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Querida Déborah, é uma coluna de cartas para criativos em crise.
Envia a tua pergunta para deborah@bantumen.com, menciona os teus pronomes, contexto e como queres ser chamado. Todas as perguntas são respondidas anonimamente.
Querida Déborah,
Escrevo porque estou perdido. Sou escritor há anos, mas ultimamente sinto que minha criatividade secou. As palavras que antes fluíam com naturalidade agora parecem presas em algum lugar inacessível dentro de mim. Já tentei de tudo: mudar de ambiente, ouvir música, reler meus textos antigos, cultivar o ócio... Nada funciona.
Nos últimos meses, minha vida passou por mudanças turbulentas. Perdi meu emprego fixo e, para me manter financeiramente, aceitei escrever roteiros para comerciais de televisão. Não posso reclamar do trabalho, mas sinto que minha paixão pela escrita ficou sufocada pela necessidade de cumprir prazos apertados e seguir briefings rígidos. Antes, escrever era minha forma de expressão mais autêntica; agora, parece um dever mecânico.
Além disso, minha rotina virou um ciclo exaustivo. Acordo, tento escrever algo do meu próprio projecto, fracasso, me culpo, e então mergulho nas tarefas do trabalho para esquecer a frustração. Quando o dia termina, estou exausto demais para tentar novamente. Será que estou simplesmente esgotado? Ou será que perdi a centelha criativa que me fazia amar a escrita?
Sempre sonhei em escrever um romance, mas agora nem sei se sou capaz. Tudo parece um esforço doloroso. Talvez a insegurança tenha me dominado, ou a pressão de corresponder a expectativas externas tenha drenado minha criatividade. Como reencontrar o prazer da criação? Como me reconectar com a escrita sem a pressão do perfeccionismo e da obrigação?
Aguardo ansioso pela sua resposta.
Querido L,
Que agonia ler o teu relato! Muito obrigada por partilhares comigo, obrigada por vires até mim.
Infelizmente o bloqueio criativo é um mal comum, principalmente para quem depende da escrita como meio de sustento. Então, sim, pode ser que o teu bloqueio seja um sintoma de todos os factores que mencionaste: stress, esgotamento e exaustão. No entanto, as tuas palavras reflectem um profundo amor pela arte de escrever, e isso é algo que nunca se perde completamente—mesmo que se tente!
Escrever sob pressão externa pode ser bastante desafiador e muitas vezes é difícil reencontrar prazer em algo que sem dúvida amas, mas que tem sido também a tua fonte de stress. Peço-te que reserves um tempo, ao acordares ou após o horário laboral para escreveres sem compromisso. De certeza que já ouviste falar da escrita livre também conhecida como páginas matinais; pois é, gostaria que te focasses nela durante um mês.
Se nunca ouviste falar do conceito, a escrita livre nada mais é do que deixares a tua imaginação sair para brincar. Consiste em escrever, à mão, durante um espaço (número de páginas) ou tempo limitado, sem parar e sem editar. A ideia é que a tua mão seja mais rápida que o cérebro e capture qualquer e todo o pensamento que surgir antes de ele ser processado.
É uma óptima forma de desentupir os tubos criativos e deixar as ideias fluírem novamente. Se já tentaste antes, peço-te que o faças novamente, durante um mês, religiosamente. Deixa que os teus pensamentos e que a tua imaginação oscilem de uma ideia para outra, mesmo que não se relacionem, mesmo que nada que estiver a ser posto no papel faça sentido. Escreve uma página por dia ou então durante cinco minutos. Mais importante, deixa fluir. Um aspecto muito bom deste exercício é que te ajudará a superar a autocrítica que vem com o bloqueio criativo, pois neste cenário só estarás a registar pensamentos no papel, nada mais.
A criatividade precisa de espaço e tempo para fazer conexões inesperadas para que possas ver o mundo de uma nova maneira. Como mencionaste acima, escrever deixou de ser divertido, de ser prazeroso e isso tem-te comido vivo! Daí a importância de teres um espaço para escrever livremente, para descomprimir.
Como tudo o que nos propomos a fazer pela primeira vez, pode ser difícil. Podes ter dificuldade em relaxar, em deixar-te ir, em escrever sem editar e sem pensar. As primeiras tentativas podem ser bastante desleixadas, mas a beleza disso tudo é que ninguém precisa de ler o que estás a escrever, nem tu!
Após um mês, que tal revistares o teu desejo de escrever um romance? Hoje a ideia de escrever um romance parece ser grandiosa e até assustadora, mas tudo o que é grande começa pequeno. Então, após a escrita livre (ou em vez da escrita livre) regista pensamentos soltos sobre o romance, sensações de alguma personagem ou até um momento do teu dia. Lê o que escreveste, escolhe só uma frase e faz dela um tópico, um tema para desenvolver. Escreve. Depois faz uma pausa de 15 minutos, levanta-te e vai fazer e alguma coisa que te afaste da secretária. Retorna e analisa o que escreveste, palavras-chaves, ideias interessantes, partes que gostarias de desenvolver mais, anota tudo o que for relevante. Faz outra pausa de 15 minutes e ao retornar desenvolve algo que tenhas destacado. Por fim, resume o que escreveste numa frase, uma questão ou uma categoria.
Faz esse exercício durante uma semana, sempre a partir de um registo novo de escrita. Após essa semana, começa a montar as peças do teu quebra-cabeças: o que podes utilizar para desenvolver o teu romance, o que queres guardar para outros projectos.
Se sentires que ainda não é o momento de te dedicares à escrita do romance, continua a praticar o exercício até teres material suficiente. Eu chamo este exercício de escrita livre avançada, é óptimo para ideação porque pode revelar imagens, fragmentos e aspectos interessantes de uma estória. E apesar de ele não pré-determinar para onde a escrita vai, produz uma linha de pensamento fácil de seguir caso queiras desenvolver mais alguma ideia.
Em qualquer trabalho criativo pausas são necessárias. Acima de tudo, é importante que sejas gentil contigo. O bloqueio criativo não é um fracasso, mas sim um sinal de que a tua mente quer renovação e te está a pedir novos caminhos. Confia no teu talento.
E quando precisares, estarei aqui para te ajudar a encontrar o caminho o caminho de volta às palavras.
Com carinho,
Déborah
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Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.
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