“Um povo sem cultura é um povo desarmado”, Tito Paris

27 de Abril de 2025
tito paris entrevista

Partilhar

Com mais de quatro décadas de percurso, no dia 3 de maio, Tito Paris sobe ao palco em Lisboa como cabeça de cartaz da primeira edição do Festival Morabeza LX. O evento, com entrada livre e organização da Kriativu, celebra a diversidade e a herança cultural da cidade, tendo em Tito um nome símbolo da travessia entre Cabo Verde e Portugal. "Sinto-me orgulhoso por ser escolhido, sobretudo quando são dois jovens a organizar. Mesmo que um dia não esteja lá a cantar, estarei aqui para apoiar."


Nascido em 1963, na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, Tito cresceu rodeado de música. “A minha família era toda de músicos”, recorda. O pai, que trabalhava nos navios, trazia frequentemente instrumentos para casa - guitarras, baixos, baterias - e com eles os irmãos formavam bandas improvisadas. Foi a irmã quem lhe ensinou os primeiros acordes da guitarra que diz guardar até hoje. Ainda em Cabo Verde tocava guitarra e baixo, mas foi já em Portugal que, por imposição das circunstâncias, se viu a tocar bateria: “Puseram-me a tocar contra a vontade, senão ficava de fora”. 


Entre os nomes que o influenciaram, destaca figuras como Paulino Vieira, Paulo de Carvalho e Vitorino. “Paulino Vieira foi a pessoa que mais me marcou. O homem é completo, toca tudo, escreve, compõe, grava, ensina, toca piano, guitarra, baixo, bateria”.  A experiência com Paulo de Carvalho também foi importante no seu percurso, não só pelo convívio musical, mas pela abertura à música portuguesa e à partilha de palco e estúdio. “Trabalhei com o Paulo de Carvalho muitos anos. E fui encontrando pessoas mais jovens também. Passamos informação uns aos outros, independentemente da idade”.


Essas experiências, aliadas à sua versatilidade viriam a definir o seu percurso artístico. Com passagem por múltiplos instrumentos, Tito desenvolveu um sentido apurado para arranjos musicais. Chegou a trabalhar com Bana, Cesária Évora e Ildo Lobo. A sua voz como cantor surgiu quase por acaso. Foi durante uma digressão na Holanda, com o grupo A Voz de Cabo Verde, em 1984, que Paulino Vieira o desafiou: “Canta tu”. Relutante, Tito aceitou. “Cantei uma frase. Depois era sempre eu a cantar essa música. Acreditaram em mim e eu comecei a acreditar também”.

PUBLICIDADE

Universal // Florito e Neyna tirar dia 1 de maio
tito paris entrevista

Tito Paris durante a entrevista com a jornalista Marisa Mendes Rodrigues | 📸 Gonçalo Moreira

O momento representou uma mudança de rumo. Até então, Tito era conhecido sobretudo como instrumentista. Mas aquela atuação espontânea fez com que começasse a ser visto também como cantor. “Cantei com medo, mas eles gostaram e deixaram-me a cantar”. A segurança na voz foi crescendo com o tempo, não por imposição, mas pela resposta do público e do próprio grupo.

Após a digressão, regressaram a Portugal e estiveram durante um mês a tocar no Porto. Foi durante essa temporada que Tito tomou uma decisão importante: sair do grupo e apostar numa nova fase com Dani Silva. “Já não toquei baixo, passei a tocar guitarra. E o Dani saía do palco e dizia: ‘Tito Paris, além de grande guitarrista, canta também’. Ele deixava-me sozinho no palco. Tinha de me desenrascar.” Esse período foi crucial para o amadurecimento da sua identidade artística. A experiência obrigou-o a consolidar a presença em palco e a ganhar confiança como intérprete. “Foi aí que percebi que podia fazer isto a solo. Que podia ser cantor, sem deixar de ser músico”.

O primeiro concerto em nome próprio foi em Lisboa. Subiu ao palco sem certezas, mas com a urgência de afirmar a sua voz. “Cantei ‘Luanda fica longe’, do Teta Lando. Angola estava a passar uma fase muito difícil. Era uma forma de homenagem”. A escolha não foi inocente: a canção carrega uma memória de resistência e exílio, e ressoava com as lutas partilhadas entre as antigas colónias. Foi a partir daí que se lançou na composição. Começou por temas que já tinha esboçado em cadernos antigos. Aos poucos, a guitarra passou a ser também a ferramenta para escrever. “Mais tarde comecei a compor. Não apenas para mim, mas para dar continuidade a uma história”.

