Projeto Maré d’Estórias desafia crianças a reinterpretar a arte com Tristany e Ondjaki

28 de Março de 2025
Maré dEstórias tristany ondjaki
Tristany Mundu e Ondjaki | 📸 BANTUMEN/Eddie Pipocas

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O músico Tristany Mundu e o escritor Ondjaki uniram forças no projeto Maré d’Estórias, uma iniciativa do Centro de Arte Moderna Gulbenkian, que explora o cruzamento entre literatura, música e pintura com um grupo de crianças. A proposta foi clara: reinterpretar obras de arte através da perceção infantil e criar um audioguia alternativo para o museu, dando voz às narrativas espontâneas dos mais novos.


“Foi uma provocação do museu”, explicou Ondjaki. “O convite foi: usem a vossa arte, a vossa visão, a vossa maneira de ser, para, com um grupo de crianças, fazermos uma reinterpretação de obras de arte.”


Desde o início, os artistas perceberam que estavam a lidar com dois mundos distintos: a liberdade imaginativa das crianças e a estrutura formal dos espaços museológicos. Ondjaki destacou que, em muitos casos, as crianças tinham interpretações completamente diferentes das esperadas. “Algumas obras invocam temas pesados, como a guerra e o sofrimento, mas as crianças faziam leituras novas, mais leves. Isso foi um privilégio de observar”, contou o escritor.


Tristany partilhou uma experiência semelhante. Segundo o músico, a primeira reação das crianças ao conceito de arte revelou um padrão curioso: “Elas tinham muito a ideia de que arte é sofrimento. Falavam de tristeza, de melancolia… Isso é um pouco o que lhes é passado”, disse.


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“As crianças não se reveem na ideia de estarem sentadas durante 45 minutos, a ouvir um professor a ditar matéria”

Ondjaki

Para contrariar esta visão, os artistas esforçaram-se por tornar a experiência mais lúdica e interativa, incentivando os participantes a libertarem-se da formalidade do museu. “Nós queríamos ser mais crianças e eles queriam ser mais adultos”, comentou Tristany. “Sentíamos que tínhamos de fazer uma espécie de triagem, até que eles se sentissem à vontade. Se este tipo de projetos tivesse continuidade, as crianças sairiam daqui com um poder brutal para desconstruir o seu próprio imaginário sobre o que é uma obra de arte.”


Ondjaki acrescentou que um dos aspetos mais interessantes do projeto foi a observação do impacto da arte sobre os mais novos. “O museu tem esta função: provocar. Mas, muitas vezes, a experiência do museu é silenciosa. As pessoas guardam para si as reações e só comentam depois, em casa. Aqui, nós incentivámos as crianças a falarem, a exteriorizarem o que estavam a sentir.”


A experiência também gerou reflexões sobre o ensino da arte nas escolas e o próprio modelo educacional atual. Ondjaki apontou que o sistema tradicional, com horários rígidos e métodos obsoletos, já não corresponde à forma como as crianças aprendem hoje. “Os métodos de aprendizagem estão desatualizados. As crianças não se reveem na ideia de estarem sentadas durante 45 minutos, ouvir um professor a ditar matéria. A educação precisa de adaptação e a arte pode ser integrada noutras disciplinas – matemática, ciências, português. Por que não?”


Tristany reforçou essa ideia com uma referência histórica. “Houve um tempo em que a ciência e a arte não estavam separadas. Um artista como Leonardo da Vinci era também cientista, porque o pensamento artístico estimulava a busca pelo desconhecido”, afirmou. Para o músico, a separação entre as áreas acabou por enfraquecer a criatividade e a inovação no ensino.


O debate estendeu-se também ao ensino profissional. Tristany, que passou por essa via de ensino, recordou que, muitas vezes, esses cursos eram vistos como uma solução de último recurso para determinados alunos, sem grande preocupação com a qualidade da formação. “Eu estudei design gráfico, mas na verdade não tínhamos um professor de design gráfico. Quem nos ensinava era alguém de português ou de geometria descritiva, que vinha com uma ficha de instruções porque nem sabia trabalhar com os programas”, contou. Ondjaki reforçou que a escola precisa oferecer experiências práticas que realmente capacitem os alunos para o futuro. “A educação tem de ser revista. Daqui a uns anos, muitas crianças vão simplesmente deixar de querer ir à escola, porque o modelo já não faz sentido. A escola ainda serve como um espaço onde os pais podem deixar os filhos durante o dia, mas isso não significa que estejam a aprender da melhor forma.”


Outra questão levantada durante o projeto foi a percepção da arte como algo elitista. Ondjaki acredita que esta realidade varia consoante a intenção de quem organiza as exposições. “Há galerias que não querem que toda a gente frequente o espaço. E há outras que pensam na arte como algo acessível para todos.” O escritor sublinha que não cabe ao artista criar para um público específico, mas defende que os espaços de exposição devem garantir que as suas obras chegam a um público mais amplo.



Maré dEstórias tristany ondjaki

Tristany Mundu e Odjaki durante a entrevista realizada nos espaços do Centro de Arte Moderna Gulbenkian 📸 BANTUMEN/Eddie Pipocas

“Uma escola pública em Lisboa é diferente de uma na margem sul ou na linha de Sintra. Isso acaba por se refletir em tudo, incluindo no acesso à cultura”

Tristany Mundu

Tristany acrescentou que, embora a arte em si não seja controlada por elites, a sua comercialização e aceitação podem ser. “A criação artística é livre, mas o acesso e a valorização das obras passam por mecanismos que acabam por criar barreiras”, afirmou. “A arte reflete a sociedade. Assim como nem toda a gente tem acesso aos mesmos hospitais ou escolas, também a arte está sujeita a essas diferenças. Uma escola pública em Lisboa é diferente de uma na margem sul ou na linha de Sintra. Isso acaba por se refletir em tudo, incluindo no acesso à cultura.”


O resultado do Maré de Histórias será um audioguia alternativo para o Centro de Arte Moderna Gulbenkian, que inclui não só as vozes das crianças, mas também a visão dos próprios artistas. O projeto vai ao encontro dos objetivos do museu de diversificar a sua abordagem e atrair novos públicos. “A Gulbenkian não nos chamou só para executar uma ideia pronta. Tivemos liberdade para decidir e moldar o processo”, destacou Tristany.


Ondjaki concluiu que esta abordagem é essencial para garantir um impacto real. “Poderiam ter encomendado um audioguia tradicional, mas escolheram fazer um alternativo, que inclui o pensamento e as vozes das crianças. Isso faz toda a diferença”, concluiu.


Ao dar espaço para a experimentação e para a construção de novas narrativas, o Maré de Histórias prova que a arte é, acima de tudo, um convite à participação. O audioguia,  disponível no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, não é apenas um guia para interpretar as obras expostas, mas um reflexo das múltiplas formas como se podem interpretar e olhar a arte.

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