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Quando entrei no auditório da Gulbenkian para assistir à última sessão da Piny no Laboratório de Imaginação, trazia comigo apenas fragmentos de contexto — umas breves linhas lidas online, insuficientes para antecipar a hora e meia que se seguia. Não sabia que, ao afundar-me nos colchões colocados nos contornos daquela sala – ou “periferias” como a própria artista lhes chama –, não seria apenas espectadora mas parte de algo maior. Ainda que não fosse meu.
Naquele espaço onde a arte, a dança e a musicalidade se fundiram nos corpos dos protagonistas, criando um ritual sensorial, fui colocada na primeira fila para assistir ao início de uma jornada de autodescoberta íntima. Uma jornada que normalmente trilhamos sozinhos, em silêncio, nas quatro paredes do nosso ser. Contudo, ali, o mergulho profundo – e por vezes interminável – na autodescoberta, na libertação e na aceitação aconteceu em comunidade. Uma comunidade de 40 almas jovens que ainda se alimentam – e bem – da esperança de um futuro que as possa acolher, com desejo de apaziguar as várias ansiedades diárias cujas vozes se fazem ouvir. Até pelos outros.
Quarenta almas – mas lá fora, muitas mais e talvez até de quem me lê – que percorrem ruas escuras, desfocadas e desencontradas, envoltas de um nevoeiro, à procura de um farol: a promessa de que somos suficientes e de que as amarras que nos restringem são, na verdade, auto impostas.
O desconforto era palpável no início. Não apenas o meu — por sentir que estava a invadir uma experiência profundamente pessoal, algo que parecia ser exclusivamente daquele grupo — mas também o deles.
A sessão que começou com exercícios de toque físico entre pares, num esforço para entender que uma perna ou um braço não são só meros membros do corpo mundano, mas veículos de energia e emanações de aura, rapidamente se transformou em algo mals profundo
Ouvia-se o som de risos tímidos, ansiosos, à medida que se deixavam envolver pela experiência, mas logo esses ecos se dissiparam. O centro era a voz de Piny. Suave e acolhedora como uma estrela polar que os guiava com firmeza na direção certa. Seja qual fosse. O importante era que lá chegassem – ou que ficassem mais perto do seu porto de abrigo.
A certa altura, a própria voz de Piny foi absorvida pela musicalidade que preenchia a sala. As luzes apagaram-se e, naquele instante, os corpos se desprenderam. Das correntes da comparação, dos rótulos e das expectativas alheias. Cicatrizes começaram a curar-se, e as ditas imperfeições foram acolhidas. Ou, pelo menos, deu-se início a uma jornada que, certamente, não se concretiza em uma hora e meia.
No final, e agora sentados nos mesmos colchões colocados nos contornos da sala, onde eu me encontrava, abriu-se um espaço de partilha oral carregada de emoção — por vezes entre soluços e lágrimas. Numa espécie de terapia coletiva, as palavras saíram sem filtro, carregadas de uma vulnerabilidade crua que trouxeram com eles ao longo das 15 sessões que decorreram desde outubro, na Gulbenkian, naquela que foi a 3.ª edição do Laboratório de Imaginação, sob o tema “Habitar o(s) corpo(s)”, curado pela Piny.
O sentimento dos participantes era comum. Gratidão. Gratidão pela experiência vivida, pela aprendizagem e liberdade conquistada, e pelo simples fato de, ali, naquele momento, ter sido possível estes 40 corpos, que se sentem desajustados da sociedade, conseguirem ser genuinamente quem são, sem máscaras ou expectativas externas.
Afinal, encontrar conforto no nosso “eu” é entender que somos obra inacabada – e que essa imperfeição é, talvez, a coisa mais autêntica que temos. Embora não tivesse sido o 41.º corpo presente na experiência, e mesmo estando na “periferia” a lição tocou-me da mesma forma.
📸: Fundação Calouste Gulbenkian / Rafael de Oliveira
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