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O que é um quilombo? Historicamente, os quilombos, ou mocambos, eram comunidades formadas por pessoas negras escravizadas que conseguiam escapar dos seus algozes durante o período da escravidão no Brasil. O primeiro agrupamento surgiu no estado da Bahia, no século XVI, tornando-se um polo de resistência e refúgio para africanos e os seus descendentes. O maior e mais conhecido foi o Quilombo dos Palmares, localizado em Alagoas, que resistiu por mais de 100 anos, até ser destruído pelos colonizadores.
A palavra "quilombo" tem origem no kimbundo, uma das línguas nacionais angolanas — que influenciou fortemente o léxico do português brasileiro — e significa "acampamento de resistência". Com o passar dos anos, o conceito transformou-se, adaptando-se às necessidades de cada época. No contexto contemporâneo, o quilombo pode ser tanto os territórios remanescentes em áreas rurais quanto centros urbanos que reúnem afrodescendentes e exaltam a cultura negra.
No artigo "Conceito de Quilombo e a Resistência Cultural Negra", publicado pela revista Afrodiáspora, a historiadora Beatriz do Nascimento afirma que "como antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo de fato, [a partir da década de 1970] o quilombo volta-se como código que reage ao colonialismo cultural, reafirma a herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de reforçar a identidade étnica".
"Estamos aprendendo a lidar com essa diversidade de opiniões, e o nosso maior cuidado é evitar divisões"
Joyce Vieira
Associações como o Aparelha Luzia, em São Paulo, buscam fortalecer a presença negra por meio de exposições artísticas, cursos, debates e festas. Tais movimentos impulsionam o aquilombamento — que nada mais é do que o estabelecimento de espaços seguros e de apoio a grupos marginalizados e excluídos.
Com essa ideia, surgiu o coletivo Quilombo Porto, em Portugal, formado por imigrantes brasileiros que buscavam um lugar onde pudessem se sentir pertencentes. Desde fevereiro de 2023, eles se reúnem para realizar ações e debates antirracistas. Embora não possuam uma sede física, vários encontros acontecem na Casa Odara. Nas reuniões, os participantes compartilham experiências dolorosas de imigração e racismo, mas também falam de projetos e conquistas pessoais, em um espaço de escuta para quem compartilha vivências semelhantes. "Estamos crescendo como quilombo. Dizemos que estamos em um modo mais orgânico, mas, ainda assim, continuamos pensando em como tornar esse espaço mais assertivo e inteligente, para que o aquilombamento nos nutra intelectualmente também", explica Joyce Vieira, uma das lideranças do grupo.
Há uma diferença significativa entre quilombos urbanos e rurais. No Brasil, um quilombo rural é aquele cujos moradores descendem diretamente de pessoas escravizadas e mantêm tradições antigas. Já o quilombo urbano tem um objetivo mais cultural, intelectual e até económico, pois precisa sobreviver dentro da cidade. Nessas associações, por exemplo, são oferecidos cursos profissionalizantes gratuitos.
Cada quilombo tem as suas particularidades, como afirma Rafael Campos, outro líder do coletivo. Ele diz que os quilombos são espaços onde se discutem as necessidades da comunidade negra e racializada, sem partidarismos. Afinal, os movimentos negros são diversos. "Estamos aprendendo a lidar com essa diversidade de opiniões, e o nosso maior cuidado é evitar divisões. Queremos que o quilombo seja inclusivo, sem brigas ou separações."
Fotogafias do evento Baile Doce| 📸 John Bravo
No texto de apresentação da associação, o conceito de quilombo é descrito como um instrumento ideológico contra a opressão. Com isso, embora estivesse ligado às suas origens no período colonial, a partir da década de 1970 o quilombo foi adotado estrategicamente pelos movimentos negros como ferramenta de resistência. A ideia se relaciona com o conceito de "quilombismo", cunhado pelo ativista Abdias do Nascimento. "Abdias fala sobre a importância de aprender com os nossos ancestrais, suas políticas de coletividade, e transformar isso em ação contínua. Isso me fez pensar em como hoje podemos continuar trazendo essas estratégias para nossas vidas", reflete Campos.
Desde a sua criação, o coletivo tem realizado eventos e atividades voltados para pessoas negras que não se sentem acolhidas em diversos espaços da sociedade. O objetivo é construir um ambiente confortável, acolhedor e seguro, mesmo dentro da complexidade das negritudes, que podem muitas vezes gerar conflitos, mas que trazem um aspeto positivo às vivências individuais. Além disso, o coletivo já promoveu rodas de poesia, sessões de cinema e rodas de conversa. "Às vezes, conseguimos nos reunir mais, outras vezes menos. Estamos buscando um equilíbrio para manter essas atividades de maneira contínua e atender a todos", dizem.
Conforme ressaltam, é necessário adaptar a perspetiva trazida do Brasil ao contexto de Portugal. No Brasil, a relação com os quilombos passou por um processo de ressignificação desde a década de 1970. Ao cruzarem o Atlântico, no entanto, eles se deparam com outras perceções, especialmente de africanos que, muitas vezes, ainda associam o termo quilombo a algo colonial. "Estamos tentando ressignificar esse termo também, de forma positiva, para as diferentes diásporas no nosso coletivo", explicam.
