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O que aconteceu aos manifestantes de 18 de maio em Bissau?

10 de Junho de 2024
O que aconteceu aos manifestantes de 18 de maio em Bissau?

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A Guiné-Bissau é um país que acorda de madrugada. É a partir das três da manhã que muitos se levantam para dar início a uma rotina de resiliência contra uma pobreza resistente e sistémica. Contra uma situação social precária e em decadência contínua, movimentos sociais como a Frente Popular, coordenado por Armando Lona, erguem-se numa frente unida pronta para a “salvação da democracia” do país, que acreditam estar sob ameaça. Os lemas de contestação são “Resgatar a República” e República i di nós .

No dia 18 de maio, o movimento orquestrou protestos, em vários pontos do país, com o intuito de sensibilizar, consciencializar sobre os problemas sócio-económicos e a “recessão democrática” que o país atravessa. Pelo menos 93 pessoas, entre jornalistas, ativistas e cidadãos, presentes na manifestação foram agredidos e encarcerados, de acordo com vários relatos e meios de comunicação, e sob o pretexto de desordem pública e organização de uma ‘manifestação ilegal’. No dia seguinte, 84 pessoas foram libertadas e o Estado manteve outras nove detidas por mais 10 dias, incluindo Armando Lona.

A BANTUMEN falou com Bubacar Turé (presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos); Erickson Mendonça (jurista e um dos ativistas detidos); e Luís Vaz (membro da Ordem dos Advogados e ex-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos) para entender o que aconteceu e as implicações mais amplas não só nos activistas mas também na população. 

Ativista há mais de 20 anos e atual presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), Bubacar Turé diz-nos que é devido à sua identidade de cidadão inconformado que decidiu dedicar-se à batalha pelos direitos humanos. “À conta da desastrosa situação política, social e económica onde se encontra a Guiné-Bissau desde a sua independência, agravada pela conspiração engendrada pelo atual regime contra a democracia e o estado de direito, decidi associar-me a todas as lutas que visam resgatar estes valores e devolver a esperança ao povo”, explicou. 

Quanto a Luís Vaz, ex-presidente da LGDH, advogado e defensor dos Direitos Humanos, conta que a sua motivação para participar ativamente em causas sociais faz parte do seu ADN. “Penso que é o meu dever poder defender quando se sentem aflitos e afligidos e foi isto que ocorreu dia 18. Uma violação dos seus direitos humanos que requis assistência. Então, tenho prestado os meus serviços de forma gratuita sempre que a Liga e outras instituições necessitam”.

O jurista e membro da Tiniguena, uma organização não-governamental focada na educação cívica e conservação e defesa do património natural e cultural, Erickson Mendonça esclarece que, mesmo não fazendo parte da Frente Popular, sentiu que tinha o dever cívico de se unir aos manifestantes. “Como um simples cidadão que sente que aquilo que o movimento está a reinvidicar neste momento é exactamente o que o país está a passar, decidi ir juntar-me à marcha”. No entanto, Erickson explica à BANTUMEN que, depois da sua chegada ao local da marcha, à qual chegou ligeiramente atrasado, o tumulto já pairava no ar. “Então, fui abordado por três agentes, que me pediram para parar e, ao questioná-los, pediram-me que esperasse e aguardasse por um carro sem mais informações. Não tive muito espaço para questioná-los e aguardei mas estava longe de pensar que seria detido naquelas circunstâncias. Eu estava lá para ir à marcha mas há pessoas que não foram à marcha e estavam somente na área”, assinalou Erickson. “Havia pessoas a exercitar e a caminhar, como qualquer outro fim de semana, como foi o exemplo de alguém que tinha acabado de ter um AVC e mencionou que estava ali somente a seguir instruções do médico. Temos também uma mulher que decidiu defender uma rapariga que estava a ser agredida e também a levaram. As pessoas foram presas indiscriminadamente e não se importaram de averiguar o porquê de estarem ali. Capturaram tudo e todos”, acrescentou.

