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O Funaná é um género musical que surgiu entre os finais do século XIX e início do século XX no interior da ilha de Santiago, no seio da classe camponesa, tendo na gaita (acordeão diatónico de botões), no feru (um pedaço de barra de ferro batido com uma faca) e a voz do cantor como os elementos essenciais para a realização de uma performance.
Surgido entre a massa popular desprovida de instrução escolar, o Funaná sofreu enorme repressão e descredibilização por parte do regime colonial por causa do seu ritmo vibrante, mas também devido às festas denominadas de “badju gaita”, nas quais os presentes se reuniam em torno dos tocadores/cantores e dançavam formando pares, na maioria um homem e uma mulher. No entender do regime colonial português e também da Igreja Católica, estas manifestações nada mais eram do que um ambiente e um estilo de música endiabrados e propiciadores de comportamentos devassos e imorais.
Os regimes coloniais, sejam eles quais foram, sempre usaram de todos os meios para desumanizar o oprimido até não poder mais, de forma a executar o seu plano de colonização da melhor forma possível. Essa desumanização e menosprezo pelo “outro” perpassou os planos político, económico, social e cultural das sociedades colonizadas, incutindo nelas a ideia errónea da sua inferioridade perante o colonizador europeu. Sendo assim, tudo aquilo que era criação do oprimido no sentido de dar valor à sua participação em sociedade era assemelhado às forças maléficas, obrigando-o a viver sua tradição na clandestinidade para que não recaísse numa correção levada a cabo pelas forças que mantinham operacional o regime colonial.
Bino Branco, dos Ferro Gaita, e o músico Vadú
Em Cabo Verde, mormente na ilha de Santiago, por ser a ilha que dispunha de um número maior de habitantes com traços fenotípicos dos africanos do continente, a vigilância e o regramento da população foi intensa e persecutória. As medidas visavam não deixar margem de manobra à população santiaguense, principalmente a do interior da ilha, nos momentos de festividades e recreação, uma vez que era nesses espaços que sobressaiam mais as manifestações culturais cabo-verdianas e que se assemelhavam em muitos aspetos às dos africanos do continente.
Uma das muitas consequências advindas da transgressão às normas impostas pelo regime colonial e pela Igreja relativamente ao Funaná era a não emissão de certos documentos de que necessitavam as pessoas ou o impedimento de batizarem os filhos, quando elas insistiam em não obedecer às ordens impostas pelo sistema colonial. A Igreja, através dos seus servidores, principalmente na pessoa do catequista, denunciava os tocadores de gaita quando eles organizavam as suas festas ou eram convidados para participarem nas festas de terceiros com o objetivo de alegrar o ambiente, o que, na maioria das vezes, resultava na detenção dos tocadores/cantores ou no pagamento de uma multa que nunca estava ao alcance destes, devido à sua condição social. Portanto, todos estes empecilhos criados em torno deste género musical só tinha uma finalidade: inviabilizar o desenvolvimento do Funaná – hoje, sem dúvida, visto como parte do património cultural imaterial e com um valor incomensurável na cultura do cabo-verdiano.
Não tendo conseguido aniquilar a sua existência e aceitação entre aqueles do meio rural, o regime colonial tentou impedir a sua entrada no meio urbano, ou seja, fez de tudo para que a capital do país, Praia, não fosse “infestada” por um género musical que incitava à “lascívia e comportamentos indecorosos”. Nesta senda de repressão sofrida por certas expressões culturais, o Batuku foi mais uma em que o poder e capacidade de coerção do regime se então se fez sentir, tanto mais se considerarmos que, ao contrário do Funaná, um género musical associado aos homens, o Batuku está mais relacionado ao sexo feminino, no qual a sensualidade do corpo da mulher é uma das nuances que mais sobressaem durante a performance do mesmo. Para além disso, aos elementos (femininos) que se juntam numa roda, com um instrumento (txabeta) entre as pernas para a produção do som característico do Batuku, no meio dessa roda está uma (às vezes mais) mulher dançando em que o requebrar da cintura é obrigatório durante o momento em que decorre a performance.
