Na 3ª edição do Festival Kontornu a dança é linguagem para os 50 anos de independência de Cabo Verde

20 de Abril de 2025
Festival Kontornu cabo verde djam neguin
Fotografia ©BANTUMEN

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Entre 2 e 10 de Maio de 2025, Cabo Verde recebe a terceira edição do Festival Kontornu, uma celebração que ultrapassa os limites do palco para afirmar-se como espaço de transformação social, política e cultural. Com uma programação expandida ao longo do ano, a edição deste ano ganha particular simbolismo por coincidir com o 50.º aniversário da independência do arquipélago.


Depois de duas edições marcantes e um interregno estratégico, o festival regressa com uma proposta mais consolidada, comprometida com a formação, descentralização e valorização das artes performativas cabo-verdianas, especialmente a dança, como ferramenta de reconfiguração identitária e afirmação da contemporaneidade.


A fusão entre o Batuku e a dança contemporânea, proposta pelo festival “Kontornu”, representa um gesto artístico de profundo simbolismo identitário. Ao unir uma expressão tradicional enraizada na história de resistência cabo-verdiana com linguagens performativas contemporâneas, o festival afirma uma visão de continuidade e reinvenção cultural. 


Esta ideia nasceu da necessidade de criar uma plataforma que dialogasse com a memória coletiva e, ao mesmo tempo, projetasse novos caminhos para a criação artística no país. Num momento em que Cabo Verde celebra 50 anos de independência, esta proposta reflete uma consciência política e estética cada vez mais presente: a de que tradição e modernidade não se excluem, mas se potencializam mutuamente. O “Kontornu” torna-se, assim, espelho de um tempo em que o país procura afirmar-se globalmente sem perder de vista as suas raízes, valorizando o Batuku como património vivo e a dança contemporânea como ferramenta crítica e transformadora.


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Agenda cultural

"Quando se pensou o festival em 2016, a ideia era procurar um nome que fosse sonante, que fosse representativo, que de alguma forma trouxesse algo da gente, da essência da dança cabo-verdiana, dentro daquilo que é a proposta estética do festival: refletir sobre a contemporaneidade, sobre os desafios do nosso tempo, sobre as questões do nosso tempo. Então, Kontornu é essa aglutinação entre essas duas palavras - o 'cotorno', que é o movimento de bater das ancas do batuco, e o 'contemporâneo'. Acredito que isso, de certa forma também, é um movimento político, não apenas estético, de pensar a contemporaneidade cabo-verdiana a partir da sua relação com outras contemporaneidades" explicou-nos Djan Neguin, diretor artístico do festival.  


O Festival Kontornu nasceu em 2016 e teve uma segunda edição no ano seguinte, ambas ainda tímidas, com uma programação essencialmente local e marcada por pequenas colaborações entre artistas residentes na cidade da Praia. Apesar de algumas participações internacionais, tratou-se de um início modesto, enraizado numa rede caseira de criação artística. Seguiu-se um hiato de oito anos, motivado por dificuldades de financiamento e por um contexto pouco favorável à continuidade de projetos culturais. 


Agora, em 2025, o festival regressa com o firme propósito de contornar esse cenário de precariedade estrutural e reivindicar o lugar da arte e da cultura como direitos fundamentais. O seu relançamento representa não apenas um gesto criativo, mas também uma jornada de resistência e afirmação política.


A escolha do número três como marco simbólico não é aleatória. Na numerologia e em diversas tradições culturais, o três representa harmonia, expressão criativa e a tríade corpo-mente-espírito. No contexto do festival, essa tríade traduz-se em criação, partilha e transformação.


Neste ano emblemático, o “Kontornu 3” surge como resposta ao desejo de consolidar uma nova era na produção artística nacional, aliando tradição e inovação. A efeméride dos 50 anos de independência é, assim, ponto de partida e catalisador para uma programação que promete reimaginar os contornos da arte contemporânea em Cabo Verde.



“ A ambição é formar uma plateia crítica e espontânea”

Djam Neguin

"Acaba por ser bastante especial retomar o festival num ano em que se celebram os 50 anos da nossa independência. E um festival que vem com uma proposta talvez um pouco na contramão da maioria daquilo que é a produção de eventos culturais em Cabo Verde, que é muito mais voltada para o entretenimento. Ao se propor uma plataforma de expressões estéticas, artísticas, de pensamento, de experimentação do corpo, da palavra, do gesto, da presença - que possam trazer outras experiências para o público - estamos também a querer dizer que é preciso alargar, de facto, a produção estética. É preciso alargar o acesso à cultura. É preciso entender que a cultura é dinâmica e que as expressões artísticas podem acontecer em diferentes formatos, e que também há artistas e produções que precisam desses espaços e desses eventos como o Kontornu para, de alguma forma, conseguirem trazer, como disse anteriormente, novas experiências ao público" acrescentou.  


