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Carlos Pereira, o “New Black Cool”

Carlos Pereira / BANTUMEN
Carlos Pereira / BANTUMEN

O que é ser um new black cool? É a pergunta que procuramos responder nesta entrevista com o humorista Carlos Pereira, talvez o único negro a fazer stand up comedy, atualmente em Portugal.

Depois desta descrição, já te deves estar perguntar quem é o humorista de que estou a falar. Carlos Pereira é um Africano de Robustez Razoável que está sempre em Hora de Ponta e passa a vida numa Corda Bamba .

Com 15 anos deixou a terra que o viu nascer, São Tomé e Principe, mudou-se para Portugal onde permanece até então. Estuda Ciências Políticas e no desenrolar da sua vida académica esbarrou-se com o humor. Começou por fazer piadas sobre a sua mãe, sobre as suas experiências, mais tarde sobre a sociedade, política e situações do quotidiano.

Carlos Pereira, Wilds Gomes e Eddie | BANTUMEN

A mãe é a sua fonte de inspiração mas também quem lhe deu a conhecer (de forma inconsciente) um mundo completamente diferente do que estava habituado. Quando se mudou para Portugal, Carlos não ficou inserido numa comunidade africana, não teve muitos amigos iguais a si.

“Se crescesse numa comunidade africana talvez fosse diferente o meu mundo. A minha mãe só queria fazer de mim um homem e dizer que conseguiu tirar-me de África e tornar-me numa pessoa melhor. E para ela a melhor forma era manter-me longe de problemas, dos bairros, e nas comunidades isso não podia acontecer facilmente. Eu não a culpo, eu percebo”, afirmou Carlos.

As pessoas não estão habituadas a ver um preto em palco a contar piadas aqui em Portugal.

Carlos é um dos únicos, senão o único comediante negro a fazer stand up comedy em Portugal. E o facto de ter crescido num ambiente onde o seu circuito de amigos é maioritariamente composto por brancos, muitas vezes não sabe como abordar certos temas, principalmente os que são fora da realidade que viveu.

O comediante sublinhou ainda que “as pessoas não estão habituadas a ver um preto em palco a contar piadas aqui em Portugal(…) Não sou suficientemente bom para os brancos nem suficientemente bom para os pretos. E não sinto muito amor vindo dos meus, os negros”. Mas Carlos, tem apenas um desejo que é o de fazer rir, independentemente da cor das pessoas.

O humorista tem um programa de rádio na RTP África, faz peças/sketchs de comédia no seu canal de YouTube e recentemente foi ao “Levanta-te e Ri”. Desde então tem recebido mensagens de apreço de muita gente, principalmente dos luso-africanos. “Obrigado por seres a nossa voz, por fazeres mais que muitos rappers de intervenção” são as palavras que vai ouvindo.

Carlos Pereira / Foto: BANTUMEN
Carlos Pereira / Foto: BANTUMEN

A comunidade negra não é muito representada na televisão de forma positiva, e ver alguém em cima do palco a contar piadas e falar do que afeta a sociedade, acaba por ser uma representatividade para uma minoria. Mas o papel de ativista ou de representação não é o que Carlos quer encarnar, não quer que essa responsabilidade seja a sua prioridade, que fazer rir quando sobe ao palco sem ter em mente que tem de falar de x assunto porque representa algo.

O mediatismo de Carlos tem sido maior agora que foi à televisão e tem recebido mais feedbacks quanto ao seu trabalho. É considerado pela comunidade branca como o “New Black Cool” (O Novo Preto Fixe em tradução livre), como o próprio indica. Esse título que lhe foi atribuído é visto de uma forma errada, é a forma como os portugueses olham para ele, como um deles, a única diferença é a cor da pele e que podem fazer piadas racistas sem que o mesmo se ofenda por fazer parte do grupo.

“Quando veêm um preto fixe vão buscá-lo e tornam-no num deles. Fazem-me sentir um deles, mas até certo ponto. Não posso aceitar as piadas deles como se fosse algo normal, porque há uma linha muito ténue entre o falar e calar. E quando nos calamos torna-se difícil falar mais tarde.”

