"Criamos o nosso próprio mercado. Ninguém pode nos boicotar", Loreta KBA

29 de Abril de 2025

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Loreta KBA é um rapper e produtor nascido e criado na Linha de Sintra. Frequentemente apontado como um dos maiores nomes do rap crioulo, não esconde que a sua visão enquanto artista está diretamente relacionada com o contexto em que cresceu.


"Nasci num Cabo Verde que existe em Portugal”, conta a propósito da vivência que teve entre Cacém, Lopas e Mira-Sintra. Entre a década de 70 e 80, o fluxo de imigrantes vindos, sobretudo, das ex-colónias era significativo. Muitas vezes atiradas para contextos periféricos e marcadas por um contexto de exclusão socioeconómica, estas comunidades viam nos bairros a única alternativa para habitação. Lá, e apesar da distância geográfica, o crioulo impunha-se como língua e era falado pela maioria das pessoas. Foi nesse contexto que Loreta cresceu. E foi também a partir daí que passou a ver no crioulo a sua forma de expressão. “Só aprendi a falar português quando fui para a escola”. Embora pareça estranho, durante algum tempo, essa foi a realidade dos elementos que compunham a segunda vaga de imigrantes: nascer cá, com a língua e as tradições de lá [Cabo Verde]. 


Para quem pensa e sente em crioulo, a conceção vai além do idioma, é uma linguagem de pensamento, de criação e de resistência. Influenciado por nomes como TWA, grupo conhecido pelo álbum e single “Miraflor”, e Nigga Poison, grupo estabelecido na década de 90 e considerado um dos pioneiros da cena musical em crioulo, Loreta começou a escrever as primeiras composições, aos 11 anos, naquele que considerava ser o seu idioma materno. Entre os 15 e os 16 anos gravou, pela primeira vez, com o estúdio móvel do produtor e músico Primero G, num mini-disc.

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A música não nos dava dinheiro... foi uma decisão inteligente deles procurarem outro meio de subsistência

Loreta KBA

A capacidade lírica e versatilidade fizeram com que passasse a frequentar batalhas de rap. O formato, muito comum entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, era organizado de forma informal, e funcionava como um espaço de improviso e confronto entre MCs, onde a criatividade e a destreza verbal decidiam o vencedor. Era também uma forma de afirmação e foi nesse terreno que o artista começou a plantar algo que viria a colher anos mais tarde.

Antes do nome que todos conhecemos hoje, era apontado como “arma secreta”. Diz-nos que apesar da pouca altura, à época, era visto pelos pares como um trunfo. "Era tipo: estamos a perder a batalha, mas temos aqui uma arma secreta. E eu entrava...". Que futuro estaria reservado a um jovem que rimava com a confiança e liricismo de um veterano?

A criação dos KBA (Kutelo Black Attack) trouxe as respostas ao mesmo tempo que ajudou a cimentar o percurso. No início dos anos 2000, Loreta juntou-se a Óscar, Zizisso e Txapo, amigos de zona e com quem partilhava a paixão pela música. "Crescemos naquela zona que era o Cutelo. Tínhamos de inventar um grupo, decidimos que era o Kutelo Black Attack", conta. Juntos gravaram, em 2012, o tema “Nha identidadi” com assinatura de Katana Produções. O single acabou por se tornar chancela do grupo, acumulando mais de um milhão de visualizações no YouTube. O futuro parecia promissor, mas o facto de, na altura, a música não garantir sustento a artistas independentes acabou por ditar o afastamento profissional. Não houve uma separação formal e a amizade mantém-se até aos dias de hoje. O sufixo KBA, ainda usado por todos os elementos do grupo, é a prova de que a união era, e é, além da música. "A música não nos dava dinheiro... foi uma decisão inteligente deles procurarem outro meio de subsistência", explica, acrescentando que isso não o impediu de continuar a tentar a carreira a solo. Trabalhou nas obras e teve outros empregos enquanto produzia e compunha. Escrevia sempre que podia, ia ao estúdio quando dava. 


Sem que ninguém fizesse antever, o single “Bu atitudi muda” acabaria por se tornar não só um dos seus maiores hits, como o ponto de viragem a nível artístico e financeiro. 1,5 milhões de visualizações de uma música que “não era para ser” é fruto da vulnerabilidade do artista. "Essa música não era para ser. Eu não ia lançar essa música". Pela primeira vez Loreta expôs abertamente emoções íntimas, num tom melódico que contrastava com a agressividade tradicionalmente associada ao rap. "Eu nunca tinha escrito nada tão íntimo e tão melódico". Contra todas as expectativas, o público acolheu a canção com entusiasmo e identificação imediata. 

Loreta kba entrevista

📸 Foto BANTUMEN

Além da afirmação no cenário musical, esse foi o ponto de partida para o seu primeiro concerto pago, nas festas do Vale da Amoreira. Iniciava-se uma nova fase da carreira, que acabaria por levá-lo a Cabo Verde pouco tempo depois. Os KBA foram convidados para abrir um espetáculo de Anselmo Ralph, em 2014, na Cidade da Praia. A receção no aeroporto trouxe-lhes a dimensão que não sabiam que tinham. “Tínhamos pessoas à nossa espera no aeroporto. Isso é completamente impensável" . Para Loreta, o espetáculo representou uma viragem a nível artístico e pessoal, muito além da fama e do dinheiro. "Mesmo que isso não dê dinheiro, vale a pena aproveitar este calor, essas pessoas". 