As lideranças ainda afirmam que é preciso unir diferentes olhares, principalmente envolvendo pessoas dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). "Acredito que é essencial termos mais pessoas dos PALOP no grupo, porque falamos tanto sobre África, mas muitos de nós ainda sabemos pouco sobre o continente. E a melhor maneira de nos conectarmos com a África é por meio dos africanos", comenta Campos. "Todos nós, de alguma forma, passamos por uma colonização mental. Cada cultura lida com isso de maneira diferente, e essa colonização mental gera divergências quando interagimos com outras pessoas. Para mim, essa colonização mental é algo profundo e pesado, uma batalha ideológica diária. Embora a opressão seja a mesma, ela se manifesta de maneiras diferentes", opina Patrícia Campos, também liderança do coletivo.
As ações do coletivo incluem apoio económico e educacional. Já foram oferecidas aulas de inglês organizadas por um dos membros, e o grupo serve como um canal para compartilhar oportunidades de trabalho e comércio dentro da comunidade. Quando alguém enfrenta dificuldades económicas, o coletivo se organiza para ajudar. A visão de apoio mútuo é considerada essencial para a sobrevivência do grupo.
No entanto, ser amplamente reconhecido não é o propósito do coletivo. "Nossa intenção é aparecer para quem importa, para quem faz parte da luta. Não buscamos reconhecimento de qualquer lugar. O importante é que a prioridade seja sempre a questão racial, e as pessoas pretas em primeiro lugar", pontuam.
A união das pessoas negras em um lugar onde possam encontrar acolhimento e aceitação é uma forma de combater as agressões quotidianas motivadas pela cor da pele. "Por isso, o racismo não pode ser combatido como uma luta simples. Todo ano alguém está reclamando, fazendo algo, e sempre há alguém morrendo. Isso é triste, mas é uma realidade. Ao mesmo tempo, é triste e bom, porque nos mostra que precisamos nos fortalecer entre nós", concluem.
Baile Doce| 📸 John Bravo
Baile Doce: um baile charme que exalta a música negra
As diversas discussões sobre como resgatar a identidade negra inspiraram outros projetos — entre eles o Baile Doce, que acontece no Porto pelo menos uma vez por mês. Inspirados pelos "bailes charme", que surgiram no Rio de Janeiro durante a década de 1980, Joyce Vieira, Patrícia Campos e Samuel Wenceslau criaram uma festa voltada para reunir pessoas negras. "A ideia era criar um espaço de união", explicam.
O baile charme nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro entre o final da década de 70 e início dos anos 80. Embalados pelo som de R&B, jazz e soul, o público realizava coreografias com movimentos cadenciados, os famosos "passinhos". Esses bailes ainda são um sucesso no Brasil, especialmente em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. "É um espaço divertido para dançar, onde todos participam e a estética é muito bonita. Ver a galera dançando no mesmo ritmo é algo incrível", comentam.
"Nós já trabalhávamos na área da cultura e de festas há algum tempo, e sempre sentíamos a inquietação de estar em um lugar onde não éramos donos nem ditávamos as regras", explica Wenceslau. Foi assim que surgiu a festa de charme, realizada desde junho deste ano. Inicialmente chamada "festa preta" — sem um nome definido —, uniu as memórias compartilhadas por seus pais e avós para colocar o evento em prática.
Além de ser uma festa de charme, que já tem a sua própria história, é a primeira voltada para a comunidade negra e imigrante no Porto. Não é exclusiva para pessoas negras, mas os organizadores desejam criar um espaço cercado por pessoas pretas, onde todos podem participar. "Estamos num momento de muita efervescência, especialmente depois da pandemia, quando a música brasileira e a cultura negra começaram a ganhar mais destaque", afirmam.
O primeiro evento foi uma apresentação na Casa Odara, onde o baile charme foi introduzido por meio de um documentário que explicava as suas origens. Depois, a festa começou, já com os passinhos. A cada edição, novas pessoas participam, e os organizadores notam que o número de participantes só cresce, apesar de ser uma proposta inédita no Porto. "Existem rodas de samba e bailes funk, mas o charme é algo novo por aqui", observam.
O Baile Doce também se destaca pela diversidade do seu público. "Temos pessoas de várias idades, e isso é muito legal. Os mais velhos se identificam, e os mais novos se empolgam, entrando na vibe e dançando os passinhos. Cerca de 60% do nosso público é composto por afrodescendentes, incluindo brasileiros e pessoas de outros países", dizem.
Ao decidirem realizar o baile charme, houve um intenso trabalho de pesquisa. Entre o hip-hop, afrobeat e pop, o evento foi se construindo como uma tapeçaria musical. "Com o tempo, percebemos que o charme não é só um estilo, é um movimento. Tudo pode ser charme. O importante é entender a essência da cultura e ver o que funciona." As conexões e trocas entre os participantes durante o baile criam um espaço onde cada um pode compartilhar suas influências e também conhecer novas referências.
Mas nada disso seria possível sem honrar a ancestralidade e olhar para o passado, em que pais e avós introduziram um universo de musicalidade. "Nós trazemos uma roupagem contemporânea para a cultura que nossos pais construíram. Respeitamos essa cultura e, ao mesmo tempo, acrescentamos nossas vivências e a nossa geração", afirmam.
Inovar, sem perder contacto com o que veio antes, é a proposta do baile charme. "À medida que amadurecemos, o baile ganha novas formas, mas sempre mantendo sua essência. Sinto que isso é uma forma de honrar nossas raízes enquanto fazemos algo novo", concluem.
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