Sinto muito que agora tentam limar o que estou a fazer


Perguntámos ainda ao Carlos qual o seu ponto de vista quanto à frase tantas vezes usada “tudo agora é racismo”. “É uma defesa que não uso para mim ou tento não fazê-lo, eu tento relativizar. Se bem que isso acaba por trazer alguns dissabores, se não cortares de uma vez os comentários e atitudes racistas, tornas-te refém para sempre. Uma vez atuei em 2016 com um grupo do qual fazia parte, tinha o meu texto escrito e nele tinha algumas piadas sobre África. No final do espetáculo a diretora do teatro onde atuei veio ter connosco e cumprimentou todos, mas quando foi para me cumprimentar ela chamou-me de preto e pensou que fosse na boa porque eu contava piadas sobre pretos. Ou seja, ela pensou que se houvesse alguém com quem ela podia falar assim, seria eu. Tive de a chamar a atenção, daí a importância de cortar logo o mal pela raiz para não assumir aquilo como algo normal”.

É certo que Carlos está a “furar” um nicho dentro do mundo da comédia, é contatado por pessoas que o queiram agenciar, que prometem colocá-lo onde ele merece, em grandes palcos, mas que não pode falar do que fala, de temas racistas ou que Portugal é um país racista. “Sinto muito agora que tentam limar o que estou a fazer”. Na verdade, Carlos apenas quer dizer o que pensa com a sua liberdade.

A liberdade é algo que para o comediante é importante, e que quando fala de racismo nos seus espetáculos, quer mesmo dizer isso. “Perpetuamos essa ideia falsa de que Portugal não é um país racista, quando é, lidem com isso, aceitem.” Porque para ele a comédia portuguesa é constituída por brancos de classe média alta, que falam todos exatamente a mesma coisa, e muitas vezes gozam com o facto de ser preto e imitam os sotaques africanos que na verdade acabam por nem corresponder à realidade.

Carlos afirma ainda que “o português chateia-se muito quando alguém diz as verdades, essa é a postura que eu mantenho com a minha mãe, eu posso falar mal dela mas não admito que mais ninguém fale. Que é exatamente o que o português faz, não gostam que falem mal do país e os argumentos que me dão são dúbios e que não existe racismo no país. O facto de ter uma estátua do Eusébio na Luz, o Matias Damásio esgotar o Coliseu dos Recreios, e o Anselmo Ralph estar como júri no The Voice, não é nada. É um tema que me incomoda e já que ninguém fala dele, eu falo e será sempre um tema que abordarei, por me incomodar”.

A colonização de vários países africanos acabou por deixar África com um pensamento muito oprimido e com uma atitude muito ainda sobre o que “o branco fazia no meu lugar”. O comediante apercebeu-se disso quando voltou à sua terra natal, São-Tomé e Príncipe em 2018. “Chateia-me olharmos ainda para o branco como um salvador da pátria, que vai mudar as coisas, que o branco é que sabe, confias mais num branco sem estudos do que um preto com estudos, isso é um pensamento muito presente em África ainda, e vi essa realidade quando estive em São Tomé após 11 anos fora.”

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Homem negro, heterosexual, privilegiado. Mas com pêlos no peito.

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A São-Tomé e Príncipe, Carlos levou material escolar, bolas, doces e coisas para os miúdos. E percebeu também que existe um certo mediatismo à volta da atitude que estava a ter perante as crianças e as coisas que levou, porque o chamado “turismo ao pobre” praticado pelos portugueses e não só é isso mesmo, documentar, televisionar e filmar o que estão a fazer. “Havia uma preocupação das pessoas em filmar o que eu estavam a fazer, isso é estúpido e tornou-se normal quando não devia ser”, concluiu Carlos.

Voltando ao Levanta-te e Ri”, normalmente todos os que vão atuar têm de enviar previamente o seu texto, havendo sempre a possibilidade de cortarem partes do mesmo. O de Carlos foi deixado tal e qual como enviou, nada foi cortado ou alterado, e falava de racismo. Carlos é de opinião que se não cortaram era porque o que lá estava era bom.

Mas até chegar a atuar para a televisão foi necessário um trabalho árduo de quatro anos no ramo. Quando começou, 80% das piadas era sobre a sua mãe e o facto dela trabalhar muito, de ralhar com ele, do seu curso, entre outros temas. Nunca tentou forçar nada, nem de falar do que não conhecia.

Admitiu também que depois desses anos todos gostaria de ter mais negros nas plateias. Aceitou ser o “new black cool“, apesar de não ter escolhido sê-lo, mas nos dias de hoje não vê esse título com os melhores olhos. Carlos percebeu que isso é apenas uma forma condescendente de racismo e as expressões como “és um dos nossos, és fixe, sabes vestir e falar” é como se ele fosse a excepção de uma regra, o que acaba por o incomodar mais ainda.