No que toca à motivação que levou à sua dentenção, o jurista identifica três possiveis razões para o sucedido: despreparo aliado ao desespero do governo e frustração da população. “Primeiramente, diria despreparação porque, quer se esteja dentro ou fora de Bissau, dá para evidenciar o despreparo dos governantes relativamente a certas questões. Quando há despreparação, a pessoa não aceita ser contrariada porque a mínima inconveniência ou situação de contra-argumento são tidas como uma afronta à sua autoridade e poder”. Consequentemente, Erickson afirma que este mesmo despreparo desenvolve um desespero da parte do governo, que pretende manter o poder sem que o povo se pronuncie. “Permitir movimentos como a Frente Popular passa uma mensagem errada porque a mensagem que as autoridades públicas passam é que está tudo bem e que o país está a ser bem governado. Contudo, nós temos que fazê-los perceber que não cabe a eles fazer juízo da governação, mas ao povo. E foi exatamente esse povo que saiu no dia 18 para dizer ‘basta!’”. 

Erickson acrescenta que o custo de vida na Guiné é exorbitante e que é algo inegável. “Não há saúde, não há escola. E existe uma frustração entre a população porque ambos os setores não vêem remuneração salarial desde janeiro. Isto acontece num momento em que existem instituições internacionais a cobrir os custos salariais mas depois passam cinco meses e estes mesmos empregados, maioritariamente jovens, não são pagos. Como é que esperamos que eles não se manifestem e procurem respostas?”

Luís Vaz relata já ter sido alvo de represálias do Estado, incluindo alegas tentativas de assassinato, e que num “regime repressivo, onde os advogados não fogem à regra de perseguicão, há que entender que todos que se dispõem a criticar o regime são futuras vítimas expostas a alguma forma de violência. A visão geral da situação jurídica dos ativistas que foram detidos é uma situação de sequestro, porque não se trata de uma detenção comum. Uma detenção implica que alguém esteja a cometer ou a preparar-se para cometer algo ilícito ou alguma forma de perturbação da ordem pública e não foi isso que aconteceu”, expõe o advogado. 

“Os manifestantes simplesmente exerciam o seu direito à liberdade de manifestação, foram impedidos de exercitar esse direito e, consecutivamente, foram privados da sua liberdade, com agravante de tortura. Então, se refletirmos que a privação de liberdade implica um crime, e se acrescentarmos o facto de terem sido torturados, significa que estamos perante crimes hediondos e muito graves, não só na ordem jurídica interna mas também no âmbito internacional, perpetrados por parte do Estado, através do Ministério do Interior”, alega Luís Vaz. 

Por sua vez, Bubacar indica que o país tem registado um recuo penoso, desde 2020, no que diz a conquistas em vários domínios de direitos humanos tais como, liberdades de expressão, imprensa, manifestação, entre outros. “Os cidadãos viram as suas liberdades reprimidas, raptos e espancamentos dos jornalistas, opositores e vozes discordantes. Detenções arbitrárias, sequestros, assaltos às instituições democráticas e consequente amordaçamento das mesmas, incumprimento das decisões judiciárias etc”, explica o presidente da LGDH. “As situações económicas e sociais degradam-se consideravelmente. Ou seja, a extrema pobreza, a ausência do forneceimento dos serviços sociais básicos aos cidadãos, tais como, água potável, sáude, energia eléctrica e infraestruturas sociais é escasso. Apesar deste triste contexto, um punhado de dirigentes políticos e governantes têm ostentado a riqueza manifestada nas aquisições de bens de luxo na Guiné-Bissau e no estrangeiro, proveniente da grande corrupção, facilitada pela impunidade. São estes fatores que motivam a nossa luta para a defesa dos direitos humanos e para uma outra Guiné-Bissau de paz, de progresso, de justiça, de distribuição equitativa dos recursos que pertencem a todos nós”. 

Sendo um país que se formou pelas raízes da revolução e solidificou a sua independência entre várias conturbações político-sociais, o estado político atual do país é uma contradição aos sonhos de Cabral e muitos outros militantes. Erickson nota então com convicção que, hoje, está mais certo do que nunca que há uma necessidade de fazer face a esta situação. “Cada vez que nos encontremos numa situação destas ou parecidas, não podemos admiti-lo e ficar passivos. O povo tem que se recusar admitir isto e as manifestações servem exactamente para isso. Estando agora em liberdade, entendo mais que nunca que tem que se continuar a atuar e dizer aos governantes que não estamos contentes mas sim fartos. Não é nada pessoal. Estamos simplesmente contra a condição atual do país porque ninguém merece. Nem mesmo eles”. 

