Raquel Lima e o “Úlulu”, uma peça sobre retorno, afeto e escuta

31 de Março de 2025
ululu Raquel Lima
Imagem de divulgação | 📸 TBA

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Na cultura são-tomense, úlulu significa placenta e dá nome à prática de enterrar a placenta e o cordão umbilical dos recém-nascidos no quintal da família. Segundo a tradição, as crianças podem crescer e partir mundo fora, mas guardam sempre em si o caminho de regresso à terra onde nasceram. Inspirando-se neste gesto ancestral, a artista Raquel Lima apresenta uma criação cénica que convoca música, movimento, poesia e paisagem para refletir sobre pertencimento e regeneração em tempos de colapso. Com três intérpretes em palco — a própria Raquel, a mãe Maria Palmira Joaquim e o músico Okan Kayma — a peça transforma os rituais em ferramentas de escuta, continuidade e cuidado.

Em entrevista à BANTUMEN, Raquel Lima explicou como surgiu a ideia de materializar este espetáculo. “Achei muito interessante essa ideia de a criança crescer e ficar sempre ligada ao lugar onde nasceu. De alguma forma, saber sempre o caminho de volta. Então achei que isso podia ser interessante para pensar noutros rituais, não só o úlulu, mas outros que nos conectam com a Terra.”


Para a artista, o cordão umbilical assume uma dimensão simbólica que ultrapassa a biologia e que transmite saber, afetos, rituais, linguagem, cultura e as formas de se estar no mundo. É também sobre aquilo que “nos alimenta” o sentido de pertença: os gestos, os valores, a memória coletiva que nutre a identidade.“Pensamos no que é que significa esse cordão em termos daquilo que passa dos mais velhos para os mais novos, do que nos alimenta, e de onde é que pertencemos, o que é essa origem.” Este pensamento torna-se ainda mais pertinente num mundo em que, sublinha, “há cada vez mais pessoas desterradas, exiladas, refugiadas”.

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Muito além de um espetáculo com uma narrativa linear, Úlulu propõe um espaço de contemplação de quem somos, de onde viemos e, quem sabe, para onde queremos ir. “Queremos retirar ao ritual a associação estrita à espiritualidade ou religiosidade. Interessa-nos o gesto quotidiano, o que fazemos para nos mantermos vivos, nutridos, a receber afeto e conhecimento nessa troca constante.”


Essa procura levou a equipa a identificar práticas semelhantes noutros contextos culturais. “Percebemos que há vários países que também fazem rituais muito próximos. Isso trouxe-nos uma perspetiva que não queria chamar de universal, mas de uma adaptação plural da ideia de ritual. Isso faz-nos sentir ligados na procura de pertença e significado.”


A peça é também um exercício de convivência e afeto familiar, até porque a mãe, Maria Palmira Joaquim é uma das figuras centrais e o filho foi presença assídua em todo o processo de construção dos espetáculo. “Costumamos dizer que foi um pretexto para estarmos em família, de ‘férias’, não com muito trabalho, mas juntos”, contou Raquel. O filho esteve presente em todas as residências artísticas. “E a minha mãe não só traz essa história do úlulu, como também a experiência dela com o nascimento do meu irmão, em São Tomé e Príncipe.”


Maria Palmira Joaquim contribui com canções e textos originais. “Ela traz esse lugar de uma língua que não se fala em Portugal e que pode não ser sempre traduzida no espetáculo. Isso abre espaço a uma interpretação que não é mediada.” Muitas das canções são da sua autoria. “São fruto da criação dela, com base nas suas referências e inspiração pessoal”, explica Raquel.



ululu Raquel Lima

Okan Kayma, Raquel Lima e Maria Palmira Joaquim | 📸 BANTUMEN/Eddie Pipocas 

A presença da mãe não é novidade nas criações de Raquel Lima, mas representa um desafio renovado. “Já colaborámos noutras obras, como Essencial é a Fome, Língua Materna e O Meu Útero Não Está na Europa mas quis aprofundar essa troca artística como forma de termos outro tipo de relação, mais disponível, mais presente.”


O músico e performer Okan Kayma foi outra escolha fundamental. “Trabalho muito com música, faço parte da banda Gumi e colaboro com vários músicos. A música é uma via de explicação e de animação que vai além do racional”, explicou. Sobre Okan, destacou a afinidade estética, pois “ele trabalha com paisagens sonoras, matéria viva, orgânica, e isso tem tudo a ver com o que estamos a propor.”


Okan descreveu a experiência como um privilégio, sobretudo pelo ambiente familiar que se desenvolveu durante a construção de Úlulu. “Ainda nem caiu a ficha. Estou a aprender muito com a Mami — chamamos assim a mãe da Raquel com o maior respeito. Desde que a conheci, parece que ela sempre esteve na minha vida. Cada frase, cada canção, transporta-me para as minhas próprias memórias”, disse o músico natural da Bahia.


A maternidade recente de Raquel teve obviamente impacto na criação nesta peça, de forma substancial. “Criar uma criança e criar um espetáculo é muita criação. Comecei a priorizar o tempo de outra forma”, revelou. A artista sentiu necessidade de deixar o controlo e criar um ambiente leve e tranquilo, pois “mais do que o resultado final, importava garantir um processo saudável, em que a criança estivesse presente com a equipa.”


Sobre o que o público pode esperar de Úlulu, Raquel Lima é clara: “A peça é um bocadinho de propor esse lugar de especulação. Nós não queremos dizer, contar ou escrever uma história. Então, há um lugar muito poético e contemplativo, exatamente para deixar que o público se deixe levar mais pelo sensorial e perceber a importância do gesto, da sua atitude, da intenção e da velocidade do gesto.”


Para Maria Palmira Joaquim, a experiência tem sido intensa e reveladora e explica que a ideia central do Ululu está profundamente ligada às raízes culturais e espirituais herdadas dos que vieram antes, referindo-se ao conhecimento tradicional que foi passado oralmente. “Como digo no meu texto, isto tem a ver com a ancestralidade. Hoje já não se enterram placentas em casa. Já não se plantam bananeiras por cima. É importante valorizar esse saber.” Apesar de já ter participado de outros projetos da filha, esta é a primeira vez que também sobe ao palco. “É a primeira vez que os mais novos me empurram para isto. Tenho aprendido muito com eles, e eles comigo. E é isso. Estou a ganhar coragem.”


A despeito da segurança que transmite quando está em cena, a veterana sente o nervosismo de quem se expõe: “Parece que estou grávida e à espera do bebé [o projeto] nascer bem”, afirmou com um sorriso largo.


No cruzamento entre memória e futuro, Ululu é uma criação que planta raízes no palco para lembrar que o regresso, mesmo que simbólico, é sempre possível. É um gesto de resistência da cultura e afeto, a ser partilhado entre os dias 3 e 5 de abril, no Teatro do Bairro Alto, no coração de Lisboa.

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