Num trabalho etnográfico de valor inquestionável para o estudo e a compreensão do Funaná enquanto “forma de sociabilidade”, o antropólogo português Rui Cidra defende que “a administração colonial concebeu os bailes como espaços e tempos transgressores da ordem colonial. As enérgicas práticas expressivas da gaita e feru eram vividas pela população como os momentos de exceção da sabura (“o bom”, “o excecional”, o intraduzível prazer crioulo) num quotidiano de adversidade ecológica, marcado pelas assimetrias e exiguidades das economias de trabalho camponês. Gaita, feru e voz, em especial o acelerado ritmo (konpasu) do funaná, despoletavam reações enérgicas, intensas sociabilidades e formas de comunicação.” [Funaná, Raça e Masculinidade: Uma Trajetória Colonial e Pós-Colonial. Ed. Outro Modo, 2021].
Corroborando a tese de Rui Cidra, o Funaná, e aqui acrescento o Batuku, mais do que simples géneros musicais, são “formas de sociabilidade” nas quais a sociedade rural do interior da ilha de Santiago transmitiam e continuam a transmitir as suas vivências, valores, conhecimento, etc. Através da Gaita e Feru podemos constatar a exaltação da ideia de masculinidade Badiu, isto é, através do Funaná conseguimos aferir como se dá a demonstração de ser homem no espaço social santiaguense. No último single de um dos mais destacados conjuntos de Funaná, os Ferro Gaita, intitulado Carne Salgado, encontramos uma passagem que retrata exatamente esta ideia:
“Ami N ten dós faka, dós tabakeru, dós mudjer, fora kes ki ta ben ta bai” (em português: eu tenho duas facas, dois tabaqueiros, duas mulheres, excetuando aquelas que vêm e vão).
Aqui temos a exaltação do homem santiaguense em particular, mas também do homem cabo-verdiano no seu todo, em que ter uma relação conjugal só com uma mulher não era suficiente, ou seja, quanto maior era o número de mulheres com quem se mantinha uma relação conjugal, mais homem esse indivíduo demonstrava ser. Uma outra forma de expressão da masculinidade era aquela, ainda usando o Funaná, em que os tocadores de gaita competiam entre eles para atestar a capacidade do outro, chegando a haver brigas entre eles quando a arte de tocar o acordeão/gaita não era suficiente.
Também encontramos nas mais variadas composições do Funaná, ditados populares em que a presença dos valores e normas sociais do cabo-verdiano é figura de proa. Aqui também vemos o Funaná a desempenhar um papel importante na socialização desses valores e normas na sociedade cabo-verdiana. Ainda, tendo como exemplo o último single dos Ferro Gaita, passaremos a citar a seguinte passagem:
“Branbran di mundu ta fika li mé, pamô kaxon ka ten gabeta, pa mi pulísia podi ba raforma, nha pustura ka ta dá-s trabadju. Si N bebi grogu N ka bebi juiz, katxor balenti ka ta manxi na festa.” (As coisas do mundo ficam aqui porque caixão não tem gaveta. Se for por mim a polícia pode se reformar, a minha postura não lhe dá trabalho. Se eu beber grogue não bebo juízo, cão valente não amanhece na festa.)
No excerto supra é possível vislumbrar uma preocupação em relação à ideia do consumo que afeta a sociedade atual, por isso este alerta dos Ferro Gaita à embarcação da obrigatoriedade de deixarmos tudo aqui depois da morte. Também advertem tanto para a questão de uma boa conduta social no nosso quotidiano, para que não seja necessário a atuação das forças policiais, necessidade de um consumo moderado do álcool que, caso contrário, poderá nos levar a pensar que não foi somente o álcool a ser ingerido, mas também o juízo, uma vez que, muitas pessoas quando consomem álcool exageradamente agem como se tivessem perdido a faculdade de raciocínio.