Apesar da experiência em Cabo Verde e de ser apontado como uma figura incontornável do rap crioulo, o músico recusa esse estatuto. "Eu não consigo pensar em mim como um grande artista", diz. E atribui a longevidade e a solidez do seu percurso não a um estatuto de estrela, mas ao facto de ter sabido adaptar-se, observar e agir com estratégia. Gosta de estar nos bastidores do próprio sucesso, como negociador e gestor, tanto quanto no estúdio. "Tenho uma veia de empreendedor... gosto da parte de negociar shows, de procurar novas maneiras de furar aqui ou ali." 

Sem apoio empresarial desde o início, Loreta tem assumido o duplo papel de gestor e artista, numa lógica de autossuficiência forçada pelas circunstâncias do mercado musical. "Se não tivesse uma veia de quem queira negociar, se não tivesse também paciência de saber ouvir nãos... era impossível”. Negociar concertos, gerir a própria carreira, estudar o mercado e manter uma rede de contactos ativa é algo que admite gostar de fazer. "Gosto da parte de negociar shows, gosto da parte de procurar novas maneiras de conseguir furar aqui ou ali”.

Ainda assim, Loreta, o criador, e Loreta, o produtor/manager são, segundo o artista, distintos na abordagem e na visão. "O Loreta produtor é como se fosse o curador... é completamente diferente do Loreta criativo". O primeiro entra em estúdio com uma mentalidade livre, quase como se fosse sempre a primeira vez. "Entro no estúdio com a mentalidade de virgem", afirma, descrevendo esse momento como uma redescoberta da criação. Não há fórmulas: por vezes inspira-se em sonoridades antigas, como um sample dos Tubarões, outras vezes desafia-se com um drill moderno. Já o Loreta produtor assume o papel de filtro, e avalia o que pode ser publicado, guardado ou adaptado. "É ele que diz: 'Isto aqui está engraçado, se calhar é para colaboração', ou 'Isto vai para a gaveta'”. 


O que une, então, dois lados tão distintos? A resposta está na consciência. Para Loreta, quer na vertente criador, quer na vertente produtor, a música é uma ferramenta de denúncia e transformação social. Esse foi um dos motivos que o levou a integrar a primeira versão do projeto “Nu sta forti”, criado na sequência da morte de Odair Moniz e que uniu artistas como Apollo G, Landim, Ne Jah e Vado Mas ki As, com o objetivo de denunciar o racismo e a violência policial, promovendo a memória das vítimas. "Vou ter sempre um dedo nesse tipo de coisas, porque é algo que me toca profundamente, algo que não me deixa dormir”, admite reforçando a ideia de que o rap é, antes de tudo, um ato de cidadania.

Quero que os meus pais tenham muito orgulho de mim durante o tempo que eles estão cá

Loreta

Essa postura acaba por se refletir na sua música e na forma como evita o uso gratuito de linguagem ofensiva nas suas letras. "Quero que os meus pais tenham muito orgulho de mim durante o tempo que eles estão cá." Ao analisar a sua trajetória, admite que nem sempre teve esta preocupação. "Quando eu era mais novo, eu não queria mesmo saber". Com o tempo, e sobretudo com o amadurecimento pessoal e familiar, essa consciência foi-se impondo. Músicas como “Skeci di mi”, “Txabeta di mundu” e “Dja bu cumi hoji” evocam esse amadurecimento, aliado a uma consciência social e crítica política.


Mesmo ao abordar temas como o beef no rap, defende o respeito e a inteligência emocional: "o mais inteligente a fazer é manter a cena na música e deixar isso bem explícito." Para o artista, o beef pode ser um elemento válido dentro da cultura hip hop, desde que não ultrapasse os limites do respeito pessoal e deve ser mantido como um exercício lírico e competitivo, sem se desvirtuar em ataques pessoais ou agressões físicas. A título de exemplo, menciona as trocas entre Kendrick Lamar e Drake como demonstração de que o confronto pode coexistir com respeito mútuo, criatividade e profissionalismo.  


A paternidade, mais recente, veio aprofundar essa dualidade entre o Nuno - o homem, marido e pai - e o Loreta - o artista. "Tenho que fazer tudo para protegê-la [à família] tanto do mundo como de mim próprio", afirma acrescentado que o nascimento da primeira filha passou a exigir um compromisso redobrado com a responsabilidade, tanto no plano pessoal como no artístico. A postura, contudo, nada tem a ver com uma suavização do discurso para ser aceite. Assume, aliás, que "nós criamos o nosso próprio mercado. Ninguém pode nos boicotar".


Loreta regressa aos palcos a 10 de maio, com “I love KBA”, concerto de carreira que acontece no Lisboa Ao Vivo. O espetáculo, que terá convidados como Neyna, Mark Delman, Elji Beatzkilla e Ne Jah, será também marcado pelo reencontro simbólico dos KBA. 


"Vai ser uma oportunidade de fazer uma festa bonita, uma viagem temporal desde os meus inícios com os meus brothers até aos dias de hoje", explicou, sublinhando a intenção de dar palco às várias facetas da sua música. Além do rap, pretende incorporar elementos de música eletrónica, afro e música tradicional cabo-verdiana, refletindo a sua versatilidade e os gostos pessoais. "Eu gosto muito de rap street, gosto muito de música cabo-verdiana tradicional e gosto muito de música contemporânea, tipo afro, tecno...". O objetivo? Criar uma experiência imersiva, que vá além do formato tradicional de concerto e celebre a pluralidade da sua identidade artística ao longo das últimas décadas. O que para alguns é designado como sucesso, para Loreta é visto como consequência natural de quem faz o que gosta.  “Simplesmente sou uma pessoa que faz aquilo que gosta e tive essa consequência." 


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