“A ideia de inclusão parte de um lugar de hierarquia”, Piny

27 de Janeiro de 2025
Piny entrevista

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Piny é uma artista, arquiteta, performer, bailarina e coreógrafa. Natural de Lisboa, mas com raízes em Angola, a sua vida foi sempre um equilíbrio constante entre duas artes que, embora distintas, foram a soma essencial para que se sentisse completa: a arquitetura e a dança.


Nesta entrevista, Piny falou-nos sobre a sua experiência com o Laboratório de Imaginação - plataforma de experimentação, desenvolvida por um grupo de jovens e artistas interdisciplinares, com o objetivo de explorar novas formas de pensar e atuar sobre os desafios do presente, e imaginar outros futuros possíveis -, promovido pelo CAM - Centro de Arte Moderna Gulbenkian. Piny teve total liberdade para desenvolver e implementar um projeto focado no corpo como experiência da alma e como espaço de expressão física e emocional. No programa, convidou outros artistas com quem já trabalhou, valorizando redes de cuidado e afeto. 


Para selecionar participantes, Piny priorizou a diversidade, focando-se em pessoas racializadas, trans e dissidentes, muitas vezes excluídas de espaços institucionais. Com 40 selecionados, o programa é gratuito para os participantes.


Aproveitando a sua participação nesta plataforma de experimentação, que procura explorar novas formas de pensar e atuar sobre os desafios do presente, e imaginar outros futuros possíveis, conversámos com a artista sobre a descolonização da Educação e da Arte.


Durante o final da década de 90, Piny começou a estudar arquitetura e admite que esse período foi parte importante para perceber pela primeira vez a discrepância entre o centro e a periferia. À época, morava na Póvoa de Santo Adrião, perto de Santo António dos Cavaleiros, e, mais do que o tempo que demorava a chegar à Universidade, chocava-a a distância, no sentido literal e simbólico, entre os dois mundos. “Essa realidade começou a moldar o meu olhar sobre a cidade, as tensões e os espaços de conflito”, relembra.

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“Os códigos da rua também são conhecimento. Reconhecê-lo é valorizar os saberes informais e comunitários”

Piny

A conexão que tem até hoje com o hip-hop foi um ponto de partida crucial para a sua compreensão da cidade e das dinâmicas urbanas. Foi através de formas de expressão como o grafite e o breakdance que encontrou uma maneira de ler os códigos das ruas e conectar-se com outras pessoas. “Eu comecei a ouvir muito hip-hop, e havia temas que ressoavam em mim”, confessa, admitindo que, no período que antecedeu a era da internet e das redes sociais, costumava frequentar festas de hip hop na margem sul e explorar espaços como a Casa Amarela e o Metro da Rotunda, em Lisboa. Não nega que todas essas experiências foram uma ajuda essencial para construir uma base cultural e criativa capaz de transcender os limites académicos.

“Dependendo do local, escolhia apresentar-me como bailarina ou arquiteta. Era uma forma de valorizar tanto o percurso académico quanto o de rua”, partilha. Essa habilidade de navegar entre dois mundos permitiu-lhe desafiar estigmas e encontrar uma voz autêntica, mas ainda assim não deixa de criticar as barreiras e limitações, quer ao nível do reconhecimento, quer ao nível das oportunidades que os artistas enfrentam. “Na dança, nunca chegas a esse lugar de visibilidade como acontece com outras artes”, lamenta. Parte do trabalho que desenvolve atualmente é marcado pela luta contra a institucionalização eurocêntrica da cultura e por um olhar que entenda as formas da cultura urbana como formas de resistência e expressão. Para Piny, é crucial resgatar saberes africanos e incluí-los nos currículos escolares, mas mais do que isso, é necessário resolver essa lacuna de representação, que, na sua opinião, se reflete na ausência de artistas negros em posições de poder e decisão.



Piny entrevista

📷: BANTUMEN/ Nuno Silva

“Estamos ainda num sistema hiper eurocêntrico, onde o que nos ensinam é apenas uma versão da história”, reflete. O resgate da ancestralidade é, portanto, uma missão pessoal e política. “Dizer os nomes faz com que as pessoas não desapareçam”, reforça. Visitou Angola apenas uma vez e não esconde que foram tempos de descobertas, mas também de desafios. De um lado, o confronto com a própria história e com dinâmicas familiares marcadas pelo colonialismo e patriarcado. Do outro, a espiritualidade, a música, a dança e o (re)encontro mais profundo com a ancestralidade.


A crítica que Piny faz à ideia de inclusão como um gesto condescendente é um dos pontos mais marcantes da conversa. Para ela, a inclusão parte de um lugar de hierarquia e, por isso, não é suficiente. “A ideia de inclusão parte de um lugar de hierarquia. O que precisamos é pertencer, estar”, afirma. Este conceito de pertença implica que os espaços sejam desenhados para acolher todas as pessoas de forma natural, sem que estas se sintam atração ou exceção. “Os códigos da rua também são conhecimento. Reconhecê-lo é valorizar os saberes informais e comunitários, reconhecendo a riqueza da oralidade e da experiência vivida”, explica.


Piny entrevista

📷: BANTUMEN/ Nuno Silva

O seu trabalho não se limita às fronteiras de Portugal. A sua conexão com a ancestralidade africana é uma parte essencial da sua prática artística e da sua visão para o futuro. Apesar de ter visitado Angola apenas uma vez, sente que a sua ligação com o continente é espiritual e cultural. “As danças que pratico têm histórias profundas, ligadas à resistência e à luta dos nossos ancestrais”, explica. Esta conexão é evidente na forma como Piny aborda a dança, não apenas como uma expressão artística, mas como uma ferramenta de resistência e transformação social.


A presença de Piny em projetos como o Laboratório da Imaginação e em exposições como “Dança Não Dança” - patente na Fundação Calouste Gulbenkian entre 15 de novembro de 2024 e 13 de janeiro de 2025 - demonstra o seu compromisso em criar espaço para outras narrativas. Na exposição, por exemplo, foi possível ver representações de danças de rua, como o kuduro, lado a lado com estilos mais institucionalizados. “Ver um museu reconhecer a história das danças de rua e integrá-las num espaço tradicionalmente reservado à dança académica é um passo gigante”, celebra a artista. No entanto, sabe que há ainda muito por fazer. A sua luta é por um futuro onde todas as formas de conhecimento, sejam elas académicas ou comunitárias, sejam igualmente valorizadas. “Precisamos de descolonizar os espaços institucionais, desde a educação até à cultura, integrando códigos e linguagens que reflitam a diversidade das culturas urbanas”, conclui.


Piny é um exemplo de como a arte pode ser uma ferramenta poderosa para questionar, resistir e transformar e o seu trabalho inspira não apenas os seus contemporâneos, mas também as gerações futuras, mostrando que é possível construir um mundo onde todos os corpos, vozes e histórias tenham o seu lugar.

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