Neurite Mendes e o percurso de uma mulher que cria a sua própria sorte

14 de Abril de 2025
 Neurite Mendes entrevista
📸: DR

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Há quem acredite que o destino é uma linha traçada com antecedência. E há quem, como Neurite Mendes, perceba cedo que a vida não oferece garantias, apenas oportunidades — e que estas raramente aparecem embrulhadas com laço. A sua história não é sobre um percurso linear ou uma vocação precoce. É, antes, um exercício constante de escuta interior, de intuição e de adaptação. Uma dança entre fé, inteligência emocional, oportunidade e trabalho duro. Neurite define-se, sobretudo, como uma mulher feita de escolhas difíceis e de um instinto de sobrevivência tão afiado quanto o seu sentido de humor.


Eu sou uma pessoa que tem vários sonhos ao mesmo tempo”, começa por dizer, sem hesitar. “Se calhar por isso faço várias coisas ao mesmo tempo. Isso é bom, e às vezes nem tanto, porque sinto que não sou perfeitamente boa numa única coisa”. Esta ambivalência é o motor da sua trajetória multifacetada.


As primeiras incursões pelo mundo das passarelas e concursos aconteceram quase por brincadeira, aos 19 anos, quando aceitou o convite para participar no Miss Angola África do Sul. “Fui lá na brincadeira, quase que para me divertir… e venceu.” Mas essa conquista não lhe subiu à cabeça. Sabia que a beleza, por si só, não garantiria futuro. Regressou aos estudos, focou-se na licenciatura em Relações Internacionais pela Universidade de Pretória e afastou-se temporariamente do mundo do entretenimento. “Entrei numa das universidades mais exigentes da África do Sul. Tive que eliminar muitas distrações para terminar os estudos.”

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“É a inteligência e a capacidade de comunicação que fazem a diferença”

Neurite Mendes

Foi no meio de uma crise económica - que assolou Angola em 2014, em consequência da queda abrupta do preço do barril de petróleo - que Neurite percebeu que teria de reinventar-se. “Tive que me virar. Fiz de tudo um pouco. O meu primeiro trabalho com contrato assinado foi como treinadora de basquete. Tinha 19 anos e já precisava de pagar contas.” Depois disso, voltou a pisar o palco dos concursos, não por vaidade, mas por necessidade: “Disseram-me que, se ganhasse o Miss África, levava um carro e 25 mil dólares. Eu só perguntei: ‘quando é que envio o meu passaporte?”.


E venceu. Foi a primeira Miss África da história, num concurso onde a beleza era apenas o início da conversa. “No Miss África percebi que a beleza tem as suas vantagens, mas só nos leva até certo ponto. Daí para a frente, é a inteligência e a capacidade de comunicação que fazem a diferença.”


Mas Neurite nunca se deixou definir pelos títulos. Viu-os sempre como trampolins e não como ponto de chegada e por isso sempre viu oportunidades em todas as portas que para ela se abrissem. “A minha vida é feita de um pouco de sorte e um pouco de bênção. E eu acredito muito na intervenção divina. Só se eu não for a filha favorita de Deus”. 


O espírito empreendedor veio com o tempo e com as necessidades práticas da vida adulta. Criou o seu primeiro negócio em parceria com uma amiga maquilhadora. “Ela fazia as maquilhagens, eu fazia a gestão. Sempre fui mais virada para a organização e para a administração.” Mais tarde, abriu o seu próprio salão, o Rozira Beauty, no meio da pandemia, quando muitos fechavam portas. “Não sei onde estava com a cabeça, mas deu certo. Talvez porque todos desistiram e eu fui persistente”, sublinha.


“É mentira que todo o empreendedor faz dinheiro logo”

Neurite Mendes

 Neurite Mendes entrevista

Ao longo dos anos, tornou-se sócia fundadora de mais de três empresas e que esse número tem por base o lucro. É uma questão de necessidade de fazer mais e melhor e, sobretudo, de saber que ao gerar empregos está a ajudar a movimentar, ainda que numa pequena escala, a economia social. “Abrimos alguns negócios só para pagar salários. É a nossa forma de fazer uma ação social. Às vezes, não ganhamos um kwanza, mas há famílias que conseguem viver daquele rendimento. Isso já é retorno suficiente para nós.”