Também é possível encontrar um discurso de revolta contra aqueles que sempre se opuseram à afirmação deste género musical enquanto fator de engrandecimento da cultura cabo-verdiana. Um dos expoentes máximos do Funaná e, consequentemente da nossa cultura, Finason, grupo surgido em 1985, tendo nos irmãos Zeca e Zéze di Nha Reinalda, uns dos seus fundadores, sendo o primeiro proveniente dos Bulimundo – Grupo renomado no contexto musical cabo-verdiano. A discografia produzida por estes dois grupos é um repositório de dizeres, saberes, valores, normas sociais, tipicamente santiaguenses, mas também é onde encontramos aquela crítica feroz, ao mesmo tempo sarcástica, do sistema que sempre oprimiu o Funaná, e que acabou por deixar resquícios de preconceito e menosprezo entre muitos cabo-verdianos de hoje, relativamente a este género musical. Senão vejamos! Numa das faixas que compõem o álbum Farol (1992) intitulada “anbienti mas seletu” os Finason afinam a sua crítica contra o menosprezo por que passou e continuava a passar uma das maiores expressões culturais do arquipélago, quando na faixa mencionada acima afirmam:
“Negru di undi bu ben, Nijéria, Giné ó Senegal, Negru ka ta dexa di ses kusa, Funaná e so na baraka di papelon. Kantiga di povu ta nkumoda anbienti, anbienti di kes mesmus gentis.” (em português: “Negro de onde vens, Nigéria, Guiné ou Senegal? Negro não abandona as suas coisas, Funaná é só na barraca de papelão. Música de povo incomoda o ambiente, ambiente daquelas mesmas pessoas.)
Aqui, podemos notar que ao Funaná não era permitido ocupar certos espaços, por ser um género musical associado aos africanos, vistos como povos sem cultura e capacidade cognitiva, portanto, desprovidos de qualidade e nível. Ao contrário por exemplo da Morna, que sempre foi vista como o expoente máximo da nossa cultura, a invenção maior do cabo-verdiano, demonstrando o seu nível de cultura e instrução, logo, algo que nos foi legado pelos europeus, expressando a sua “superioridade comparativamente aos outros povos”. Como bem realçou o grande intelectual martinicano, Frantz Fanon, “o mundo colonial é um mundo compartimentado. Sem dúvida é desnecessário, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades nativas e cidades europeias, de escolas para nativos e de escolas para europeus, (…) essa abordagem do mundo colonial, de seu arranjo, de sua disposição geográfica, nos permitirá delimitar as arestas a partir das quais se reorganizará a sociedade descolonizada.” Ou seja, não podendo extirpar o Funaná da sociedade santiaguense, o regime colonial “determinou” então que ele deveria se restringir ao meio rural, lugar por excelência da “selvageria, incultura e devassidão”. Foi só no pós-independência que o Funaná se viu como parte integrante da cultura cabo-verdiana graças ao trabalho de “levantar” o Funaná levado a cabo pelo Carlos Alberto Silva (Katchás) com o grupo Bulimundo, numa altura em que ressoava com fulgor na sociedade cabo-verdiana o clamor de Amílcar Cabral no sentido da “reafricanização dos espíritos”.
Em suma, o Funaná ainda sofre com a estigmatização por parte de uma boa franja da sociedade cabo-verdiana, apesar do trabalho que tem sido desenvolvido por parte dos grupos musicais e artistas que têm no Funaná o género musical predileto na elevação da cultura cabo-verdiana. Uma forma de atenuar esse preconceito, que ainda paira sobre este género musical e outros, é a introdução de conteúdos específicos no nosso sistema de ensino, mormente, os ligados ao seu surgimento, desenvolvimento e todos os obstáculos que lhe foram impostos para a sua marginalização até à chegada de 1975, caso contrário continuaremos a perpetuar esses preconceitos de que padece e que limita a todos de fortalecermos o sentimento de pertença.
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