Tiniguena: Ecologia, Feminismo e o Legado de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau

18 de Fevereiro de 2025
Tiniguena Amílcar Cabral Guiné-Bissau
📸: Vanessa Ribeiro Rodrigues

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No horizonte vasto da Guiné-Bissau, onde o verde denso das florestas se encontra com o azul profundo do Atlântico, há uma voz que ecoa há décadas, firme e resistente, como as raízes de um mangal que protege a terra das tempestades. Augusta Henriques, fundadora da ONG Tiniguena, falou com a BANTUMEN sobre o peso da experiência e a convicção de quem sabe que transformar a realidade é um caminho longo, mas não solitário.


Quando Augusta Henriques e um grupo de cidadãos comprometidos com a terra e o povo fundaram a Tiniguena, há 35 anos, o horizonte era outro. As preocupações centrais orbitavam em redor da conservação da biodiversidade e da gestão durável dos recursos naturais da Guiné-Bissau, guiados pela ideia de que desenvolvimento e participação cidadã deveriam caminhar juntos. Hoje, no entanto, o mundo depara-se com uma crise climática de proporções alarmantes, e o trabalho iniciado pela Tiniguena revela-se mais relevante do que nunca, pois insere-se num contexto de luta ecológica e feminista pela sobrevivência.


A história da Tiniguena é, também, uma história de resistência. A organização, cujo nome significa "Esta Terra é Nossa!", sempre se ergueu como um movimento de afirmação e defesa da soberania alimentar, dos saberes tradicionais e da participação ativa das comunidades na gestão dos seus territórios. Desde o início, a luta pela conservação da natureza foi intrinsecamente ligada à luta pelo direito à autodeterminação dos povos, num alinhamento direto com o pensamento e o legado de Amílcar Cabral.

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Cabral via a terra como algo sagrado, indivisível da identidade e do futuro da Guiné-Bissau. Ele compreendia que a libertação nacional não seria apenas uma conquista política, mas também uma afirmação da capacidade do povo de gerir os seus recursos de forma soberana e sustentável. Essa ideia ressoa até hoje na missão da Tiniguena, que busca garantir que a biodiversidade da Guiné-Bissau não seja expropriada, devastada ou moldada conforme os interesses de potências externas e corporações predatórias.


Mas se a luta ambiental sempre foi essencial para a Tiniguena, é impossível dissociá-la das questões de género e justiça social. Sob a liderança de Augusta Henriques, a organização foi, desde cedo, mesmo que inconsciente, uma expressão de feminismo prático, uma forma de insurgência contra um sistema político e social moldado por estruturas patriarcais. "Ser feminista não foi uma escolha isolada. Era a única forma possível de fazer esse trabalho, num país onde as mulheres sempre foram guardiãs das sementes, da terra, da vida", reflete Augusta.


Na Guiné-Bissau, particularmente na região dos Bijagós, as mulheres são protagonistas na defesa da biodiversidade. São elas que, em muitas comunidades, mantêm as práticas tradicionais de cultivo, protegem as sementes locais da erosão genética e garantem a segurança alimentar de suas famílias e aldeias. Porém, o modelo de desenvolvimento que historicamente tem sido imposto ignora essas contribuições, privilegiando um sistema agroindustrial que marginaliza os saberes tradicionais e compromete a sustentabilidade ambiental.


Tiniguena tem servido como ponte entre essas mulheres e políticas de defesa do meio ambiente e dos direitos comunitários, consolidando uma rede de proteção e valorização da biodiversidade guiada por princípios de justiça social. Num contexto de emergência climática, em que eventos extremos afetam diretamente as formas tradicionais de cultivo e sobrevivência, essa luta torna-se ainda mais urgente.


Hoje, passados mais de 35 anos desde sua fundação, a Tiniguena continua a ser uma referência para a autogestão ambiental e a luta feminista na Guiné-Bissau. Augusta, ainda que tenha se afastado da direção da organização, permanece um símbolo vivo dessa resistência. "A ação cidadã foi o que nos moveu desde o início. Como dizia Cabral, cada um deve pagar o seu quinhão ao país. Para mim, esse quinhão sempre foi a defesa do património natural e cultural da Guiné-Bissau", diz a fundadora.