O jurista desabafa que foi a primeira vez que se encontrou numa cela presidiária e garante que aquilo é um lugar desumano e não digno mesmo para quem tenha cometido um crime. “Não há condições nas esquadras nem para os agentes, imaginem para presidiários. E, durante estas duas semanas, tenho pensado bastante no significado de dignidade. E é somente isto que pedimos – dignidade. Nada mais porque acredito que seja o mínimo”.

Até mesmo os agentes que agrediram, nós estamos aqui a combater por algo digno para eles, quer seja no ambiente de trabalho quer seja ao pouco ou nada que eles recebem como salário

Erickson Mendonça

Ao avaliar a atual situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau, particularmente no que diz respeito à recente detenção de ativistas, Bubacar não se acanha e descreve a situação como “caótica” e afirma que a tendência é piorar nos próximos tempos. “Estamos a fazer face a um regime insensível ao livre exercício das liberdades fundamentais. A Liga Guineense dos Direitos Humanos publicou em janeiro de 2024, um relatório exaustivo sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau. O documento espelha retrocessos enormes e formulou várias recomendações. E a recente detenção ilegal e abusiva dos manifestantes da Frente Popular foi mais um triste episódio que prova o caratér autoritário do regime instalado no nosso país. A  liberdade de manifestação é um direito com dignidade constitucional, não carece de autorizações de quem quer que seja”.

Em concordância com o presidente da LGDH, Luís confessa que o atual clima político é um clima de terror. Confiante de que o país está a ser governado por um regime autoritátio que lidera o país a ferro e fogo, o advogado diz que o respeito às regras básicas do direito e das normas constitucionais que regulam o funcionamento das instituições é inexistente. “Não respeitam a separação de poder e coexistência pacífica com pessoas de opiniões divergentes e então têm restringido de forma sistemática todos os direitos básicos. Isto é a manifestação, reunião, liberdade de expressão e de imprensa e têm impedido também o acesso ao sistema nacional de saúde e à Educação”, denuncia. 

Deste modo, Erickson garante que mesmo depois das condições a que foi sujeito ao lado de mais 92 pessoas, que a sua dignidade e de todos os outros manteve-se intacta e que o governo falhou na sua missão porque as pessoas saíram das suas celas mais convictas de que é necessário uma mudança extrema. “Levantou-se uma onda de solidariedade e hoje temos um sentimento de revolta que acompanha essa mesma solidariedade. E isto, para o governo, equivale a uma derrota. Até mesmo os agentes que agrediram, nós estamos aqui a combater por algo digno para eles, quer seja no ambiente de trabalho quer seja ao pouco ou nada que eles recebem como salário”.  

Erickson partilha que depois de ter aguardado para ser detido, teve de ser colocado debaixo de um banco, devido à falta de espaço no carro que o conduziria à esquadra. Ao chegar às instalações da Segunda Esquadra, juntamente com outros detentos, o jurista descreve momentos de terror ao terem sido separados em grupos de dois, três ou até quatro, e depois terem sido espancados. “Deitaram-nos no chão e surraram-nos. E havia agentes a filmar. Após isso, encaminharam-nos para uma cela. Alguém que é capaz de te espancar e depois filmar-te enquanto te encontras num estado tão vulnerável, é triste e desumano. Tenho de mencionar também que, entre nós, se encontrava gente de idade e uma miúda grávida, que infelizmente também foi agredida e submetida ao mesmo tratamento deplorável”.

Bubacar revela à BANTUMEN que denúncias de casos de torturas graves já são de conhecimento comum. “As imagens chocantes circularam nas redes sociais. O Coordenador da Frente Popular, Armando Lona, falou das “filas de torturas” que foram criadas na Segunda Esquadra para torturar e gravar as mesmas para o consumo de alguém. Nós exigimos a abertura de investigações com vista à responsabilização criminal dos autores de tais atos porque a tortura é proibida na Guiné-Bissau”. 

