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Querida Déborah, é uma coluna de cartas para pessoas criativas em crise.
Envia a tua pergunta para deborah@bantumen.com, menciona os teus pronomes, contexto e como queres ser chamada. Todas as perguntas são respondidas anonimamente.
Vivo na Europa há 10 anos, vim cá para estudar e fui ficando. Tenho quase 30 anos e me pergunto constantemente se ter ficado foi a decisão certa. Se continuar aqui, é a decisão certa. Já tenho a minha casa, mas não me sinto em casa. Depois da licenciatura, achei que finalmente poderia dedicar-me à minha arte, mas não consigo criar! Sinto-me presa de alguma forma. Tudo o que quero fazer ou imagino poder fazer não é bom o suficiente. Quero muito voltar para casa, onde tenho a minha língua e a minha gente. Quero voltar para a minha terra porque já não sou feliz aqui. Mas depois de tanto tempo, será que vale a pena deixar tudo que lutei tanto para ter?
Recentemente voltei à minha terra para visitar a minha família e senti-me inspirada para criar coisas novas, saí de lá com montes de ideias. Mas mal retornei, não consegui pôr nada em prática. Parece que cá, elas já não fazem sentido. Eu sei que aqui tenho mais oportunidades e já tenho contactos, mas parece que nada é bom o suficiente. Sinto que vou explodir, às vezes só me apetece gritar, não sei o que fazer e me pergunto se devo retomar a casa. Não é a primeira vez que me sinto assim, mas é a primeira vez que não consigo ignorar como me sinto. Os meus amigos acham que eu apenas estou com saudades de casa e que vai passar, mas será? Cada vez me sinto pior e não sei o que fazer.
Querida P,
Mudar de país, de continente, inserires-te numa cultura nova, às vezes aprender um novo idioma, é bastante exaustivo. A todo o momento o teu cérebro está a trabalhar nos bastidores interpretando os costumes da tua nova realidade, traduzindo a língua para quebrar a barreira da comunicação e, ao mesmo tempo, enviando sinais para te ajudar a navegar esse novo ambiente.
Antes de continuar, de te responder, quero pedir-te que respires fundo. Uma e outra vez. Inspira pelo nariz e expira também pelo nariz. Fecha os olhos, imagina o ar a entrar pelas narinas, a passar pela faringe, laringe, traqueia, a percorrer os brônquios e a fazer cócegas aos teus bronquíolos enquanto os pulmões enchem. E depois, solta-o.
Vamos lá. Depois de uma década, se não tivesses questionamentos sobre se estás no lugar certo e como melhor te expressares no mundo de forma artística, seria bizarro. Somos seres cíclicos e estar em movimento, interna e externamente, faz parte de ser humana. Pelo que li, ir para a Europa e mesmo permanecer, não foram escolhas cem por cento conscientes, mas sim, decisões baseadas na necessidade. Durante os teus vintes, dedicaste-te à tua formação e quiçá à tua carreira e parece-me que agora, já na porta dos trinta, as prioridades mudaram. Perguntas-me se vale a pena deixares tudo o que lutaste tanto para ter e digo-te que sim. Principalmente quando parece que permanecer te está a causar tanta dor. Tu mesma escreveste, já não és feliz. Então, o que te impede de o ser? Dizes não saber o que fazer, mas eu acredito que sabes. O que te amedronta é dar o passo seguinte, pois a possibilidade de dar errado e te arrependeres, neste momento, parece ser mais real do que a de dar certo e floresceres.
Não é a primeira vez que te sentes assim. Mas é a primeira vez que não consegues ignorar essa sensação e isso tem-te corroído ao ponto de te sentires prestes a explodir. Acredito que a chegada aos 30 também tenha trazido um certo peso; quiçá mexido com certas expectativas, inseguranças e com a tua visão de valor-próprio. Num mundo em que tudo parece acontecer tão rápido e tão cedo, chegar aos 30 questionando ainda onde deves estar ou até quem deves ser, pode parecer um fracasso. Mas não é.
A realidade que estás a viver hoje, os medos, os anseios, a angústia que já não consegues ignorar, de certeza que já as experienciaste antes dos vinte. E poderás perfeitamente experienciá-las nos quarenta, cinquenta, sessenta… A idade, o lugar que ocupamos profissionalmente, ou o quão boa a nossa vida parece estar não nos isenta de questionar, de almejar por mais, de querer mudar.
São dez anos! Dez anos de um capítulo que tens receio de encerrar. Provavelmente ainda não fizeste tudo o que querias na Europa, mas talvez já tenhas feito o suficiente para seguir em frente. É preciso aceitar que a qualquer uma das escolhas vem atrelada uma tristeza, talvez até de dor, mas poderá resultar numa serenidade pelo peso retirado das tuas costas. Apazigua o teu coração e a tua mente, não é a primeira vez que tomas decisões desta magnitude, ora, mudaste-te de mala cuia para a Europa há uma década e sobreviveste! Então relaxa, toma a tua decisão com a certeza que, desta vez, também sobreviverás.
