Mayara Ferrão, quando a cultura visual e tradição cruzam-se com Inteligência Artificial

24 de Dezembro de 2024
Mayara Ferrão entrevista
Foto de @camilatuon

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A falta de diversidade na indústria das artes tem sido uma questão com que a nossa comunidade lida há décadas. Em galerias, museus ou bibliotecas, os rostos e as histórias representadas são, na sua maioria, pálidos como calcário. Essa hegemonia é tão presente que acabámos por aceitá-la como norma. No entanto, hoje, surgem disruptoras como Mayara Ferrão, que nos desafiam a repensar o que conhecemos. Com uma visão única e uma narrativa poderosa, Mayara recria a arte através de uma lente interseccional que desconstrói as nossas noções de sexualidade, género, classe e raça.


Através dos seus retratos impressionantes, ela redefine o uso da inteligência artificial para dar voz a histórias que sempre existiram, mas foram silenciadas pelo racismo e pela colonialidade.


Como artista visual negra, queer e feminista, Mayara Ferrão está na linha da frente de um movimento que desafia e transforma a cultura visual tradicional, ao mesmo tempo que reconceitualiza as noções de afeto dentro de queerness. Com obras como “Lua de Mel” e “Álbum de Esquecimentos”, que combinam carinho, tecnologia e inteligência artificial, Mayara empurra os limites das estéticas queer e feministas, enquanto questiona os algoritmos que moldam a criação e perceção das imagens. Num mundo onde a IA frequentemente replica os preconceitos sociais, o trabalho de Mayara é uma interrupção necessária.

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“O meu trabalho é uma ferramenta de construção coletiva, nasce dos meus desejos, mas também olha muito para o outro”

Mayara Ferrão

Sou artista visual de Salvador, Bahia,” diz Mayara com entusiasmo. “Trabalho com diferentes géneros linguísticos, desde ilustração a pintura e artes plásticas, e também com fotografia. Dedico-me muito à construção de narrativas negras, sobretudo protagonizadas por mulheres negras e originárias. Acho que isso resume bem quem sou: tudo é um universo majestoso que proponho através das minhas construções artísticas.” Quando questionada sobre o que significa a arte para si, Mayara responde com uma paixão palpável. “Arte é a minha forma de existir no mundo. A minha existência é definida pela arte. Pode parecer clichê, mas sou um exemplo vivo de uma mulher cuja vida foi e continua a ser transformada diariamente por ter escolhido viver e fazer arte. A arte é o que me faz pulsar, é o que me define, é a minha forma de comunicar os meus desejos, os meus medos, os meus anseios e tudo o que me constitui. Ela ocupa um lugar precioso na minha vida. É o meu instrumento para existir, lidar com o mundo e, de certa forma, mobilizá-lo.”


Mayara partilha com um sorriso o início da sua jornada artística e conta que sempre foi uma criança muito introspectiva e criativa. “Sou a filha mais nova de três irmãos e cresci na periferia de Salvador. Sempre gostei de desenhar, pintar, inventar personagens e criar narrativas. Essa brincadeira de construir histórias acompanhou-me desde pequena e segue comigo até hoje. Felizmente, tive pais sensíveis que entenderam desde cedo que a arte era algo que me fazia bem e me ajudava a expressar o que eu sentia. Mesmo antes de perceber, já era artista. Sempre dizia: ‘Quero ser artista!’, sem entender que já o era, porque ser artista é pensar, sentir e fazer arte.”


Hoje, Mayara está a concluir os seus estudos superiores em arte, mas a sua paixão já guiava os seus passos muito antes disso. “Construí sonhos em torno deste fazer artístico, e hoje trabalho para dar continuidade ao desejo da minha criança interior: viver da arte e ser reconhecida por isso.” Ao falar sobre os temas centrais do seu trabalho — interseccionalidade, queerness e comunidade — Mayara explica: “Sou uma mulher de axé, uma mulher de fé, e venho de uma família muito grande. Crescer na periferia e em comunidade moldou profundamente o meu senso de coletividade. Este olhar coletivo é central na minha forma de pensar e posicionar-me no mundo. O meu trabalho é uma ferramenta de construção coletiva; nasce dos meus desejos, mas também olha muito para o outro. Vejo tanta gente em Salvador que, como eu, precisa de se enxergar de forma positiva, de se sentir representada. O meu trabalho busca impactar, contribuir e transformar de alguma forma a existência de outras pessoas. Acredito que, através da arte, podemos criar um mundo mais inclusivo e digno para todos. Este senso de comunidade é o que me trouxe até aqui e o que me mantém em movimento.”