Como resultado destes mau-tratos, a LGDH e a Ordem dos Advogados entraram em cena para apoiar todos os envolvidos. Sendo organizações que promovem e protegem os direitos humanos da população, as entidades responsabilizaram-se em assegurar que a justiça será servida, mesmo tendo a própria lei contra elas. “Quando os cidadãos foram arbitrariamente detidos pela polícia, fizemos aquilo que habialmente fazemos. Para além de termos denunciado o sucedido, fizemos vários contactos com as autoridades nacionais, os quais resultaram na libertação de 84 detidos no segundo dia das detenções”, diz Bubacar. “No entanto, adoptamos outras estratégias de pressão, nomeadamente vigílias, produção de materiais de comunicação e de pressão, entrevistas e denúncias junto à imprensa internacional e dos parceiros internacionais. Igualmente, em parceria com a Ordem dos Advogados, foi requerida providência de Habeas Corpus que culminou com a ordem de libertação imediata de todos os detidos”, confirma.

Para além do tratamento que receberam, os manifestantes não tiveram a oportunidade de comunicar com o exterior e informar entes queridos do ocorrido. “No meu caso, tive tempo de enviar uma mensagem a avisar o que estava prestes a acontecer e isso ajudou a localizar o meu paradeiro. Ao chegarmos à esquadra,retiraram-nos os telefones e não pudemos contatar nem família nem representantes legais. E mesmo com o envolvimento da LGDH e da Ordem dos Advogados, foi difícil. Todavia, estamos muito gratos por todos os esforços que ambas as entidades têm feito para que isto se resolva”, aponta Erickson. 

Mesmo não podendo divulgar as estratégias de longo prazo que pretendem implementar para combater o autoritarismo e promover os princípios democráticos na Guiné-Bissau, o presidente da LGDH assegura que a justica será resgatada no país. “Iremos manter a nossa luta, iremos desafiar este contexto cada vez mais autoritário e ditatorial. Iremos alargar o âmbito da nossa intervenção e aumentar a pressão junto do poder político, com todos os riscos que isso acarreta para a nossa vida e integridade fisica. É a nossa convicção,que a consolidação da democracia e o estado de direito tem um preço. Temos de estar preparados e preparadas para pagar um tributo pesado para que estes valores prevaleçam no nosso país”.

Apesar de vozes como Bubacar e Luís ressoarem a esperança para mudar o atual cenário social, o futuro é incerto. Em tom de frustração, Luís sublinha que “deveríamos estar a testemunhar a responsabilização criminal” por parte dos que limitaram o exercício da liberdade dos ativistas e os que ordenaram que fossem violentados ou torturados. “Só ordenar a libertação não basta. Deveria haver muito mais”, afirma o advogado. “Seja como for, o próprio o juiz que esteve envolvido declarou que houve abuso de autoridade porque o direito de manifestação não é um direito que se pede, é de exercício imediato. De momento, estamos a trabalhar para que todas as provas sejam documentadas no que toca a tortura, para que as possamos apresentar através de uma queixa, não só no plano doméstico como também no plano internacional”, reforça. 

Apesar de ser um momento de alta tensão e dúvida para todos, em relação, aos seus planos e esperanças para o futuro, tanto pessoalmente como para o movimento ativista na Guiné-Bissau, Erickson frisa que este momento na história da Guiné-Bissau “foi um exemplo de como é que a nossa força de segurança, através das nossas autoridades políticas, tende a responder a estas situações. Situações em que se encontram postas a escrutínio público”. Diante disso, espera que continuem a surgir vários movimentos espontâneos, sobretudo para esclarecer o governo quais são as causas que o povo defende. “Tem que ser feito. Não temos de estar inscritos em movimentos para ser agentes da mudança. Basta seguirmos o nosso dever cívico e sentir um senso de responsabilidade para o bem estar dos nossos e do nosso país. A bem ou a mal, isto é uma luta de todos nós porque vai além da sobrevivência”. 

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