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Ana de Oliveira é muito mais do que uma profissional de saúde ou uma ativista. Cabo-verdiana nascida em Portugal, tem 47 anos, vive no Reino Unido e é mãe de quatro crianças — um casal e os dois sobrinhos de quem cuida desde pequenos. A história de vida de Ana é marcada por uma coragem silenciosa e pela determinação de transformar a dor em força, tanto para si como para os outros.
Diagnosticada com VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana) há quase seis anos, Ana descreve o momento dessa descoberta como uma fase extremamente difícil, especialmente, por ter enfrentado não só o impacto do diagnóstico, mas também o peso do estigma. Contudo, a sua formação académica em Ciências Biomédicas e os seus mais de 20 anos de experiência na área da saúde ofereceram-lhe uma base para entender a doença e, eventualmente, para encontrar um caminho de resiliência e propósito.
“Decidi falar abertamente que vivo com VIH por vários motivos. Primeiro, porque não quero que mais ninguém passe pelo que passei ao receber o diagnóstico”, começa por explicar-nos no início desta entrevista. Ao receber o diagnóstico de VIH, Ana viu-se confrontada não só com a realidade da doença, mas com o preconceito que a rodeava. Logo no primeiro dia, sentiu na pele a discriminação por parte de uma enfermeira — algo que a deixou chocada e vulnerável. “Eu sempre trabalhei na saúde e via o VIH como outra doença crónica qualquer. Nunca imaginei que houvesse tanto preconceito até me tornar parte da estatística.”
“Perguntar como alguém contraiu o VIH é uma invasão”
Ana de Oliveira
Além de todo o estigma que este tipo de diagnóstico envolve, há a relevar o trauma emocional. Ana partilha a sua própria experiência com delicadeza e honestidade: "Receber o diagnóstico foi um choque, mas o preconceito foi ainda mais devastador. Ainda estou a lidar com o trauma do que me levou a contrair o VIH. É algo que, no meu tempo, talvez consiga partilhar mais abertamente, mas é um processo. Há dias em que sinto que estou a dar pequenos passos, e isso já é uma vitória", explica. Ana acredita que a curiosidade sobre a origem do vírus na vida de alguém pode ser profundamente intrusiva. "Perguntar como alguém contraiu o VIH é uma invasão. Não sabemos em que estado emocional ou mental essa pessoa está. Estas questões podem ser gatilhos para memórias dolorosas, especialmente para quem foi diagnosticado recentemente", acrescentou.
O seu diagnóstico desencadeou um processo doloroso de perda de identidade. Ana mergulhou numa depressão profunda, que culminou num diagnóstico de stress pós-traumático. “Comecei a detestar-me, algo que nunca tinha acontecido. Perdi a minha identidade porque dei ouvidos a outras pessoas e quase cometi suicídio.”
Apesar de tudo, Ana não se deixou ficar nesse lugar de escuridão. Com o apoio da família e de organizações que auxiliam pessoas que vivem com o VIH no Reino Unido, decidiu iniciar uma jornada de autoconhecimento e cura. A voz das suas crianças foi determinante. “Eles disseram-me que eu podia ser uma grande ativista, que tinha o conhecimento e a empatia para fazer a diferença.” Inspirada pelas palavras dos filhos e sobrinhos e motivada pela vontade de mudar narrativas, Ana decidiu tornar-se visível. Tornou-se educadora de pares, palestrante positiva e representante comunitária em grupos de trabalho como a UK-CAB e a British HIV Association (BHIVA). “Foi uma libertação total. Voltar a ser quem realmente sou, partilhar conhecimento e ajudar o próximo é o que me move”, conta.
O estigma em torno do VIH e da SIDA continua a ser uma barreira monumental, especialmente no seio da comunidade negra. Ana desabafa e explica que conversar sobre este tema exige uma abordagem que transcende o preconceito e abraça a empatia, mas a realidade mostra-se desafiante.
Ao ser questionada sobre quais são os fatores culturais ou sociais que perpetuam este estigma e como podemos começar a desconstruí-lo, Ana responde com uma lucidez que revela tanto a complexidade do problema como a urgência de uma solução.
“Penso que uma das razões principais é a falta de informação em relação ao VIH e, de forma geral, à saúde sexual. Embora convivamos com o VIH há mais de 40 anos, quando o tema surge, o pensamento é quase sempre associado à vertente sexual. E, na nossa comunidade, falar sobre sexualidade é um tabu. Este silêncio é herdado de um tempo em que o VIH era visto como uma ‘doença de grupos marginalizados’ — a comunidade gay, pessoas promíscuas, ou quem consumia drogas injetáveis. Esses termos carregados de preconceito foram interiorizados por muitos e moldaram a nossa perceção coletiva.”
