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Mystirgo é uma marca que nasceu para quebrar padrões de representatividade e inclusão social. Em conversa com a BANTUMEN, Raquel Borges conta-nos sobre as suas inspirações, o seu percurso criativo e como o movimento Ballroom a empoderou.
Raquel Borges, que se identifica pelos pronomes Ela/Dela e Elu/Delu, diz que a sua inspiração por moda começou em casa. Sendo a filha mais velha, foi a que os pais mais mimaram com peças de roupa “bonitas, sempre a condizer o totó com o vestido, a meia e sapato”. Isso influenciou para que sempre experimentasse estilos diferentes enquanto crescia. E entre os 14 e 15 anos, começou a desenhar e testar cortar roupa.
“Imagina, o meu pai foi das minhas primeiras inspirações. Começava a ver as fotos dele e ele tinha um estilo assim muito streetwear e a minha mãe tinha um estilo mais menininha, mas ao mesmo tempo bué nice. Então juntei os dois. Ou seja, sempre tive aquela influência da moda em casa. Quando saímos temos que estar bem vestidos e etc, então acabo por ter isso em casa”, conta-nos a designer cabo-verdiana.
O nome da marca, que se pronuncia “Mis-tir-go”, é a junção das palavras “Mysterious” (Mistério) e “Virgo” (Virgem). “Mysterious” porque a artista pretende manter o mistério do tema de cada coleção e que cada lançamento seja imprevisível. E “Virgo” porque é o seu signo.
Além dos pais, Raquel também se orgulha das suas raízes. As suas coleções são inspiradas nas décadas de 1990 e 2000, e no patchwork. “Uso muito o patchwork, que em Cabo-Verde é o chamado txapa txapa, que é a utilização de vários tecidos para criar (algo). Em Cabo Verde é mais edredons, almofadas, etc”. Borges também considera-se a sua própria inspiração, nomeadamente, pelas ideias “malucas” que tem. “Sou aquela pessoa que quando quer criar algo, quer fazer alguma coisa, tenho que ser eu mesmo a fazer”, refere.
Durante a conversa, a artista conta-nos que sempre gostou de tocar em vários tecidos e fazer um conjunto ou uma peça. No entanto, foi com o tecido de ganga que encontrou a sua identidade. “Comecei com cores mais fortes, tecidos diferentes, mas depois disse ‘não, sempre fui uma pessoa que gostou de denim, denim on denim’. E vou ser sincera, pelo menos, da minha parte, nunca tinha visto isso aqui em Portugal. Já tinha visto fora, mas aqui em Portugal ainda não tinha visto e disse “why not start it? [porque não começar?]”.
Sozinha e a partir da sala dos pais, Raquel já produziu seis coleções cápsula. Apesar de admitir que a ganga é um tecido complicado de se trabalhar, o facto de não conhecer referências em Portugal focadas exclusivamente nesse tipo de tecido, foi decisor. “Foi mais o querer trazer para a comunidade aquilo que eu não via muito. Podia até haver mas eu não conhecia. Óbvio que faço peças com outros tecidos mas denim é mesmo o foco da marca”, sublinhou.
Raquel Borges fez um curso profissional de Design e Moda, que contribuiu para a criação da sua marca. Já colaborou com artistas como a cantora cabo-verdiana Neyna, DJ Stá e também chegou a participar numa campanha de uma marca alemã de grande distribuição, o Lidl. Nesta última, Borges avança que essa participação abriu-lhe algumas portas e garantiu-lhe algum reconhecimento.
Se no início os pais achavam que só “estava a estragar roupa”, hoje, já se mostram mais receptivos ao ofício da filha. “Eu percebo. Eles têm uma ideia programada sobre o que eles querem que os filhos sejam. Eu sinto que fui sempre a tal ovelha negra da família, que não foi pelo caminho que eles queriam, e querem ainda. Então, acho que no início foi um bocado difícil mas agora, o facto de ter vestido a Neyna, que é uma cantora cabo-verdiana, ter ido à televisão, o Lidl… Acho que eles já estão a começar a ver que isto não é uma brincadeira. É algo que quero mesmo levar a sério. Mas às vezes ainda mandam umas boquinhas”, diz-nos.
Os primeiros anos de um artista, seja em que área for, são sempre dolorosos e ardilosos. Para a jovem designer de 24 anos não é diferente e chama atenção sobre a falta de apoio aos artistas emergentes. “Aqui em Portugal, sinto que não dão muito valor ao people underground, a pessoas novas. Sinto um suporte da comunidade mas, ao mesmo tempo, não sinto muito. A marca não tem muitas vendas porque também não são peças propriamente baratas mas as vendas que tenho são muito importantes. Porque, como faço roupa exclusiva, só o facto de uma pessoa ter uma peça da minha marca já é tudo”.