Mas nem tudo foi fácil. “Gerir pessoas é o maior desafio. Ensinar alguém a vestir a camisola de uma empresa que não é sua é um exercício constante de paciência e liderança.” E quanto à narrativa de que empreender é sinónimo de sucesso financeiro imediato, Neurite é clara: “É mentira que todo o empreendedor faz dinheiro logo. A empresa que me deu lucro mais rápido levou três anos. E muitas continuam a dar apenas para manter os postos de trabalho.”


A Neurite também passou pela televisão, com um percurso curioso que começou por acaso e por insistência de um amigo. “Ele só queria que eu me sentasse num videoclipe. Fui contrariada, e lá acabei por conhecer a equipa de produção de um programa da DStv. Gostaram de mim e convidaram-me a apresentar o 'Acesso VIP'.” Apresentou o programa durante dois anos e meio, viajando e cobrindo eventos em Angola e na diáspora. “Foi uma experiência divertida, mas temporária. Eu sabia que a televisão não era o meu fim, apenas mais uma porta aberta.”


Sobre a fama e a necessidade de dar a cara pelos seus negócios, Neurite é clara ao afirmar que nem tudo precisa de ser público. “Aprendi que associar o meu rosto aos meus negócios traz muitos julgamentos. Se um cliente não é bem atendido, a culpa já é minha. Mas também percebi que a exposição tem o seu lado positivo: ajudou a fazer crescer alguns dos projetos. Agora, quero que as empresas andem por si mesmas.”

“Se os professores não sabem educar, estamos a alimentar um ciclo que se repete geração após geração”


 Neurite Mendes entrevista

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Apesar de não se considerar uma mulher traumatizada, carrega uma dor que se manifesta de forma mais pungente com o passar dos anos: a perda do pai. “Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Hoje dói-me mais do que na altura. Porque hoje entendo melhor o que perdi. Na época, ainda achava que tudo estava bem, que estávamos em casa, em família. Agora vejo o que aquilo me tirou.”


Ao falar sobre o que gostaria de mudar em Angola, Neurite não hesita: a educação. “E não falo só de pôr crianças na escola. É formar quem ensina. Se os professores não sabem educar, estamos a alimentar um ciclo que se repete geração após geração. A falta de educação é a raiz de quase todos os nossos problemas.”


Essa ambição precisa de novos sonhos e quando questionada como poderia ser ela a potenciar essa mudança, Neurite aponta a cadeira mais importante na gestão do país. Falar de presidência pode parecer exagerado a quem olha apenas para o brilho superficial das redes. Mas em Neurite, a ambição tem outro peso: não é vaidade, é responsabilidade. Quando diz, com naturalidade, que ela e o marido - o empresário Wilson Ganga - querem estar preparados “se nos chegar a oportunidade de sermos presidente e primeira-dama”, não está a jogar para as câmaras. Está a falar de visão, propósito e entrega. “Queremos entregar todas as nossas energias para o universo”, afirma. 


Quando questionada se também se via a si própria como presidente, não hesitou: “Sim, como presidente e o primeiro-damo”, disse com humor. E acrescentou, com um pragmatismo desarmante: “Porque é que não? A vida é uma caixinha de surpresas.” Mais do que um desejo de poder, o que move Neurite é a urgência de fazer diferente, de fazer melhor. “Angola é um bom país para se fazer negócios, porque o negócio é a resolução dos problemas.” Para ela, não se trata apenas de gerir empresas com sucesso, mas de provocar mudanças estruturais, sobretudo na consciência social. 


O ponto mais alto desta conversa com Neurite é talvez quando fala sobre o conceito de “vir do nada”. A empreendedora não nega as dificuldades de quem começa sem apoio, sem herança ou rede. Mas também recusa a ideia de que nada é tudo o que se tem. “Se não tens dinheiro, tens de ter inteligência. Se não tens inteligência, tens de ter fé. E se não tiveres nada disso, tens de procurar. É difícil começar sem nada, mas é muito raro não ter mesmo nada.”


É esta a essência de Neurite Mendes. Uma mulher que não se revê em rótulos prontos, que valoriza mais a consistência do que a visibilidade. Que acredita no poder da ação local com impacto global. E que, acima de tudo, sabe que não se espera pela sorte, constrói-se.

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