"Nos últimos anos do colonialismo, as universidades eram espaços de efervescência intelectual. A justiça social era um tema forte, inspirada em grandes teóricos como Marx e Frantz Fanon, e nas lutas emancipatórias africanas. Cabral, como homem da sua época, trocava ideias com Eduardo Mondlane, Agostinho Neto e outros líderes africanos. Ele deu-nos a compreensão de que a nossa luta não era apenas contra o colonialismo, mas também contra as desigualdades dentro da nossa própria sociedade."

Tiniguena Amílcar Cabral Guiné-Bissau

Augusta Henriques

A tomada de consciência de Augusta foi um processo natural. Criada em um meio privilegiado, ela percebeu que a sociedade guineense era desigual e que era preciso agir para transformar essa realidade. Ao regressar à Guiné-Bissau, após vários anos fora, entre o mundo académico, viu que não estava sozinha. Havia uma geração inteira que, inspirada pelos ensinos de Cabral, via a justiça social como um compromisso inegociável. "Amílcar Cabral dizia que nossa luta não era por ideias abstratas, mas para melhorar a vida quotidiana do nosso povo e garantir o progresso da nossa terra. Isso ficou sempre presente na minha cabeça. O objetivo não era apenas libertar a Guiné-Bissau do colonialismo, mas também construir uma sociedade mais justa".


A história de Cabral, no entanto, também é marcada por traição e luta interna. A sua morte é um símbolo das contradições dentro dos processos revolucionários, e, segundo Augusta, esses desafios persistem até hoje. "Não era simples identificar apenas a luta contra o colonialismo. Havia também um combate interno, a contradição de ver os nossos próprios irmãos a perpetuar estes sistemas de dominação. Cabral sonhava com um 'homem novo', e a educação popular, defendida então por Paulo Freire, era um caminho para formar cidadãos capazes de conduzir o país de maneira diferente."


E foi com essa visão que Augusta fundou a Tiniguena, uma organização que busca unir preservação ambiental e identidade cultural. Para ela, a relação entre cultura e natureza é intrínseca, e uma não pode existir sem a outra. "Por que não uma natureza preservada, se há cultura com identidade? Por que não uma cultura enraizada, se há uma natureza protegida? Ambos são interdependentes e são a essência da nossa unicidade enquanto povo guineense." A paixão com que fala revela a esperança de quem ainda acredita na possibilidade de um futuro melhor para a Guiné-Bissau. Mas também a frustração de ver os desafios persistirem. "A Guiné tem tudo para ser o nosso paraíso. Falta-lhe homens e mulheres com cabeça e coração para seguir na direção certa."

“A África não avançava porque não havia participação popular suficiente”

Augusta Henriques

A fundadora reconta que a Tiniguena nasceu num contexto de transformação e procura por um modelo de desenvolvimento que fosse simultaneamente participativo e sustentável. Fundada em 5 de junho de 1991, a organização surge de uma reflexão profunda sobre a interconexão entre preservação ambiental e desenvolvimento comunitário. Naquela época, as organizações costumavam dividir-se entre duas abordagens: ou trabalhavam com desenvolvimento ou com questões ambientais. A Tiniguena rompeu essa dicotomia ao reconhecer que ambas estavam intrinsecamente ligadas. “Pensávamos que o meio ambiente e o desenvolvimento não eram coisas distintas, mas sim dimensões de um mesmo desafio,” explica Augusta.


Desde o início, a Tiniguena bebeu da fonte da Carta de Arusha, documento pan-africano que emergiu no início da década de 1990 e clamava por uma maior participação popular nas decisões políticas e económicas do continente. Esse manifesto denunciava a captividade dos Estados africanos dentro dos programas de ajustamento estrutural impostos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, que sufocavam qualquer autonomia local. “A África não avançava porque não havia participação popular suficiente”, relembra Augusta. A organização assumiu esse desafio: não apenas promover a participação cidadã nos processos de desenvolvimento, mas garantir que o próprio conceito de desenvolvimento fosse moldado pelas vozes das comunidades locais.


Ao mesmo tempo, o programa de planificação costeira da Guiné-Bissau, iniciado em 1989 pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), estava em curso. Esse programa pretendia identificar e proteger ecossistemas de importância ecológica através da criação de áreas protegidas, enquanto promovia melhores condições de vida para as comunidades locais. A Tiniguena, ao nascer nesse cenário, incorporou essa perspectiva e construiu uma metodologia própria, fundamentada na participação ativa das populações no manejo dos recursos naturais.

