos para enfrentar artistas de qualquer ponto da lusofonia, creio que seja uma questão de tempo. Se isso pode acontecer e se as pessoas gostarem genuinamente, porque não?

Qualquer artista pode neste momento criar uma faixa e viralizar. O importante é estarmos prontos para quando isso acontecer (e tenho fé que acontecerá) para não sermos apenas um one-hit wonder. É neste sentido que estou a trabalhar para montar uma estrutura que possa suportar o momento em que acontecer.

Como vês o teu papel na promoção da cultura negra na lusofonia através da tua música?

Eu acredito que sou um embaixador da cultura negra porque represento aquilo que ela pode ser e o quão irrelevantes podem por vezes ser as “barreiras” que nós próprios definimos mas sem nunca esquecer-me das minhas raízes. Eu sou um jovem angolano, nascido e criado em Portugal, que cresceu a ouvir rap americano e hoje em dia frequenta e foi campeão em eventos de batalhas com público predominantemente brasileiro (risos). Tudo isto, enquanto ele grava faixas em beats de Kizomba, R&B, Trap, Boom Bap ou Drill. Se isto não é representatividade, não sei o que é! Esta pluralidade exemplifica, ainda que sem querer, o quão rica é a nossa cultura e pretendo continuar a fazê-lo, simplesmente sendo eu próprio. Seja em batalhas, músicas, entrevistas ou onde for.

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