Pensar o Festival Kontornu fora do seu contexto seria negar a sua própria razão de existir. A proposta parte precisamente daquilo que o evento pode construir e sedimentar no território onde se inscreve não apenas no espaço geográfico, mas também no plano emocional e cultural. Embora o festival ainda esteja longe do modelo idealizado, a sua força reside na capacidade de pensar e agir a partir de dentro: das comunidades, dos bairros, dos grupos e companhias de dança, da cidade, da arquitetura, das paisagens e dos movimentos que definem a vida quotidiana em Cabo Verde. É nessa escuta do território que se desenha um festival com verdadeiro impacto.


"Tudo isso deve compor o processo de pensar o festival e o processo de pensar como o festival também contribui para esse avanço - para que mais 50 anos de liberdade, de expansão, de autonomia e de superação das nossas dificuldades, mas também de celebração das nossas grandes vitórias, dos nossos afectos, das nossas conquistas e da nossa potência enquanto povo".


Para Djan Neguin, as artes performativas em Cabo Verde, e em particular a dança, continuam a enfrentar um cenário marcado pela ausência de políticas públicas consistentes, pela falta de investimento privado e pela negligência institucional. Trata-se de uma contradição gritante, tendo em conta a presença forte e quotidiana da dança na vida dos cabo-verdianos. Essa expressão artística, profundamente enraizada nos corpos e nos gestos do dia-a-dia, permanece desprovida de mecanismos que garantam a sua sustentabilidade.  


Para os promotores, artistas e criadores, faltam estruturas básicas: agenda cultural estável, espaços de criação, apoio à continuidade dos projectos e meios para a sua expansão, tanto interna como internacionalmente. Sem isso, o sector vive num ciclo vicioso de precariedade, onde fazer arte é, muitas vezes, um acto de pura teimosia.  


Essa teimosia, embora admirável, torna-se perigosa quando depende apenas de vontades, afetos e parcerias informais. É urgente inverter este cenário. Cabo Verde precisa de reconhecer a dança como um património vivo, com potencial para gerar impacto social, económico e cultural. E, sobretudo, precisa de começar a investir seriamente nisso.


"Só para complementar a pergunta, dizer que, realmente, esta edição acontece através de um processo voluntário - um processo voluntário com pouquíssimos recursos, com recursos aquém do orçamento desenhado, com fraco envolvimento das empresas privadas e das instituições públicas. Isso deixa-nos realmente muito tristes e desamparados, porque acreditamos que esta é uma iniciativa que, pelo que já conseguiu mobilizar sem esses recursos e com muito trabalho árduo, poderia sim ser uma das grandes marcas culturais de Cabo Verde. Tem tudo para se tornar um dos maiores eventos e uma das maiores potências de promoção turística, promoção cultural, intercâmbios e visibilidade do país, sobretudo".


Uma das principais apostas da edição de 2025 é o investimento na formação da comunidade artística. Através de residências artísticas e incubadoras criativas, o festival propõe-se a criar condições estruturais para o desenvolvimento técnico, estético e crítico de jovens criadores cabo-verdianos.


Estes programas formativos serão dinamizados em colaboração com mentores e coreógrafos internacionais, promovendo um intercâmbio que visa expandir as linguagens artísticas locais e inserir Cabo Verde num circuito global de criação. O foco está tanto no conhecimento técnico como na reflexão sobre o papel das artes na sociedade contemporânea cabo-verdiana.


As incubadoras criativas funcionarão como pontes entre o ensino e a prática profissional, incentivando a criação de projetos performativos inovadores com acompanhamento especializado.


Mas o festival não se esgota na formação dos artistas. Um dos pilares do Kontornu 3 é a formação de públicos e a descentralização do acesso à cultura. Espetáculos, oficinas e debates serão levados a zonas periféricas, bairros e instituições educativas, desafiando a lógica centralizadora que historicamente limita o alcance das manifestações culturais no país.


A proposta é clara: envolver comunidades diversas no processo artístico, criar espaços de diálogo entre criadores e público e fomentar uma cultura de participação crítica e valorização das artes performativas.


O festival reconhece ainda a centralidade das danças urbanas — como o hip hop, o afro house e o breakdance — na vivência artística da juventude cabo-verdiana. Longe de serem manifestações marginais, estas formas são assumidas como expressões legítimas da contemporaneidade e da realidade social vivida nas periferias.