Tiniguena Amílcar Cabral Guiné-Bissau

📸: Vanessa Ribeiro Rodrigues

Nos primeiros anos, a estrutura focou-se fortemente na educação ambiental, sensibilizando crianças e comunidades sobre a riqueza natural da Guiné-Bissau. Durante 12 anos, a organização promoveu visitas de estudo, campanhas de sensibilização e produziu materiais educativos, como calendários ilustrados com a biodiversidade nacional. Crianças entre 12 e 15 anos viajavam por diferentes regiões do país, descobrindo as suas paisagens e modos de vida, tornando-se pequenas embaixadoras do património ambiental e cultural. “Esse trabalho plantou sementes que germinaram nas gerações futuras da Tiniguena. Jovens que participaram nessas viagens, como Miguel de Barros, trouxeram novas perspectivas e expandiram a atuação da organização. Com o tempo, a Tiniguena passou a articular a questão ambiental com outras problemáticas, como as alterações climáticas e a justiça social”, relembra.  


Nos anos mais recentes, a organização redirecionou parte da sua energia para a luta climática. No início, as alterações climáticas eram vistas sob a ótica da desertificação e da necessidade de proteção das florestas. Todavia, como Augusta explica, “a compreensão aprofundou-se para além da superficialidade: não basta mitigar os impactos, é preciso questionar a origem da crise climática e os seus efeitos desiguais sobre diferentes grupos sociais. Falar de alterações climáticas sem falar de justiça social, sem mencionar a compensação para os países que não são responsáveis pelo problema, é insuficiente. O clima é um indicador claro de que o modo como vivemos e consumimos é insustentável,” alerta. “A crise climática não pode ser reduzida a uma questão de elites ou de intelectuais. O seu impacto recai desproporcionalmente sobre as camadas mais vulneráveis da população, especialmente as mulheres. Quem apanha água quando os rios secam? Quem cultiva a terra quando as sementes não germinam? Quem assegura a alimentação da família quando o solo está esgotado? São as mulheres.


Foi a partir dessa percepção que nasceu um dos projetos mais inovadores da Tiniguena: as Mulheres Guardiãs de Sementes e da Biodiversidade. Essa iniciativa atua como um laboratório social, onde mulheres de diversas comunidades compartilham saberes e técnicas ancestrais para preservar e multiplicar sementes nativas, fortalecendo a soberania alimentar e a resiliência climática. Mais do que um projeto agrícola, trata-se de um movimento de reapropriação do conhecimento e de fortalecimento das redes comunitárias, pilares sagrados e valiosos para Amílcar Cabral.


Assim, Augusta define a jornada da entidade como uma necessidade de demonstrar, na prática, alternativas viáveis. O seu compromisso é criar modelos replicáveis que inspirem outras organizações e comunidades a adotarem estratégias de gestão participativa dos recursos naturais. Num mundo onde a crise climática é muitas vezes tratada como um negócio de mercado, a Tiniguena reafirma a sua missão: lutar por uma transição ecológica que respeite as culturas locais, proteja os territórios e fortaleça a soberania das comunidades sobre os seus próprios destinos. Como dizia Amílcar Cabral, "o mais importante é resolver os problemas do nosso povo" - e é exatamente isso que a Tiniguena continua a fazer.


Desde o momento em que Augusta assumiu um papel de liderança na Guiné-Bissau, que a sua trajetória foi marcada por desafios e transformações. Filha de uma sociedade assente em normas patriarcais, ela encontrou-se, muito cedo, em posições de responsabilidade, onde a sua presença, sendo mulher, mestiça e relativamente jovem, causava um impacto singular. Mas não estava sozinha. Havia mulheres que, em diferentes frentes, pavimentavam caminhos na administração pública e na sociedade civil. Dulce Borges, então diretora geral de ensino no Ministério da Educação, foi uma dessas figuras, mulheres cuja competência e dedicação demonstravam, na prática, a possibilidade de ocupar espaços decisórios com firmeza.


Porém, assumir um papel de liderança em causas tão sensíveis quanto as lutas ambientais trouxe desafios ainda maiores. O episódio do desmantelamento de 15 navios, um dos mais marcantes na trajetória da Tiniguena, ilustra bem essa realidade. Foram dois anos intensos de disputas e negociações, durante os quais a organização, representada por uma mulher, precisou fazer-se ouvir num contexto dominado por vozes masculinas. A luta ambiental entrelaçava-se, inevitavelmente, com a luta feminista, pois exigir respeito ao meio ambiente também significava reivindicar espaços de fala para as mulheres dentro das decisões políticas e comunitárias. Assim, a Tiniguena foi se tornando mais do que uma organização de conservação; tornou-se um espaço de resistência e de construção coletiva, onde a presença feminina não se resumia à ocupação de cargos, mas sim à integração efetiva das mulheres na formulação de estratégias, na implementação de ações e na reafirmação de um compromisso profundo com a transformação social.