Enquanto estudava nunca teve muitos amigos negros, Nelson mais conhecido como Wine, foi o seu melhor amigo entre o 9.º e 11.º ano. “O Nelson fez de mim quem eu sou hoje, estava sempre contente e bem com tudo, tinha um à vontade com tudo, é inteligente e eu gostava muito dele. E foi ele que me permitiu gozar com tudo sem ter medo.”

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A equipa trabalha

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“Eu tinha vontade de gozar com tudo mas tinha medo, mas desde que estivesse com o Nelson eu contava piadas e todos riam e eu tinha o Nelson ao meu lado.”

Carlos não tinha uma família rica, mas na escola de Queluz, onde assaltavam as cantinas na altura, conseguia ter sempre dinheiro na carteira. Não se sentia mais do que ninguém, era muito tímido, e para evitar problemas e não dar do seu comer, ele chegou a pagar uma tosta a um rapaz que lhe pediu um pedaço da sua. “Bendita tosta que paguei protegeu-me de muitas coisas”. Apesar da mãe não o querer numa escola onde pudesse arranjar problemas, acabou por ficar numa pior ou igual às outras todas.

Por um lado os brancos diziam que eu era um deles e a minha mãe dizia que eu não era do lado dos pretos.

Carlos disse ter sido enganado pelo mundo, porque ficou sem saber de que lado estava ou onde devia estar inserido. Tudo devido ao new black cool. O comediante achava que era um dos brancos até ao dia em que conheceu o pai da namorada (branca) que lhe disse que ele devia ter SIDA porque tinha nascido em África. Aí foi quando aconteceu uma viragem na sua vida e um despertar para a realidade e percebeu realmente que não era um “deles” e que alguém tinha de dizer algo.

Após ter ido ao programa da TVI “Você na TV”, em 2015, no dia seguinte convidaram-no para jantar e aceitaram-no como namorado da filha, “pediram-me desculpas e que sendo a única filha que têm, ficaram com uma ideia errada de mim”. Acrescentou ainda que “o mundo enganou-me. Por um lado os brancos diziam que eu era um deles e a minha mãe dizia que eu não era do lados dos pretos.”

Por existir toda essa controvérsia de que lado estava e do racismo, Carlos Pereira deixou de fazer uma piada que fazia sempre: “três coisas que uma mãe não quer que as filhas façam e elas fazem sempre: tatuagens, sair à noite e f*der um preto. Para cada pai racista há uma filha que f*deu um preto. Parem com isso, às vezes fazem isso só para vos chatear. Não digo porque fica bem, mas é a realidade.”

Com isso tudo, Carlos ficou conhecido no meio da comédia como “o preto que só faz piadas sobre o facto de ser preto” quando na verdade fala de mais coisas, falas das suas experiências de vida, mas a ideia geral do que fica é o que as pessoas sublinham mesmo tendo um repertório que não se baseia apenas num só trabalho.

Algo que deixa Carlos um pouco apreensivo e com medo é a cobrança. Tem medo de mais tarde, quando subir ao palco, vir a ser cobrado tanto pelos negros como pelos brancos, caso não fale ou fale de racismo. “Não falaste de racismo porquê? Ja te calaram?” Carlos quer apenas poder escolher o que falar, de coisas que o afetam, de fazer rir sem muitas estratégias.

Carlos Pereira / BANTUMEN
Carlos Pereira / BANTUMEN

Se falar muito de racismo as pessoas interpretam-no mal. “Existe um lado em que as pessoas assumem-me como um ativista, há uma linha muito ténue entre o humor e o ativismo. E depois da minha atuação no “Levanta-te e Ri” tive reuniões em que me disseram ‘você na parte final parecia o Martin Luther King, de punhos cerrados pronto para mudar o mundo’. ‘Eu não odeio brancos, muito pelo contrário, mas alguém tem de dizer às pessoas as verdades. E quando isso acontece, vês o desconforto das pessoas na sala.”

O comediante sente-se influenciado pelo que ouve, tem uma base musical muito própria, que o faz criar os seus textos. Ouve Azagaia e Djonga, que falam muito sobre o racismo e acabam por influênciá-lo.

Carlos Pereira termina afirmando que “o facto de estar lá em cima já estou a representar alguém, mas não é esse o objetivo. Se eu disser algo com que alguém se identifique, tudo bem, eu vou sempre falar dos temas que quero e se alguém se identificar tudo bem, mas eu não vou falar de realidades que desconheço, porque assim não serei feliz”.

Abaixo podes ver um pouco da entrevista que fizemos ao Carlos Pereira e perceber um pouco do seu trabalho.

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para [email protected].

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