Ao incluí-las na programação, o Kontornu afirma uma visão plural da dança e rompe com a hierarquia entre o clássico e o popular, o erudito e o periférico. O objetivo é claro: integrar e valorizar todas as expressões que contribuem para a construção de uma identidade cultural em movimento.


O Kontornu não se limita a uma semana de espetáculos. Desde janeiro de 2025, o festival já está em movimento com uma programação off composta por residências, conversas, oficinas e momentos de experimentação. Esta abordagem contínua reforça a ideia de que um festival é também um processo, e não apenas um acontecimento pontual.


Durante os dias centrais de festival, de 2 a 10 de Maio, o público poderá assistir a uma programação condensada que reúne artistas locais e internacionais, projetos de co-criação, performances inéditas e debates sobre o futuro das artes performativas em Cabo Verde.


O Festival Kontornu aproveita o posicionamento geográfico estratégico do arquipélago — entre África, Europa e América Latina — para se afirmar como plataforma de diálogo intercultural. Ao mesmo tempo que atrai curadores e programadores internacionais, o evento também projeta os talentos locais para outras geografias, reforçando o seu papel na construção de uma rede de circulação e exportação artística.


Essa dimensão internacional é essencial para que o país consolide uma cena cultural sustentável, com capacidade para gerar impacto económico e simbólico no contexto das indústrias criativas.


A infância e juventude ocupam também um lugar central na estratégia do festival. Ao incluir uma programação infantil, o Kontornu procura criar oportunidades de contato com a arte desde cedo, contribuindo para a formação de uma nova geração de espectadores críticos e participativos.


Mais do que apresentar espetáculos, o festival quer construir pontes entre artistas, comunidades e territórios. Ao garantir que as criações artísticas dialogam com as realidades locais, o Kontornu contribui para uma redefinição da relação entre cultura e cidadania.


"Como disse anteriormente, eu não consigo conceber desenhar um festival que não seja a partir de um olhar, de uma escuta, das experiências e da prática da dança na contemporaneidade. Quem são os que dançam? O que dançam os que dançam? Quais são as vontades? O que é que o corpo mais palpita?  É preciso entender que a juventude cabo-verdiana está também, cada vez mais, a consumir esses processos de globalização. E, nos últimos cinco anos, vimos crescer essa tendência por esse universo, esse estilo que se designa como afrodance, e que é, digamos assim, o core da prática da dança da maioria das companhias que existem em Cabo Verde.  São imensas as companhias que praticam o afrodance, o afrohouse, o afrobeat. E é a partir delas, e com elas, que se devem trabalhar estas iniciativas. Não se pode deixar de lado. Eu acho que esse é o ponto número um".


Djan Neguin, acrescenta ainda que "o festival precisa estar sempre a questionar-se. O festival precisa de se estudar, os festivais precisam de se repensar sempre e nunca chegar a um lugar de dado, de adquirido. É sempre necessário entender como podemos fazer mais para a comunidade, junto com a comunidade que pratica, que é dançarina, que é artista, que é coreógrafa, que é profissional da dança. E o que é que pode ser feito para incluí-los? Esse processo tem de ser muito dialogado e muito levado pouco a pouco, porque transitar de uma linguagem, conseguir trazer essa experiência para uma experiência cénica, para uma experiência de pensamento cénico, para uma experiência de dramaturgia, para uma experiência que seja fora desse formato de coreografias para vídeo ou para a web, é um processo que leva o seu tempo. Acredito, portanto, que o festival está também nesta margem - nesta encruzilhada entre aquilo que está a acontecer e para onde, talvez, está a apontar".


A visão a longo prazo também atravessa o pensamento de quem dá corpo ao festival. Quando questionado por Wilds Gomes, sobre o que espera que tenha mudado até 2030 graças ao Kontornu — e que marcas deseja deixar nos corpos, nas mentes e nas ruas de Cabo Verde — a resposta foi clara: dignidade e continuidade.  


"O desejo é que, até lá, o festival seja sustentado por uma estrutura financeira sólida, capaz de remunerar equipas profissionais que pensem e executem o evento durante todo o ano, com ações descentralizadas, contínuas e pensadas para diferentes públicos. Mais do que isso, a ambição é formar uma plateia crítica e espontânea, que reconheça a arte como parte da sua vivência quotidiana, e que o festival seja parte da agenda cultural nacional e internacional.  Que as ruas, os corpos e as mentes tragam as marcas de uma experiência artística enraizada no território, mas com horizontes amplos — onde a dança não só se vê, mas se vive, se sente e se transforma em potência colectiva".


Kontornu 3 é mais do que um festival: é um gesto político, cultural e pedagógico. Um convite à criação coletiva, à reflexão crítica e à celebração da arte como linguagem de transformação num Cabo Verde que se prepara para os próximos 50 anos.

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