Esse compromisso não poderia ser apenas retórico. "Nós não podemos preconizar aquilo que não somos", enfatiza Augusta. A Tiniguena não poderia atuar junto às comunidades sem que, internamente, cultivasse os mesmos valores que defendia. A visão feminista e a consciência ambiental eram mais do que bandeiras institucionais; eram práticas incorporadas no dia a dia da organização, refletidas nas suas metodologias de trabalho e na maneira como as suas equipas eram formadas. O envolvimento das mulheres no terreno sempre foi uma prioridade, não apenas pela necessidade de inclusão, mas porque elas, historicamente, sempre estiveram na linha de frente da gestão dos recursos naturais, da agricultura familiar e da preservação da biodiversidade.


Foi a partir desse entendimento que nasceram iniciativas como o projeto das Mulheres Guardiãs de Sementes da Biodiversidade. Antes de chegar a esse ponto, no entanto, houve um longo caminho de diagnóstico, escuta e experimentação, confirma Augusta. “A relação com as comunidades locais sempre foi construída a partir de um respeito profundo pelos seus saberes tradicionais, e foi observando a dinâmica dessas comunidades que a Tiniguena percebeu a necessidade de fortalecer as lideranças femininas. No arquipélago dos Bijagós, particularmente na ilha de Formosa, a estrutura social matrilinear permitia que mulheres como Cantoucha, uma líder comunitária de uma inteligência e perspicácia notáveis, exercessem papéis fundamentais na organização da vida local. Contudo, ao longo dos anos, percebeu-se que essas lideranças estavam a desaparecer sem que houvesse novas mulheres ocupando esses espaços. O que estava a acontecer?” O diagnóstico revelou múltiplos fatores. Por um lado, havia uma sobrecarga estrutural: as mulheres, especialmente as mais jovens, estavam sobrecarregadas com o trabalho doméstico e com o cuidado dos filhos, muitas vezes sem acesso a métodos de planeamento familiar que lhes permitissem gerir melhor os seus tempos e prioridades. Por outro lado, a própria dinâmica cultural e económica estava transformava-se: com a crescente monetização dos recursos naturais, práticas de governança tradicional, que garantiam um equilíbrio sustentável, eram corroídas pelo peso do mercado. Com isso, a biodiversidade local, antes protegida por regras de uso comunitário, passava a ser explorada de maneira predatória, comprometendo assim a sustentabilidade da vida nas ilhas.

“É uma luta pela igualdade, pela justiça social, e esta não é possível sem que as mulheres tenham plenos direitos”

Augusta Henriques



O projeto das Mulheres Guardiãs de Sementes da Biodiversidade surgiu, então, como uma resposta articulada a essas questões. “Antes de tudo, foi necessário reconstruir redes de conhecimento. A partir de metodologias participativas, as próprias mulheres foram identificando as variedades de sementes tradicionais que desapareciam, resgatando práticas de cultivo e refletindo sobre a divisão de trabalho entre homens e mulheres na agricultura. Algumas culturas, como o arroz – um cultivo historicamente masculino entre os Bijagós – precisavam ser compreendidas dentro dessa lógica para que a preservação da biodiversidade não se tornasse uma responsabilidade exclusiva das mulheres. Era preciso envolver os homens nesse compromisso coletivo”, confessa a fundadora.


Os três anos de implementação do projeto trouxeram imensas aprendizagens para Augusta. A experiência de acompanhar estas mulheres, de construir em conjunto alternativas para a sustentabilidade, foi um processo de transformação mútua. Para Augusta, foi um dos momentos mais enriquecedores da sua trajetória. "Eu pedi casa em Formosa, construí uma casa lá", relembra. "Acompanhar de perto estas mulheres, ver de dentro as suas estratégias, os seus desafios, as suas conquistas, foi um privilégio imenso." O trabalho da Tiniguena nunca foi sobre imposição de modelos externos, mas sobre a criação de espaços onde as próprias comunidades pudessem reencontrar os seus caminhos, fortalecendo as suas práticas tradicionais de forma adaptada aos desafios contemporâneos.