Hoje, Ana usa a sua história pessoal como ferramenta de sensibilização. Acredita que a educação baseada em evidências científicas e a partilha de experiências reais são essenciais para combater os mitos e o estigma associados ao VIH. Para ela, ser ativista é uma forma de empoderar outros e garantir que mais pessoas possam viver com dignidade e sem preconceitos. “Estes estereótipos, alimentados durante décadas, tornaram-se parte da nossa identidade cultural. Mesmo as campanhas de prevenção da época reforçavam o medo, em vez de promoverem a empatia ou a compreensão. Assim, continuamos num ciclo difícil de quebrar: enquanto o VIH não nos tocar pessoalmente, é visto como um problema dos ‘outros’”.
Ana aprofunda a questão, destacando os preconceitos ainda enraizados. “Existe um medo imenso, uma vergonha que silencia. A religiosidade muitas vezes reforça esta negatividade em relação à sexualidade, perpetuando ideias moralistas que dificultam a conversa aberta. Também há uma falta de acesso às ferramentas necessárias, seja por barreiras económicas, sociais ou por desconhecimento de como navegar nos serviços de saúde. Tudo isso se agrava numa sociedade patriarcal, onde as diferenças de género tornam ainda mais difícil para as mulheres exporem as suas experiências. Eu, por exemplo, falar publicamente sobre viver com o VIH é visto como algo impróprio, porque isto ‘deveria’ ser uma questão privada. Mas eu recuso-me a aceitar essa invisibilidade.”
“Somos mais do que os diagnósticos que recebemos”
Ana de Oliveira
Quarenta anos após o aparecimento do VIH, o julgamento social persiste. Apesar de ainda não existir uma cura, hoje, é uma doença crónica com a qual é possível viver com qualidade de vida mas a sociedade ainda a vê exclusivamente como uma infeção sexualmente transmissível, ignorando outras formas de transmissão, como a vertical (de mãe para filho).
Com uma reflexão que ecoa como um apelo, a ativista clarifica que “o VIH não escolhe género, orientação sexual ou classe social. Enfrentar o estigma passa por investir na literacia em saúde, quebrar o silêncio em torno da sexualidade, desafiar o patriarcado e criar condições reais de acesso aos serviços de saúde. Não se trata apenas de combater um vírus, mas de reimaginar a forma como nos relacionamos como sociedade.”
Por outro lado, há uma força invisível que une as histórias de quem vive entre margens, desenhando identidades que são tecidas por camadas de luta, dor e resistência. Ao refletir sobre a sua jornada com uma clareza desarmante e uma força que transcende o diagnóstico, Ana conta-nos que a sua noção de identidade mudou completamente desde o seu diagnóstico. "Quando recebi o diagnóstico de VIH, senti que perdi a minha identidade", confessa Ana. "De repente, tudo aquilo que me definia ficou ofuscado pelo estigma. Sempre enfrentei o racismo com uma certa firmeza, mas o VIH trouxe consigo um tipo de conflito interno que eu nunca tinha vivido. Comecei a olhar para mim com os mesmos olhos críticos que tanto tentei combater na sociedade."
Ana cresceu em Oeiras (arredores de Lisboa, Portugal), filha de pais cabo-verdianos, numa luta constante para encontrar o seu lugar. "Por um lado, nunca fui completamente aceite como portuguesa. Por outro, os cabo-verdianos [nascidos no arquipélago] diziam que os nascidos em Portugal tinham 'a mania' que eram cabo-verdianos. Foi só aos 21 anos, quando visitei Cabo Verde pela primeira vez, que finalmente compreendi: ‘eu sou uma mulher cabo-verdiana nascida em Portugal’. Esta verdade, simples mas poderosa, tornou-se a minha âncora."
Essa força identitária preparou Ana para enfrentar o desafio do VIH. "Aprendi que o diagnóstico não me define. Sou e sempre serei a Ana. Crescer numa família onde a saúde mental era uma batalha constante deu-me a capacidade de enfrentar a depressão que veio após o diagnóstico. Desde cedo, tive de equilibrar a responsabilidade de apoiar a minha família e o desejo de ser uma criança feliz. Isso tornou-me resiliente, ensinou-me a transformar adversidades em força."
Ana reflete sobre a interseção entre a sua condição de saúde e a sua identidade como mulher moldada pelas culturas portuguesa e cabo-verdiana: "As nossas identidades são multifacetadas. Ser negra, mulher, africana, e viver com VIH são camadas que trazem consigo estigmas, obstáculos e desafios. Contudo, vejo nisso também um campo fértil para o ativismo e para a mudança."
Através das várias camadas que a formam como pessoa, Ana sente que tem uma missão. "É meu dever usar a minha voz para consciencializar a nossa comunidade sobre o VIH. Trabalhando na área da saúde, lidando todos os dias com pessoas que vivem com esta condição, percebo o quanto é necessário quebrar o silêncio. Somos mais do que os diagnósticos que recebemos."
Apesar de todas as adversidades, Ana reconhece que as mentalidades têm mudado. "Cada vez mais, ocupamos espaços que antes nos eram negados. Antigamente, o nosso papel era limitado a trabalhos de limpeza ou cuidados, mas agora vemos jovens africanos e afrodescendentes a ascenderem em áreas profissionais diversificadas. Esta mudança é crucial para que possamos redefinir a nossa narrativa e inspirar as próximas gerações."
No que toca à desinformação sobre o VIH/SIDA, existe um muro invisível que separa a realidade do mito, mas Ana, com a sua voz firme e empenho inabalável, dedica-se a derrubá-lo. "Por exemplo, ainda há quem acredite que o VIH se transmite pelo beijo. É incrível a quantidade de desinformação que continua a circular. As pessoas não compreendem que o VIH não sobrevive ao ar livre. Ao contrário do vírus da hepatite B, que pode persistir no ambiente por dias, o VIH precisa de condições muito específicas para se manter viável. Ele está presente no sangue, nos fluidos vaginais e sémen, no leite materno... mas não sobrevive na saliva. Portanto, para haver transmissão pelo beijo, seria necessário que ambas as pessoas tivessem feridas abertas na boca, na presença de sangue, e mesmo assim a quantidade de vírus envolvida teria de ser considerável. Ninguém vai beijar outra pessoa com uma ferida aberta desse tipo, não é?", lança Ana numa retórica misturada com incredulidade e paciência.
Outros mitos persistem, como o receio infundado de que o VIH possa ser transmitido pelo simples contato social ou pela partilha de utensílios, pratos ou copos. "É revoltante, mas ainda ouço estas ideias em palestras. As pessoas perguntam, sinceramente, se é seguro partilhar talheres com alguém que vive com o vírus. Isso mostra o quanto a falta de informação está enraizada", lamenta Ana.
Outro desafio significativo é desmantelar os estereótipos associados ao VIH. Ana relembra como, frequentemente, as pessoas associam a doença a uma aparência física específica, como fragilidade extrema ou emagrecimento avançado, ignorando que essas características são geralmente sinais de estados tardios da infeção. "Já me disseram: ‘Não pareces alguém que vive com VIH.’ Como se houvesse uma ‘cara do VIH’! Vivemos num tempo em que, com o tratamento adequado, a maioria das pessoas que vivem com o vírus têm uma vida saudável e normal."
Além destas ideias pré-concebidas sobre o vírus e a doença, há também quem acredite que o seu diagnóstico carrega automaticamente uma expectativa de vida reduzida ou que não poderá ter filhos saudáveis. “Na verdade, com o acompanhamento médico adequado, a transmissão de mãe para filho pode ser evitada, visto que não existe risco de transmissão pelo pai. Mas mesmo essa informação básica ainda não chegou a muitas pessoas", explica Ana.
"Uma semana após o diagnóstico, quase cometi suicídio"
Ana de Oliveira
Os desafios de viver com VIH são tanto físicos como emocionais. Quando questionada sobre o que a ajudou a manter a sua saúde mental e que conselhos daria a outras pessoas em situações semelhantes, a resposta veio carregada de emoção e honestidade. "Primariamente, foi envolver-me com uma organização. Quando fui diagnosticada, disseram-me imediatamente que tinha apoio disponível. Demorei alguns dias para os contactar, mas acabei por fazê-lo. Sinceramente, uma semana após o diagnóstico, quase cometi suicídio. Estava muito mal, e o meu maior medo, apesar de nunca querer deixar as minhas crianças para trás, era que não via outra saída. Às vezes, dizem que quem se suicida é egoísta, que não pensou na família mas, para mim, era como se não houvesse alternativa. O estigma que enfrentei e a forma como o contraí foram brutais. Contatei a organização, e eles ofereceram apoio psicológico imediato. Contudo, como sempre fui aquela que cuidava dos outros – familiares com problemas de saúde mental, por exemplo – não me permiti aceitar ajuda. Afastar-me levou-me a uma depressão profunda. Cheguei a acreditar que ia morrer. Durante esses meses de desespero, comprei uma casa. Pensei: ‘Se eu morrer, pelo menos os meus filhos e sobrinhos terão um tecto’”, recordou. “Mas não morri. Três meses depois, ainda imersa numa depressão, reuni coragem para falar com os meus filhos e sobrinhos. Demorou, mas finalmente contei-lhes que vivia com VIH. Foi um passo importante. Então, eles sugeriram: ‘Por que não crias uma página? Não precisas de mostrar o rosto. Apenas partilha informações e a tua história.’ Assim nasceu uma página que me ajudou imensamente. Conheci pessoas do mundo inteiro. Falavam comigo sem saber como eu era, e essas conversas deram-me forças. Diziam: ‘Vais ultrapassar isto. Agora está difícil, mas irá melhorar.’ Passei a procurar informações sobre o VIH, especialmente sobre os tratamentos. Antes, sabia que havia um tratamento eficaz, mas não entendia os detalhes. Quando contei no meu trabalho sobre a minha condição, tive acesso a terapia ocupacional através do departamento de saúde. Essa terapeuta foi uma das minhas maiores ajudas. Disse-me: ‘Ana, você sabe onde quer chegar, mas não sabe como. Vamos traçar um plano.’ E foi isso que fizemos. Também comecei a conhecer outras mulheres da comunidade lusófona que vivem com VIH. Falar a mesma língua trouxe um conforto que eu não sabia que precisava. Sentíamos que nos entendíamos de forma íntima, mesmo sem palavras elaboradas. Para além disso, o apoio da minha família foi essencial. A minha mãe e a minha irmã foram impecáveis, os meus amigos estiveram presentes, e as minhas crianças... Elas salvaram-me. Se não fossem elas, talvez eu não estivesse aqui. Hoje, vejo que o apoio foi fundamental. Houve momentos em que estive sozinha, mas isso foi por escolha, por vergonha e pelo medo do estigma. Fazia cenários na minha cabeça sobre como as pessoas reagiriam, mas nada disso valeu a pena. A terapia, as organizações, os familiares e os amigos foram o que me manteve de pé. E, se pudesse dizer algo a quem enfrenta algo semelhante, seria isto: procura apoio, aceita ajuda e lembra-te de que há sempre uma luz, mesmo nas noites mais escuras."
Em termos de cuidados de saúde, as estatísticas ainda são desiguais, sobretudo para as comunidades marginalizadas. Quando se pensa em pessoas que vivem com VIH, os desafios tornam-se ainda mais evidentes, atravessando barreiras de estigma, discriminação, falta de informação e recursos limitados. "Infelizmente, aqui em Inglaterra ainda existe preconceito", começa Ana. "Ao longo dos anos, apesar de algumas experiências negativas, acabei por encontrar profissionais de saúde que foram incrivelmente compassivos. Lembro-me do meu médico, que já se reformou, mas cuja equipa sempre me tratou como mais do que apenas uma paciente. Havia uma amizade, um apoio humano, e isso fez toda a diferença. Mas não se pode ignorar que, em muitos casos, ainda nos deparamos com estigmas e discriminações. Por exemplo, ainda há enfermeiros e médicos que usam luvas duplas quando cuidam de uma pessoa vivendo com VIH, como se o vírus fosse transmitido assim. Isto reflete uma enorme lacuna no conhecimento sobre como é viver com o VIH hoje em dia."
A ausência de competência cultural, no contexto europeu, é outro obstáculo significativo. "O VIH é vivido de maneira diferente dependendo do contexto cultural. Para quem cresce na Europa, a percepção e a abordagem podem ser uma, mas para alguém vindo de África, onde há instabilidade socioeconómica, a realidade é outra. Os profissionais de saúde precisam de compreender estas diferenças, e para isso é essencial haver formação cultural, idealmente com a colaboração de pessoas da nossa comunidade. Aqui em Inglaterra, esta parceria entre comunidades africanas, organizações e os serviços de saúde está mais avançada, mas sei que não é assim em todos os países."
A confiança no sistema de saúde também surge como uma questão central. "Muitas pessoas com VIH têm medo de partilhar o diagnóstico, receando que a confidencialidade seja quebrada. Sem confiança, não há adesão ao tratamento. Isto não é apenas um problema nacional – é global. Além disso, falta uma comunicação mais clara e acessível. Muitas vezes, não entendemos os exames que fazemos, os resultados ou os próximos passos no tratamento. Até temos receio de fazer perguntas, com medo de incomodar."