Radicado em Lisboa desde o final dos anos 1970, Tito Paris optou desde início por uma abordagem musical inclusiva. “Achava injusto que os grupos fossem só de cabo-verdianos, ou só portugueses. O meu primeiro grupo aqui tinha angolanos, guineenses, brasileiros, portugueses… eu era o único cabo-verdiano”. Foi nesse ambiente que nasceu a sua estética musical: uma fusão de mornas, coladeiras e funanás com jazz, bossa nova e influências do mundo. “Não gostava do som quadrado. Queria que cada músico trouxesse algo do seu povo”. Para o artista, o valor da música está na troca: intergeracional, informal, viva. “Aprendi com os mais velhos, mas também com os mais novos. É assim que a música se mantém viva”. Recorda que muitos dos músicos com quem trabalhou mais tarde cresceram a ouvi-lo, mas agora são eles que lhe mostram abordagens novas. "Hoje há jovens com um swing e uma harmonia que eu nunca pensei ouvir em Cabo Verde”. Considera que essa dinâmica é essencial para evitar que a música cabo-verdiana fique estagnada. “Temos que dar espaço aos mais novos, ouvi-los também. E os mais velhos têm de estar disponíveis para ensinar, mas também para aprender.”


Essa abordagem, que recusa compartimentos estanques, está patente em discos como Graça de Tchega (1994) e Mim ê Bô (2002), e valeu-lhe reconhecimento dentro e fora de Cabo Verde. O álbum "Meuz Amores" (2017), lançado no âmbito dos 40 anos de carreira, contou com participações de artistas como Boss AC, Jorge Palma, Vitorino, Paulo de Carvalho, Mariza e Angélique Kidjo. Em 2017, foi condecorado pelo Presidente da República de Portugal com o grau de Comendador da Ordem do Mérito e já recebeu distinções da Câmara Municipal de Lisboa, da cidade de Boston e da diáspora cabo-verdiana em França e nos Estados Unidos. Apesar disso, rejeita o protagonismo: “A minha riqueza está onde estou, com os amigos. A simplicidade vem de um lugar difícil. Há quem não saiba ser simples”. Talvez seja por isso que Tito se mantenha avesso às redes sociais e à exposição pública. “Não gosto que me filmem. Se filmarem, que fiquem com o vídeo para eles”. 


Foi com essa simplicidade que nos recebeu no Café Nina, em Campo de Ourique, local onde costuma ir beber café depois do almoço. Sem sucumbir à pressão mediática e estética, valoriza o simples e deixa claro que essa opção não resulta de timidez, mas de uma filosofia pessoal: “Não preciso de mostrar onde estou, o que como, com quem estou”. Essa forma de estar valeu-lhe o respeito de muitos colegas, e contribuiu, segundo o próprio, para a longevidade da sua carreira. “Quando fazes bem, o reconhecimento vem. Eu não pedi nada. Só cantei”.

“[Em Cabo Verde] O ministro mais importante devia ser o da Cultura. Nós não temos petróleo. Temos cultura”

Tito Paris

Ainda que o seu talento lhe tenha valido uma nomeação como embaixador cultural e passaporte diplomático, como reconhecimento pelo papel de representação artística de Cabo Verde, não esconde que são necessárias alterações no que diz respeito à gestão cultural do país e que, num país onde não há diamantes nem petróleo, o Ministério da Cultura deve ser tido como prioridade. “O ministro mais importante devia ser o da Cultura. Nós não temos petróleo. Temos cultura”. Para Tito, a cultura não é apenas expressão artística, mas um ativo estratégico para o desenvolvimento do país. “Um povo sem cultura é um povo desarmado”. 


Defende que a cultura deveria estar no centro das políticas públicas de Cabo Verde e lamenta a ausência de plataformas que promovam a música nacional dentro do próprio país. Aponta como exemplo negativo o facto de rádios locais raramente passarem música cabo-verdiana, preferindo conteúdos importados. “Há mais música cabo-verdiana em Portugal do que em Cabo Verde”, diz acrescentando que o trabalho base deve ser começado pelas escolas. Para o músico, é necessário haver um ensino cultural estruturado nas escolas, onde o tradicional serve de ponte para a inovação, mas também devem ser feitas alterações ao nível da tributação: baixar os impostos às casas de cultura, segundo o próprio, seria já um bom incentivo. O outro passa pela intervenção política junto dos jovens. Tito lamenta e teme que o uso excessivo de tecnologia desvirtue a música cabo-verdiana da sua essência. “Estamos a perder a alma da nossa música”. A mensagem ganha força ao mencionar que chegou a apresentar um projeto para a criação de uma orquestra nacional, que foi engavetado. “Levei o projeto numa pasta. Não quiseram”. Entretanto, apareceu uma orquestra composta apenas por músicos estrangeiros. “Quem não fala inglês ou espanhol não toca”. Apesar disso, continua a achar o sonho possível e relembra o trabalho que artistas como Mayra Andrade, Tcheka e Sandra Horta fazem na promoção da identidade do país, equilibrando tradição e contemporaneidade. “É música cabo-verdiana, não deixa de ser, mas com o seu toque. É por aí que temos que ir”.