A luta ambiental e a luta feminista, para Augusta, são indissociáveis. Num país onde a biodiversidade é um dos maiores patrimónios e onde as mulheres desempenham um papel central na sua gestão, qualquer transformação genuína precisa partir desse reconhecimento. Mais do que preservar espécies e territórios, é preciso preservar saberes, práticas e modos de vida que garantam a continuidade dessa riqueza. E, para isso, as mulheres precisam estar no centro das decisões. Não apenas como beneficiárias de projetos, mas como protagonistas da mudança.

Desde os primeiros passos da sua atuação, Augusta percebeu que a preservação da biodiversidade e a justiça social não são batalhas separadas. "Quando cheguei na parte final daquele período, vi que eram os homens que estavam a começar a empenhar-se mais na preservação da nossa diversidade", recorda. Mas foi também nesse momento que compreendeu que qualquer transformação, para ser real e duradoura, precisava de atravessar as estruturas do patriarcado. "O feminismo não é uma luta de mulheres para mulheres. É uma luta pela igualdade, pela justiça social, e esta não é possível sem que as mulheres tenham plenos direitos."


A Tiniguena nasceu exactamente desse entendimento profundo e a interseccionalidade está no coração da prática. Um projeto que defende a biodiversidade como uma riqueza inestimável, mas que também luta para que a sua proteção seja feita de forma equitativa, considerando as mulheres não apenas como agentes de produção, mas como sujeitos políticos, económicos e sociais. "Toda a ação feminista que visa apenas as mulheres, sobrecarrega ainda mais as mulheres. É preciso incluir os homens, transformá-los em parceiros, não opositores."

Tiniguena Amílcar Cabral Guiné-Bissau

📸: Vanessa Ribeiro Rodrigues

A questão ecológica está intrinsecamente ligada à desigualdade de género e à justiça social. "As mulheres têm uma relação com a terra que não é apenas de sobrevivência, é também de resistência e renovação. Elas ensinam estratégias para enfrentar as mudanças climáticas, mas quantas vezes essas estratégias são reconhecidas?". O ativismo ecológico feminista da Guiné-Bissau insere-se num contexto global de justiça climática e ambientalismo descolonial, mas a sua dinâmica é singular. As mulheres guineenses têm liderado silenciosamente, e agora, mais do que nunca, fazem-se ouvir. "Antes, não havia uma ação clara e assumida. Agora, temos organizações dirigidas por mulheres, como o IBAP, que antes tinha uma estrutura altamente machista, e que hoje é liderada por Aissa Regala, uma mulher de garra."


Ainda assim, o desafio permanece. A luta feminista na Guiné-Bissau tem sido frequentemente vista como um movimento de elites intelectuais, desconectado da base. "Como é que essa elite se  pode casar com as mulheres que realmente carregam o peso das transformações? Porque se não formos capazes de criar pontes, ficamos a falar sozinhas.", afirma Augusta.


Na construção desse caminho, a juventude tem um papel fundamental. "Os jovens estão a chegar. E eles precisam de uma perspectiva feminista que inclua os homens. Enquanto não tivermos homens feministas, não chegamos lá."


Mas o que significa, afinal, mudar estruturalmente essa realidade? Para Augusta, não basta criar projetos que envolvam mulheres na produção económica sem garantir que elas sejam agentes reais de transformação. "Não podemos continuar a ver as mulheres apenas como aquelas que trabalham para a comunidade. Elas precisam trabalhar para si mesmas, pelo seu bem-estar, pela sua autonomia."


E o que diria Augusta a Amílcar Cabral se pudesse falar com ele hoje? A resposta vem com um peso de dor e esperança. "Muitas vezes, estou desanimada. Vejo como, todos os dias, matamos Cabral. É verdade que o colonialismo incentivou o assassinato de Cabral, mas quem o matou fomos nós, guineenses. E todos os dias o matamos novamente. Mas simultaneamente, ele renasce. Renasce nas vozes, nas ações de cada jovem que precisa de referências para se inspirar. Cabral, tu és uma fonte de inspiração que vai muito, muito, muito para além de todo o mal", termina.


O caminho continua. Entre as lutas ambientais, a defesa da soberania alimentar, a equidade de género e a busca por justiça social, Augusta Henriques segue com o compromisso de assegurar que a terra só será verdadeiramente do povo, se nela couberem todos, de forma justa e igualitária.

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