O facto de almejares por uma mudança de ares, mesmo já tendo uma estrutura sedimentada aí—a tua casa, amigos, contactos profissionais—não faz de ti um fracasso. Na verdade, mostra-me que és muito corajosa por cogitar “largar tudo” e ir atrás do que te faz feliz.
Nota que escrevi “largar tudo” entre aspas porque, o que realmente estarás a largar? Os amigos? Os bens materiais? As oportunidades de emprego? Põe na balança o que realmente deixarias para trás e o que ganharias ao tomar qualquer uma das decisões e quais seriam as consequências. Lembrando que não passa de uma suposição. A certeza só terás mesmo quando te viveres essa situação.
Quanto ao ser criativa, minha querida, deixa que te conte, a criatividade não é um poço sem fundo, mas sim um tanque de armazenamento d’água. E a água não aparece ali magicamente, nananinanão! É preciso enchê-lo. Mas também não é encher de qualquer forma ou a qualquer momento, há que se encontrar as condições propícias para tal. Então, ser criativa, é uma busca vitalícia, pois é preciso encontrar regularmente uma maneira de abastecer o tanque, principalmente quando as condições usuais já não funcionam.
Retornares a casa, neste contexto, pode ser uma oportunidade para relaxares. Estar num lugar confortável, seguro, familiar, que não exija de ti tanto trabalho interno nos bastidores e te permita apenas ser, pensar com clareza e até criar com mais leveza. Não menosprezes esse desejo latente de retornar às raízes, nem o vejas como uma regressão, nunca! Entendo que hoje, na posição em que estás, voltar a tua terra e provavelmente ficar com familiares, pode parecer que estás a voltar à estaca zero. Mas não é isso. Às vezes, o recolhimento, o regresso ao berço, é uma oportunidade de expansão. E se fores como eu, a tua criatividade nunca se manifestará genuinamente enquanto não te sentires bem na tua pele e isso inclui, estar confortável no meio em que habitas.
Ouso perguntar, se a tua inabilidade de criar não é uma forma de te encorajar a tomar uma decisão, a fazer uma escolha, que tem sido adiada. Sobre o que tu fazes e as ideias que tens não serem boas o suficiente, boas para quem? Todas as minhas ideias, quando saem da cabeça para o papel parecem não ter sentido, mas como diz a incrível Lynda Barry, “dá-lhes tempo para se tornar algo, sem julgamentos”. Agora, há algo que mencionaste que é muito importante explorar: o contexto cultural. A forma como a Europa interpreta certas ideias é muito diferente da forma como África o faz. Isso porque são públicos com uma bagagem cultural diferente. O exemplo disso são as adaptações no mundo do entretimento, por exemplo a famosa série estado-unidense Euphoria, é originalmente israelita. Provavelmente não teria a mesma popularidade se a original fosse mostrada aos telespectadores de lá. O fenómeno espanhol La Casa de Papel foi adaptado pela Coreia. A série literária sueca Millennium de Stieg Larsson foi brilhantemente adaptada no cinema local, mas os estado-unidenses fizeram a sua própria adaptação da adaptação. Tudo isso porque o que conecta com o público, vende. E o contexto certo, é altamente comerciável. Não é à toa que durante uma entrevista sobre o filme Vedações (Fences), Denzel Washington defendeu a importância de ter um director preto. Não porque um caucasiano não conseguiria fazer um trabalho igualmente bom, mas devido ao contexto ser mais familiar a alguém preto. Outro exemplo é a adaptação de Os Filhos de Próspero de Ruy Duarte de Carvalho ao cinema, faltou contextualizar certos elementos que passaram despercebidos para um director português, mas que talvez um director angolano perceberia.
Poderia escrever extensivamente sobre as nuances que desaparecem e aparecem não só com a troca do idioma, mas também com a alteração do contexto cultural. Mas minha querida, digo-te com toda a certeza, apesar de não teres as mesmas oportunidades que terias na Europa, será que sentires que a tua ideia faz sentido e é bem percebida justifica o risco? É tudo uma questão de perspectiva. Qual é a tua?
E claro que a tua decisão poderá afectar os próximos dois, cinco, até dez anos da tua vida, mas isso é um problema para a M do futuro. A M de hoje tem apenas de se preocupar com o que lhe afecta agora. Só isso.
Para terminar, sê compassiva contigo. A sociedade não está equipada e muitas vezes aberta para acomodar a ideia de desacelerar, de ter tempo pessoal. Mas ele é extremamente necessário, pois é no silêncio que muitas vezes te consegues ouvir melhor.
E ainda sobre criatividade, sempre senti que a melhor forma de me manter criativa é lendo e vivendo muito. E nas minhas poucas décadas de vida, notei que sempre me custa mais criar quando me recuso a abraçar os altos e baixos característicos de estar viva.
Com carinho,
Déborah
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