Raquel sabe que o reconhecimento chegará com o tempo e ele é uma consequência das portas que ela própria for abrindo. Para já, o apoio de quem o rodeia é suficiente. “O people de fora, não sei se é porque é uma marca nova ou porque não gostam, e não tem problema se não gostarem, mas não sinto muito esse suporte. Já tive várias mensagens de pessoas a pedirem peças e a dizerem ‘olha, não fazes um desconto?’, ‘não queres fazer uma parceria?’. Eu não tenho problemas com parcerias quando acho que faz sentido. Mas agora, fazer desconto? E eu então que trabalho sozinha? É difícil fazer desconto. Isto não é uma marca de fast fashion. Se fosse fast fashion era uma coisa. Isto são peças únicas ainda por cima”, sublinha.
Raquel Borges aka DarkSkinGyal
Além da sua presença na moda, a Darkskingyal, o seu cognome, faz-se presente no movimento Ballroom em Portugal. Parte da “Elite Kiki House of Bodega”, Raquel descobriu a cultura enquanto assumia-se a si própria, em 2020. “Sempre me interessei porque quando me assumi a mim mesma, não às pessoas mas a mim mesma, foi o mais importante. Comecei a fazer muita pesquisa e quando descobri, foi nesse ball que fui: ‘uau. Sinto-me bem aqui. Sinto-me com as minhas pessoas’”, recorda Raquel. O seu mentor nessa nova estrada foi Max (@maximusmrivera), que a introduziu ao movimento em Portugal.
Começou por participar em categorias de “Face” e “Fashion Killer” e com o tempo acabou por sentir-se mais empoderada e começou a fazer “Body”. “Sempre que meto o meu pé na pista, sinto-me eu, Raquel a 100 por cento. Sinto-me a Darkskin a 100 por cento. Bem, feliz, empoderada e sei que consigo fazer tudo o que quiser. E também, pego na Ballroom scene e meto nas minhas coleções, com pessoas queer”, descreve.
Em conversa, Raquel admitiu que, sempre que publica conteúdo de Ballroom nas redes sociais, recebe mensagens menos encorajadoras. “O nosso povo PALOP, I love us, mas temos que mudar a nossa mentalidade. Temos que mudar porque se gritamos “black lives matter” têm que ser todas, não só “straight [hetero] black lives matter”. A designer continua afirmando que é importante sublinhar que “Queer (black) lives matter e Trans (black), sobretudo, lives matter”, por serem as minorias dentro de uma minoria segregada. “É tentar encorajar a comunidade no geral mas principalmente as pessoas que estão mais marginalizadas”.
Raquel Borges
Para além da identidade da Mystirgo no uso de ganga, outra impressão que se obtém ao observar as cápsulas é na diversidade e representatividade dos modelos. “Eu tento sempre ter a maior representatividade possível porque, desde criança, nunca me vi representada em marcas. Como uma pessoa darkskin, nunca me vi. Sempre vi pessoas mais claras, com o cabelo encaracolado. Então, faço questão de, em todas as minhas coleções, ter pessoas negras. Ter pessoas queer e vários corpos também é muito importante. Porquê? Porque eu acabo por fazer parte disso tudo. Sou darkskin, sou queer e não tenho assim um model body [corpo de modelo], certo?”.
Na cápsula “The Hood”, a designer inspirou-se na comunidade imigrante que vem dos bairros. “Fiz questão de ter quatro modelos, todos diferentes mas que, ao mesmo tempo, fossem uma família, a representar um bairro. Muitos de nós, dos PALOP, viemos do bairro então também é importante representar isso. E a minha escolha de modelos é sempre ‘mais escuro melhor’, porque temos que ter orgulho na nossa cor”, conta-nos.
No final da conversa, a artista aborda o impacto que o colorismo tem na comunidade cabo-verdiana e de como pretende desmistificar a ideia de que os cabo-verdianos têm apenas uma estética, através do TikTok, que tem sido a plataforma onde partilha conteúdo acerca do assunto. “Adoro Cabo Verde mas nós temos que desmistificar esta ideia de que cabo-verdianos são todos claros. É muito grave estarmos em 2024 e termos que ouvir discursos como este. Então acabo por usar também o TikTok, porque no TikTok acho que consigo chegar mais ao povo cabo-verdiano do que no Instagram. E tento mesmo falar muito do colorismo - se bem que o TikTok às vezes apaga os meus vídeos - porque não quero que miúdas e crianças mais novas olhem para publicidades e só vejam pessoas claras. Apesar de que isso esteja a mudar, quero que se sintam representadas. Principalmente crianças queer que não têm apoio”, finaliza.
A entrevista termina com a confissão da designer em um dia vestir as artistas norte-americanas Doechii e Flo Milli, como colaborações de sonho.
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