“Neste mundo, é preciso ‘tê-los’ no sítio para se ser preto”, Carlos Paca

13 de Janeiro de 2025
Entrevista Carlos Paca

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Carlos Paca iniciou a sua trajetória artística aos 9 anos, num percurso que cruzou diversas disciplinas, como música, ballet e teatro. Contudo, esse começo não foi livre de desafios. "Eu sou de Bacongo, norte de Angola. Imagina um Bacongo dizer que faz balé ou teatro. Durante muito tempo tive vergonha", confessa o ator, refletindo sobre as dificuldades culturais e familiares que enfrentou enquanto perseguia os seus sonhos. 


Após crescer em Portugal e construir uma sólida carreira no teatro clássico europeu, Paca teve a oportunidade de estudar nos Estados Unidos, passando pela New York Film Academy. Apesar de também ter frequentado instituições portuguesas de formação artística, como a Academia Portuguesa de Cinema Arte 6, optou por seguir um caminho independente, criticando o estilo de representação predominante na época. "Os atores da Escola Superior de Cinema e Teatro eram considerados canastrões. Não achei necessário continuar." Na televisão e cinema em Portugal, Carlos Paca viu-se frequentemente limitado a papéis estereotipados. "Tornei-me profissional a fazer de bandido, gangster, estripador ou em comédias. Mas sempre quis mais", explica, sublinhando o seu desconforto com a forma como os negros eram representados. 


Em 1998, com apenas 18 anos, tentou incentivar a indústria portuguesa a adotar uma visão mais inclusiva e internacional. "Portugal é um mercado pequenino. Falei com os grandes decision makers da televisão e do cinema, sugerindo que não discriminassem negros ou brasileiros. Somos quase um bilhão de falantes de português." Determinando expandir os seus horizontes, Carlos seguiu para Bollywood, a maior indústria cinematográfica do mundo, onde trabalhou em produções de renome ao lado de estrelas como Priyanka Chopra Jonas e Shahid Kapoor. "Há 14 anos, participei num filme em Bollywood. O mesmo realizador convidou-me no ano passado para outro filme, que está agora na Prime Video." Além da Índia, Paca também atuou em Espanha, numa coprodução com a televisão portuguesa e espanhola. "Trabalhei com a Esther Acebo, da série 'La Casa de Papel', e outros grandes atores. É uma experiência que fortaleceu a minha visão de um mercado global." 

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MREC RAHIZ
Entrevista Carlos Paca

📸 ©BANTUMEN


O seu primeiro grande papel, contudo, teve uma dimensão especial: interpretar um angolano milionário num contexto que reflete as realidades socioeconómicas do país. "Foi um papel digno de qualquer ser humano. Fiz o papel de um angolano novo-rico que ganhou dinheiro na exportação e negociação de diamantes. Ele vive das marcas e do que exibe." Carlos Paca deixa claro que a sua carreira é um reflexo de resiliência e ambição. Apesar das barreiras iniciais, ele soube transformar as suas experiências em trampolins para uma representação mais digna e abrangente da cultura angolana e africana no panorama global.


Carlos, nesta conversa sincera sobre a sua carreira e desafios enfrentados como ator angolano no cenário internacional, partilhou várias reflexões sobre a sua experiência no mundo do cinema, a luta pela inclusão e a realidade de ser um africano numa indústria dominada por normas ocidentais. Para ele, ser africano vai além do passaporte, sendo um reflexo de uma vivência marcada pela superação de barreiras estruturais, culturais e raciais.


"Eu acredito que se o Einstein fosse preto, o mundo não saberia o que ele sabe", afirma Carlos, destacando como o mundo tende a esconder ou subestimar o potencial dos africanos e das suas contribuições para a sociedade global. Paca contextualiza isso com a realidade das oportunidades, onde um passaporte angolano, ou de qualquer país africano, não abre as mesmas portas que o passaporte de uma nação ocidental, dificultando a expansão para mercados como Hollywood. O ator menciona a sua experiência pessoal ao perder uma oportunidade em Hollywood devido a complicações com o seu passaporte angolano, enquanto observa que, com um passaporte português, as portas poderiam ter-se aberto mais facilmente. "Eu perdi a minha grande oportunidade para Hollywood, ganhei um casting, mas o meu passaporte estava caducado. Tive que ir a Angola para renovar e, no processo, perdi a chance", conta ele, refletindo sobre as dificuldades que muitos atores africanos enfrentam devido à burocracia e aos entraves políticos dos seus países.


A partir da sua experiência, Carlos observa que as dificuldades enfrentadas por atores negros, não só em Portugal, mas em toda a diáspora, se estendem ao tipo de papéis que são oferecidos. "Nós fomos fazendo os mesmos papeis, com diferentes nomes, em diferentes projetos, over and over again", lamenta, ressaltando a falta de diversidade e representação de intelectuais e profissionais dignos na mídia. Aponta ainda que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, os jovens negros sonham em ser gangsters, influenciados por séries como "Top Boy", da Netflix, que perpetuam esses estereótipos.


Carlos também discute o impacto da assimilação cultural, onde muitos negros, especialmente os de segunda ou terceira geração em países como Portugal, tentam integrar-se numa sociedade que, muitas vezes, os marginaliza. "Eles se reprimem a si mesmos, têm vergonha do que são, para se integrar", observa, mostrando como a pressão para se adaptar à cultura dominante pode resultar numa perda de identidade. Para ele, a verdadeira integração não exige a negação da identidade africana, mas o reconhecimento da pluralidade cultural. "Eu sou angolano, sou do norte, bakongo. Tu és português? Aceita-me como sou, encontramos um equilíbrio e estamos na boa", conclui, reforçando a importância de respeitar as identidades culturais e de nos apoiarmos mutuamente, independentemente de nossa origem.


Por fim, Carlos Paca menciona como a sua vivência no exterior o fez entender que ser africano é um desafio constante, onde as condições sociais e políticas dificultam o avanço. "Ser africano não é fácil. Não é, como dizem os ingleses, it's not for boys, it's for men, you got to have balls to be black", reflete, usando o humor e a sabedoria adquirida ao longo da sua carreira para reforçar a resistência que os africanos devem ter para navegar num mundo repleto de preconceitos e obstáculos.

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