Mayara Ferrão entrevista

Obras de Mayara Ferrão

Mayara Ferrão entrevista


Com um estilo que equilibra poesia e resistência, Mayara demonstra como a arte não é apenas uma expressão individual, mas uma ponte para o coletivo, um espelho de realidades que exigem ser vistas e celebradas. A sua obra é mais do que crítica; é uma promessa de mudança. O seu projeto Verdade Tropical nasceu como uma forma de Mayara organizar o seu trabalho em ilustração e pintura. A sua evolução reflete uma jornada pessoal e profissional, marcada por transformações internas e um mergulho profundo na criação artística. "Eu sempre desenhei e pintei," explica Mayara. Contudo, a artista demorou até se rever como uma ilustradora. "Foi um processo longo até trazer essa linguagem para um nível profissional, para me perceber como alguém que constrói narrativas, que pode trabalhar e comercializar esse tipo de expressão."


Durante muito tempo, os seus desenhos eram intimistas, centrados em narrativas femininas que a atravessavam de forma visceral. "Sempre gostei de falar sobre isso, mas havia quase uma vergonha, algo que muitos de nós, pessoas negras, sentimos em algum momento da vida. Eu achava que não era relevante." Foi nesse contexto que nasceu o Verdade Tropical, inicialmente concebido como uma iniciativa anônima. "Senti que precisava colocar o meu trabalho no mundo, mas não queria apresentá-lo como Mayara Ferrão. Era uma forma de criar um outro perfil, uma nova versão de mim mesma para partilhar essas ilustrações." O projeto tornou-se uma ferramenta para sintetizar a narrativa tropical, inspirada pela vida em Salvador, pelo mar, pela água, pelo Candomblé, pelas pessoas, pelos cheiros e pelas cores. "Quando comecei a partilhar no Verdade Tropical, estabeleci uma troca intensa com o público, porque as narrativas que apresento são positivas, potentes para pessoas negras. São retratos de pessoas negras em lugares de contemplação, de lazer, de trocas, de acesso, como donas de si e das suas verdades. Era algo tão pessoal para mim, mas ao mesmo tempo coletivo." 


Num piscar de olhos, o projeto expandiu-se para além do que Mayara poderia imaginar. "As pessoas falam de mim para mim, sem saber que sou a pessoa por trás do perfil." Essa desconexão entre a identidade pública e pessoal permitiu que ela desenvolvesse uma identidade artística sólida. Através do Verdade Tropical, Mayara construiu conexões inesperadas e trabalhou em projetos como capas de livros, incluindo uma de Lélia Gonzalez. "O Verdade Tropical é um espaço seguro, sólido e uma terra fértil onde consigo construir narrativas que me atravessam." Salvador, a cidade onde Mayara vive, é uma influência central na sua arte. "Eu sou apaixonada por Salvador, mas num lugar realista. Estar em Salvador é difícil, especialmente sendo negra ou artista." A dualidade que ela descreve como "luxo e lixo" reflete a complexidade da cidade.


"Salvador oferece experiências tenebrosas, mas também tem calor, energia, um povo que me lembra quem sou e de onde venho. Inspiram-me o senso de pertencimento e a ancestralidade. Salvador é um berço, um lugar para retornar." A cidade também é uma fonte inesgotável de inspiração, especialmente para quem tem generosidade no olhar. "A ligacão ao mar, à cultura afro-brasileira, à música e à diversidade sensorial da cidade alimenta a minha arte. Salvador é uma cidade que me inspira tanto quanto me provoca dores. Mas essas dores transformam-se em arte, em questionamentos. É um caos bonito."


Mayara traduz, em cores e traços, um universo carregado de memórias e resistências. Através do Verdade Tropical, constrói um espaço onde o pessoal e o coletivo se encontram, revelando narrativas de beleza e potência que transcendem fronteiras e criam um mundo mais justo e mais humano. Consequentemente, esta mesma paixão por Salvador e pela sua ancestralidade levou a artista a encontrar na inteligência artificial não apenas uma ferramenta criativa, mas um portal para revisitar a história e projetar um futuro onde o amor, a resistência e a beleza ganham novas narrativas. O seu trabalho, profundamente enraizado na dualidade da dor e da potência da sua ancestralidade, busca reescrever imagens e memórias que muitas vezes foram capturadas apenas sob a lente do sofrimento. "Eu nunca fui uma grande entusiasta ou estudiosa de inteligência artificial. Sempre gostei de criar minhas coisas de forma muito manual, muito autêntica, mas ser uma artista independente em Salvador traz limitações que me desafiam constantemente", confessa Mayara. 


"A interação com a inteligência artificial surgiu como uma extensão do meu processo criativo, permitindo-me conceber imagens e referências que, por enquanto, estão além do meu alcance material." Salvador, a sua cidade natal, é descrita então por Mayara como um lugar que transborda história colonial. “É impossível caminhar pelas ruas sem sentir o peso do passado, sem perceber como os resquícios coloniais moldam nossos olhares e corpos até hoje.”