Este ano, além de ser cabeça de cartaz do Festival Morabeza, Tito vê o seu país, Cabo-Verde, celebrar 50 anos de independência e esse foi o repto lançado para as perguntas que se seguiram: que Cabo-Verde temos hoje? Que diria Cabral e que caminho para os próximos 50 anos?


Aristides, nome verdadeiro do artista, tinha 11 anos quando viu a bandeira portuguesa ser retirada e a ser içada a nova bandeira do país, na altura igual à da Guiné-Bissau. “A minha mãe dizia que a nova bandeira era estranha, não estava habituada”, diz-nos. Içada a 5 de julho de 1975, a nova bandeira representava um novo começo para o país: liberdade, independência e seguir o trilho da luta que Amílcar Cabral deixou. Tito assume que se “cumpriu Cabral” e que Cabo Verde é hoje um país onde a democracia prevalece. Ao contrário do que aconteceu com algumas ex-colónias, desde a sua independência, Cabo Verde nunca passou por uma guerra. O artista atribui isso ao facto de o país ter “grandes cabeças políticas”, mas também à pacificidade do processo de estruturação da democracia. “Foi muito tranquilo”. E aponta a quantidade de eleições que o país teve desde então como exemplo de que o povo foi, e continua a ser, decisor do seu próprio destino. 

A morna foi a primeira música de Cabo Verde a viajar. Levou a nossa alma para fora das ilhas

Tito Paris

tito paris entrevista

Tito Paris | 📸 Gonçalo Moreira

Em Cabo Verde, ninguém vai preso por insultar um ministro, isso não existe”. Essa é talvez a maior prova de que a democracia se cumpriu e quanto a Cabral, Tito não tem dúvidas “é o nosso herói nacional, claro que ele estaria orgulhoso”. Ainda que o cenário seja favorável e que Cabo Verde tenha trilhado o seu caminho nas últimas décadas, assume que podem ser feitas mudanças no sentido de extrair o melhor do arquipélago. Defende a regionalização. “Cada ilha deve ter autonomia, como os Açores e a Madeira”, afirma, rejeitando o conflito cultural entre ilhas. “Sou neto de um badio. Um cabo-verdiano é um cabo-verdiano.” Considera a música essencial para a construção da identidade. “A morna é alma, é amor, é travessia.” Para Tito Paris, não se trata apenas de preservar uma tradição, mas de garantir continuidade cultural. “A morna foi a primeira música de Cabo Verde a viajar. Levou a nossa alma para fora das ilhas.” O artista destaca ainda que não basta a sua valorização em discursos ou condecorações: é fundamental o seu ensino nas escolas, nas famílias e nos espaços de criação. “Temos de a ensinar aos jovens. Se não ensinarmos, desaparece”.

É com esse sentido que se apresenta no Festival Morabeza Lx. Para o artista, o festival é um ponto de encontro onde há lugar para a troca de gerações. “A música também é herança” e, quando passada de forma intergeracional, dá frutos. A nova geração de músicos é prova disso. “Temos grandes jovens, bons guitarristas, bons bateristas, bons cavaquinhos”. Quando perguntado sobre o significado da palavra “morabeza”,  responde-nos com a simplicidade que lhe é característica: “Morabeza é ser bem recebido. É o sorriso de um crioulo a cantar uma morna”. Sobre a participação no festival, e apesar de recusar holofotes, não esconde a alegria, que admite vir com o peso da responsabilidade. “Sinto-me honrado, mas também pesa. Não posso parar”. O peso não vem da vaidade, mas da responsabilidade que sente ao representar a sua cultura dentro e fora de Cabo Verde. “Quando me chamam diplomata cultural, é bonito, mas eu sei o que isso significa. Sei que não posso falhar”.

A forma de estar - discreta, comprometida, mas sem ostentação - valeu-lhe o respeito dos pares, das instituições e do público, deixando-o apenas com uma certeza: “eu vou cantar até não poder mais. Quando não puder, sento-me no sofá e espero que me levem”, admite, acrescentando que se tivesse de escolher um verso seu para ser lembrado, seria: “Preto é mi!

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.

bantumen.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile