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“Já não há qualquer dúvida que existe um problema no sistema judicial”, Aussy Cassamá

Direito | Aussy Cassamá

Se é verdade que o Direito, enquanto doutrina, é um dos pilares essenciais em qualquer sociedade, não é menos verdade que o não cumprimento dos nossos deveres pode colocar em causa os nossos direitos, mais precisamente aquele devia ser de todos e por isso vem contemplado na Declaração Universal dos Direitos do Homem: a Liberdade.

A questão que se coloca perante esta balança, nem sempre equilibrada, é: o que acontece quando a nossa liberdade nos é retirada, muitas vezes sem fundamento? Por que princípios se rege o Direito, enquanto doutrina e o que isso implica na prática?

Entrevistámos a Jurista Aussy Cassamá, Licenciada em Direito, Pós-graduada em Ciências Jurídicas e atualmente a frequentar o Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, que nos explicou a importância do Direito na sociedade; a justiça na comunidade africana e a forma como o não conhecimento da lei pode ser prejudicial em certas circunstâncias; o racismo e a forma como o crime pode ser provado em tribunal; o que fazer quando a justiça falha. Recordámos o caso de Éder Fortes e pedimos o parecer da Jurista em relação ao caso Deisom Camará.

És Licenciada em Direito, Pós-graduada em Ciências Juridicas e estás a frequentar o Mestrado em Ciências Jurídico-forenses. De onde veio este teu gosto pela área e em que altura te apercebeste de que esse era o rumo que querias seguir? 

Desde muito nova que sempre gostei de saber das coisas, do que se passa ao nosso redor e falar com as pessoas em geral sobre os diversos assuntos. Inclusive quando era mais nova muitos diziam que eu era “refilona”, (na verdade ainda dizem), mas é porque nunca suportei estar calada perante alguma injustiça ou perante um mal-entendido. 

Pelo que quando acabei o 12º, Direito e Jornalismo eram as minhas opções, , mas o meu amor pelo Direito falou mais alto e ao começar o curso não tive dúvidas.  

Foi esse gosto que te levou a criar a tua página de explicações online? Como surgiu a ideia e que feedback tens tido?  

Eu comecei a dar explicações nos últimos anos da minha licenciatura de forma casual e gratuita inicialmente, uma vez que sempre tive facilidade e abertura em falar de matérias de Direito Civil, que é a minha grande paixão, confesso.  

Com o passar do boca a boca, a paixão transformou-se num negócio uma vez que o mesmo exige tempo e dedicação.  

Após terminar a pós-graduação e com a pandemia comecei a trabalhar em casa e com mais tempo decidi criar a am_explicacoesonline para poder abranger muitos mais alunos, dar explicações a distância de um ecrã de qualquer lugar e com uma disponibilidade horária muito maior.  

Ainda na página faço vídeos explicativos principalmente para ajudar a nossa comunidade africana que muitas vezes desconhecem as leis e os direitos, e como consequência sofrem na pele muitas vezes às injustiças. 

O feedback tem sido muito positivo uma vez que recebo várias mensagens a agradecer e com várias questões, às vezes as pessoas pensam que as coisas são mais complicadas do que realmente são , pelo simples facto de não saberem e o quando explico e indico , ficam muito satisfeitas. Por isso tem sido maravilhoso poder ajudar. 

Quem segue a tua página, apercebe-se da forma descontraída como abordas certos assuntos. Achas que esse facto também pode ser um facilitador no sentido de desmistificar alguns termos relacionados com Direito? 

 É como digo sempre a página não é para ensinar Direito, porque o curso de Direito em si é complexo, doutrinário e é preciso vários anos, e a forma simplista e descontraída com que falo exige algum trabalho/estudo profundo sobre o assunto. A minha página é para simplificar as explicações de Direito, para que as pessoas e principalmente a nossa comunidade possam saber que Direitos tem em situações concretas. Como se devem posicionar, porque muitas vezes não nos posicionamos por falta de conhecimento e admitimos o que não devemos admitir. Ou quando o fazemos não é da forma correta, por isso é fundamental conhecer os nossos direitos, e a página é para transportar de forma simplificada esse conhecimento. 

Há muito a ideia de que a formação em Direito só permite formar Juízes ou Advogados. De que forma explicarias a profissão que exerces? E que outras profissões estão subjacentes à área do Direito, que muitos de nós desconhecemos? 

Realmente há essa ideia, no entanto é equivoca, pois quando acabas a licenciatura em Direito, tu és antes de mais nada um Jurista e um jurista é alguém licenciado em Direito que estuda, analisa, comenta a lei e ensina Direito, basicamente o Jurista possui um amplo conhecimento da lei.  

Para além do Jurista, quem se licencia em Direito pode seguir para o ramo da advocacia, pode seguir magistratura, para ser juiz, promotor, procurador, desembargador, etc. A licenciatura em Direito abre caminhos para muitas possibilidades.  

Quando falamos de direito, leis e justiça, quais consideras serem os aspetos mais importantes a ter em conta? 

 Direito, leis e justiça são pilares essenciais para a sociedade. 

As leis são um dispositivo que o Estado utiliza para regular a vida em sociedade e para assegurar os Direitos fundamentais de cada cidadão. Por isso as leis surgem da necessidade particular de cada sociedade, pelo que cada Estado tem a sua Constituição tendo em conta a realidade política e económica de cada país. E por serem instrumentos tão importantes a necessidade de passagem por várias etapas antes de entrar em vigor. No entanto claro que há leis que são transversais a qualquer estado de Direito. 

Ainda assim gostaria de referir que acho que falhamos quando queremos ter as mesmas leis que Ocidente sem ter em conta a nossa comunidade africana que continua a ser muito diferente, por isso temos que criar leis focados na nossa história e realidade.  

Já o Direito em si tem como objetivo alcançar o bem comum e a organização em sociedade, para isso formula regras de conduta e disciplina as interações entre as pessoas.  

Definir Direito é bastante complexo, pois ele muda consoante o tempo e os territórios, evolui e ajusta-se às necessidades da sociedade.  

“O Direito é a coação universal que protege a liberdade de todos ” – Kant. 

Por último quando falamos de justiça, falamos de um Estado justo que garante a segurança de todos e que faz com que as normas jurídicas sejam cumpridas. E tal como o Direito aquilo que é considerado justo ou não está em constante mudança, conforme o tempo e a sociedade onde nos encontramos. Pelo que os aspetos mais importantes a ter em conta é que Direito e Justiça não são a mesma coisa, no entanto andam lado a lado e só através das leis e do Direito é que chegamos a justiça.  

(Pitágoras) 

 “Enquanto as leis forem necessárias, os homens não estarão capacitados para a liberdade”

Há crimes, que apesar de constarem no código penal, muitas vezes são difíceis de provar em tribunal. O racismo é um desses exemplos. Como se prova que um crime teve motivação racial? Que fatores podem servir de atenuante? De que forma devem agir os lesados? 

 Por regra todos os crimes têm uma certa dificuldade a nível de prova e o crime de discriminação racial prevista no art.240 do Código Penal é um deles. O artigo indica que quem pratique atos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas devido (entre outros) à raça, cor, origem étnica ou nacional poderá ser condenado a pena de prisão de 6 meses a 5 anos. Também se aplica a quem difamar, injuriar, ameaçar ou incitar a violência e ao ódio.  

O crime deve ser denunciado as autoridades polícias ou judiciárias (Ministério Público) e pode ser feito por qualquer pessoa que sofra ou que tenha presenciado, pois estamos perante um crime público.  

Se for um ataque presencial e estiver sozinho, gravar é a melhor opção. Se estiverem outras pessoas, podemos pedir para que testemunhem o acontecido (tem o dever moral de o fazer), ainda assim volto a insistir que devem filmar o ocorrido. Se for um ataque pela internet deve tirar prints da tela e apresentar ao advogado/a. Assim conseguirão fazer prova que o crime teve motivação racial. 

O lesado após apresentar queixa e ingressar duas ações, uma criminal e outra cível para conseguir uma indemnização.  

Olhando para a Comunidade Africana e tendo por base os relatórios que apontam que as taxas de encarceramento de negros são claramente superiores, estamos a falar de um padrão de comportamento da comunidade? Ou num sistema judicial viciado? 

Em parte. Ou melhor, já não há qualquer dúvida que existe um problema no sistema judicial. Basta para isso ver que mais de 80% das queixas relacionadas com o racismo são arquivadas. A resposta que dou é pelo simples facto de que entendo que o problema vem de outras fontes… Isto é, não considero que o sistema judicial, que faz parte do problema, seja a raíz deste mal e muito menos no comportamento da comunidade. Vamos ter em conta que quando falamos de sistema judicial estamos a falar também em poder judiciais (dos vários tipos de tribunais e Ministério Público) o que por sua vez leva a outros intervenientes dessa a realidade, como juízes, procuradores, polícias advogados, etc… Mas qualquer destes intervenientes do sistema judicial, antes de fazer parte desse sistema, andou numa escola primária, depois secundário, frequentou uma universidade, veio de uma família de uma comunidade social… Para dizer que antes de chegar a um cargo como por exemplo o de juiz, já foi mergulhado em pré-conceitos, muitos deles racistas de todas as naturezas… Já possui uma mentalidade de “colonizador”. Por isso para mudar o sistema judicial temos antes de mudar mentalidades. E como a base de qualquer civilização é a educação temos que mudar os padrões de ensino, que sem dúvida se irão repercutir por todas as restantes realidades sociais (como nas famílias, e sociedade civil em geral). 

Pode a falta de conhecimento da lei contribuir para essas estatísticas? De que forma? 

 A falta de conhecimento da lei não pode, ela contribuiu sem dúvidas para essas estatísticas e a falta de educação escolar também. Foi como disse no início da entrevista eu criei a am_explicacoesonline para transmitir conhecimento dos nossos direitos, porque quando não sabemos os nossos direitos saímos sempre prejudicados. Posso dar um exemplo muito simples, quantos menores são apanhados numa situação ilícita e são levados para a esquadra para falarem, para produzirem provas contra os próprios, quando por serem menores os depoimentos não têm qualquer valor legal, bastava saber que podiam ficar calados e esperar um advogado ou o representante. Ou mesmo jovens adultos que falam sem a presença do advogado por não saberem que tem Direito ao silêncio, que ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio, entre outras variadas situações que podia falar, mas isto só para dizer que o facto de não conhecer a lei prejudica nos sempre, porque não conheceres a lei não é motivo de exclusão de culpa.  

Em 2017, numa entrevista ao jornal Público, o Procurador Alípio Ribeiro disse o seguinte “”há uma justiça para portugueses e uma justiça para estrangeiros, uma justiça para brancos e uma justiça para negros”. Queres comentar? 

Sou obrigada a concordar com essa frase quando verificamos que há bairros com muita presença africana que tem medidas polícias excecionais, que situações que facilmente seriam resolvidas com alguma explicação, são levadas para a esquadra. Quando ainda hoje relatórios mostram que a maioria da população reclusa estrangeira continua a ser os PALOP, que ainda hoje nos ensinos superiores, nas empresas, na assembleia, nós continuamos a ser a grande minoria e não por falta de competência, mas por nos imputarem um esforço extra, a ideia que temos “que ser duas vezes melhor”.  

Portugal é um país que tem um racismo institucionalizado, que ainda se baseia no “suspeito do costume” e quem é esse suspeito do costume senão o negro que a média portuguesa e internacionais continuam a associar a criminalidade. 

Muitos não admitem ser racista por não olharem a sua conduta, por não ouvirem aquilo que falam e não raciocinarem sobre aquilo que pensam, porque se o fizessem iriam ver. Mas ninguém quer admitir que é racista, porque admitires te racista e é estares a admitir que és burro.   

Já muita coisa foi feita e conseguida, mas a luta pela igualdade ainda continua.  

Um dos pilares que rege o exercício do Direito é o princípio da presunção da inocência, que estabelece que todo o ser humano é inocente até que se prove o contrário. Na prática, o princípio mantém-se? 

A presunção de inocência indica que todos são inocentes até ter havido condenação por sentença transitada em julgado (quando já não se pode recorrer), este princípio é fundamental no Direito Penal e deve ser levado a cabo em todas as situações, em caso de dúvida o juiz deve decidir a favor do arguido ” in dubio pro reo”. No entanto lamentável na prática às vezes este princípio falha, mas quando tal acontece é possível alegar a violação do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido e esperar o tribunal apreciar e decidir.  

Recordemos o caso de Éder Fortes, um rapaz afrodescendente, na altura com 18 anos, condenado a quatro anos e meio de prisão pelo roubo de um telemóvel. Anos mais tarde, viriam a descobrir-se erros na investigação fortes o bastante para provar a sua inocência. O que acontece quando a justiça falha? É possível a pessoa em questão exigir algum tipo de indemnização por danos morais ou de outro tipo? 

 Éder Fortes esteve preso dos 18 aos 24 anos, porque a justiça falhou e condenou-o por um crime de furto que o mesmo não cometeu. Tal como o caso do Éder Fortes lamentavelmente existem muitos outros e por isso eu sou contra penas inalteráveis (tais como pena de morte, castração química e outras), porque a nossa justiça é burocrática, existem pré-conceitos e corrupção, ela não é perfeita e enquanto não for, não pode haver penas irreversíveis, porque a vida não se devolve.  

Os anos perdidos também não, mas pelo menos é possível pedir uma indemnização por responsabilidade civil decorrente do erro judiciário art.562 e seguintes do Código Civil. 

Outro caso sobre o qual muito se tem falado na Comunidade é o caso do Deisom Camará. Há até quem diga que o Deisom não teve direito a presunção da inocência? Queres comentar dando-nos o teu parecer e explicando de que forma deve proceder um juíz quando a acusação é desmontada pela defesa? 

Infelizmente não tenho acesso à sentença proferida no caso do Deisom Camará, não conheço os factos ocorridos e alegados e nem acompanho de perto a situação, o que não me permite fazer uma análise e assim comentar de forma profunda, justa e responsável sobre o assunto. Contudo e tendo apenas em conta as notícias divulgadas, como existem grandes lapsos a nível das provas e factos relatados, a meu ver o princípio da presunção de inocência não foi respeitado.  

É caso para dizer que “Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual para todos.”? 

Sem dúvida.  Não obstante, cada vez mais a igualdade é uma palavra insuficiente quando falamos de justiça ou de igualdade perante lei ou ainda de uma lei igual para todos. A equidade é a mais elástica e a que melhor se adapta aos casos concretos e a mais apropriada para á busca da justiça e da verdadeira igualdade. 

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