Mayara Ferrão entrevista

Obras de Mayara Ferrão

Mayara Ferrão entrevista

Fascinada por fotografias antigas, a artista relata como essas imagens carregam, ao mesmo tempo, uma beleza técnica impressionante e um desconforto profundo. "É doloroso ver a forma como mulheres negras e indígenas foram retratadas — olhares que transbordam tristeza, corpos posicionados em narrativas de subserviência." Mayara começou a experimentar com inteligência artificial de maneira intuitiva, usando a tecnologia para criar imagens que desafiavam essas narrativas opressoras. "Foi um impacto visceral. Pela primeira vez, consegui vislumbrar possibilidades de representar o amor e a conexão entre mulheres negras e indígenas durante o período colonial, algo que a história raramente nos permite imaginar." Ela sublinha que o seu trabalho não busca apagar o trauma ou o sofrimento, mas expandir o imaginário coletivo. "A escravidão é um tema que carrega tantas camadas que muitas vezes esquecemos de pensar em como era amar naquela época. As pessoas amavam, desejavam, sonhavam, mesmo em condições inimagináveis. Eu quero explorar esse espaço — o que significa existir para além do açoite, da senzala, do trauma." Para a artista, a inteligência artificial é mais do que uma ferramenta: é um veículo de resgate e reconstrução. "Eu quero criar imagens que deem às pessoas negras e indígenas referências de ancestralidade que não sejam apenas dor. Quero que a gente possa olhar para o passado e imaginar um futuro onde o amor, a maternidade e a beleza são celebrados. É sobre reescrever a história com doçura e resistência." Ela também reflete sobre as questões éticas que envolvem o uso da tecnologia. "A IA está, majoritariamente, nas mãos de pessoas brancas, sendo usada para fins que muitas vezes não nos representam ou até nos apagam. Por que, então, eu, uma mulher negra de Salvador, não deveria me apropriar dessa ferramenta para criar narrativas que nos fortaleçam? É um gesto de reivindicação e cura — de olhar para nós mesmas e finalmente nos ver com dignidade e potência." Mayara reafirma com uma visão esperançosa e combativa: "Com esse trabalho, quero lembrar às pessoas que merecemos viver nossos amores, documentar nossa felicidade e reconstruir nossos acervos. É sobre borrar as imagens tristes que nos aprisionam e sonhar com um futuro que, na verdade, já está aqui. Porque a nossa história é feita de luta, mas também de beleza infinita. E isso nunca nos será negado novamente." 


No que toca ao poder da natureza na sua arte, a água é mais do que um elemento recorrente na obra de Mayara; é um símbolo de conexão, renovação e cuidado. Devido ao facto que foi criada entre Salvador e a Ilha de Gameleira, o mar sempre foi uma presença constante na sua vida, tanto como companheiro silencioso quanto como espaço de lazer e espiritualidade. “Salvador é este lugar onde o mar está em todo o lado,” explica Mayara. “Cresci na Ilha de Gameleira, um local profundamente tropical. Sempre vivi imersa nessa atmosfera, com o mar como um amigo, muitas vezes uma companhia. Mais tarde, ao mergulhar no Candomblé e nas religiões de matriz africana, o mar ganhou outro significado: tornou-se um lugar que consola, mas também carrega memórias de traumas atlânticos. Escrevi uma vez que o mar nos assombra porque já nos afogou tanto, mas também nos acolhe, trazendo Iemanjá, tão presente nos meus trabalhos.” Assim, as águas, tanto salgadas quanto doces, dialogam inevitavelmente com a sua ancestralidade. “Tenho uma conexão muito forte com a mata, com as cachoeiras e com as águas doces, que trazem uma ligação espiritual e simbólica com os Orixás. A natureza é um Orixá vivo. Não precisamos de instituições para nos conectarmos com ela. A água é mãe, é renovação, e essa relação está profundamente presente no meu trabalho.” 


Essa intimidade com a natureza não é apenas uma inspiração estética, mas um reflexo da sua própria vivência e espiritualidade. Mayara valoriza o poder transformador do simples: “Deitar na praia, tomar sol, entrar no mar, pedir uma bênção a Iemanjá... É algo democrático, acessível. Não custa nada e, no entanto, o retorno energético é imenso. Isso fascina-me.” As suas obras, profundamente pessoais acabam assim por ser uma representação de quem ela é e do que acredita. “Eu não consigo separar-me da minha arte. Ela nasce das minhas vivências, do que me atravessa, e isso faz com que o público me conheça, mesmo sem a minha presença. Ser uma pessoa política é estar em constante diálogo com o meu trabalho; ele acompanha-me, e eu acompanho-o.” O futuro, para Mayara, é um campo de possibilidades em expansão. Entre os seus sonhos está a realização de uma curta-metragem inspirada nas narrativas que explora nas suas obras, agora sob a lente do audiovisual. “O roteiro está em desenvolvimento, mas quero construir um romance que se passe no período colonial, porque sinto que as traduções históricas não nos fazem justiça ou focam-se apenas na dor, ou não captam a plenitude do que vivemos naquele contexto. Quero ir além. Mesmo em condições adversas, a vida era imensa. Quero reivindicar as nossas histórias, narrativas e paisagens, mostrar que existimos para além da dor.” 


Mayara convida-nos a mergulhar nas águas da memória e da resistência, com uma voz que ecoa renovação, luta e ancestralidade. Assim, traça caminhos para que olhemos o mundo com novos olhos, decolonizados e plenos de possibilidades.

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