“Quando me chamam ‘portadora’, sinto que o meu VIH é um objeto físico que levo comigo todos os dias”
Ana de Oliveira
A dispersão dos serviços de saúde, limitada maioritariamente às grandes áreas metropolitanas, é mais um desafio. "Para quem chega a um país estrangeiro, navegar pelo sistema de saúde pode ser complicado. Além disso, em alguns países, há uma descontinuidade preocupante no acesso aos medicamentos retrovirais. Na Madeira, por exemplo, houve um período em que as pessoas recebiam medicação apenas para duas semanas, em vez dos habituais seis meses. Não é um problema exclusivo de Portugal; nações da CPLP enfrentam dificuldades semelhantes, com alguns países dispondo apenas de um tipo de medicamento para toda a população com VIH."
Ana reflete ainda sobre o impacto da falta de recursos humanos e de coerência nas mensagens transmitidas. "Muitas vezes, as informações são contraditórias, deixando-nos perdidos sobre a nossa própria condição. O VIH exige especialização, mas há uma ausência de formação específica em infectologia em vários países." A via que considera mais eficaz para humanizar os cuidados passa por mais compaixão e pela integração de soluções alternativas, como arte, dança e mentorias de pares. "Estas abordagens podem ser tão eficazes quanto os cuidados convencionais, mas, em muitos países, nem sequer existem. Temos de tratar as pessoas vivendo com VIH de forma mais humana, com respeito e empatia. Não somos só pacientes – somos pessoas."
Apesar de tudo, Ana fala com a serenidade de quem atravessou mares de incerteza e encontrou terra firme na coragem. “O ativismo em torno do VIH exige mais do que campanhas e discursos; é uma transformação na forma como nos comunicamos sobre saúde sexual e direitos humanos”, afirma. Ela acredita que o primeiro passo é desmantelar o peso das palavras. “Termos como ‘portadores do VIH’ carregam um estigma desnecessário. Quando me chamam ‘portadora’, sinto que o meu VIH é um objeto físico que levo comigo todos os dias. Precisamos de uma linguagem que seja inclusiva e, acima de tudo, que não marginalize. Não adianta usar termos técnicos e científicos que as pessoas não compreendem. É essencial transmitir mensagens claras e acessíveis. Devemos também falar sobre as práticas de risco de forma abrangente. O preservativo é importante, mas a prevenção do VIH vai muito além disso. Há também a profilaxia pré e pós-exposição (PrEP e PEP), a adesão à testagem regular e o acesso ao tratamento eficaz.”
Ana garante que a prevenção passa também por normalizar as conversas sobre saúde sexual desde cedo. “Educação sexual não pode ser tabu. Precisamos de campanhas adaptadas às faixas etárias: jovens, adultos e até mesmo pessoas após os 50 anos. Salões de beleza, empresas privadas e até as nossas casas podem ser espaços para sensibilização. Precisamos normalizar essas conversas.”
A abordagem da ativista vai além do biológico; para ela, é imprescindível compreender os fatores sociais e psicológicos que contribuem para a transmissão do VIH. “As narrativas em torno do diagnóstico não podem ser limitadas a estereótipos de promiscuidade ou uso de substâncias. Muitos casais em relações longas e monógamas também estão em risco, mas sentem-se excluídos das campanhas tradicionais. Essa exclusão leva à falta de testagem e perpetua crenças negativas sobre o VIH.”
“Faz perguntas, exige respostas e ocupa o teu espaço”
Ana de Oliveira
Ana também destaca os avanços científicos que tornam a vida com VIH mais digna e plena. “Com tratamento eficaz, o VIH pode tornar-se indetectável e intransmissível. Podes ter relações amorosas, filhos saudáveis e uma vida longa e feliz. Mantém uma qualidade de vida saudável – alimentação, exercício e comunicação construtiva com os profissionais de saúde. Faz perguntas, exige respostas e ocupa o teu espaço.”
Para a ativista, viver com VIH também significa assumir um papel ativo na sociedade. “Não podemos ser apenas beneficiários; precisamos liderar. Devemos estar envolvidos na criação de diretrizes e nas políticas de saúde. Se não nos convidarem para a mesa, criemos a nossa própria mesa. Reivindiquemos o nosso espaço. Somos a voz da mudança e devemos usar a nossa experiência como ferramenta de empoderamento pessoal e coletivo.”
A fim e ao cabo, a ativista conclui ao salientar que esta jornada “Não é um fim, mas sim uma missão.” Ana não é apenas uma sobrevivente; é um farol de esperança e uma ponte entre o conhecimento médico e a experiência humana. A sua história prova que vulnerabilidade pode ser transformada em força, e que amor e empatia são armas poderosas contra qualquer estigma.
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