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Deize Tigrona, uma “mente brilhante” do funk entre a vassoura e o estrelato

Deize Tigrona | DR
Deize Tigrona | DR

Sem nenhuma dúvida, Deize Tigrona é uma das responsáveis pela popularização do funk dentro e fora do Brasil. Apesar disso, o trabalho dela não possui o reconhecimento merecido. Esse quesito também faz parte da lista de motivos que fez a funkeira carioca dar um tempo na carreira por uns longos dez anos.

O período que ficou longe não a fez desanimar, mesmo tendo que enfrentar a depressão. Compôs, participou de residências artísticas e continuou tocando a vida. Atualmente, intercalando a carreira artística com o trabalho de gari – limpando vias públicas – na prefeitura do Rio de Janeiro, Deize Maria Gonçalves da Silva é uma das contratadas do selo Batekoo, que também é um movimento periférico, afrofuturista e LGBTQIA.

Essa oportunidade a colocou de volta no cenário musical com o álbum Foi Eu Que Fiz. Na divertida e emocionante conversa que tivemos via Zoom, cheia de risadas e choro, Deize fala sobre o projeto, a pausa na carreira, o trabalho simples e a vontade de levar a sua música mais longe. 

A gente leva tanta porrada que às vezes acha que um carinho vai doer

Deize Tigrona

Você traz sua originalidade do funk com um tempero do trap e outros gêneros eletrônicos. A receptividade tem sido boa, na sua visão?

É, Adailton, assim… eu ainda estou flutuando. Estou nas nuvens em relação ao disco porque é um sonho realizado e ainda, sinceramente, eu não acredito. Ainda me pego pensando no que fiz, como que consegui entrar nessa ordem, porque é totalmente diferente do que eu fazia antes. Então, estou numa ordem (momento) que eu não imaginava. Porque é isso, o funkeiro vem de um lastro do abatimento, sempre aterrorizado, traumatizado. Ainda estou nesse efeito nuvem de ficar imaginando como isso aconteceu. Óbvio que idealizei de pensar como esse álbum seria mas por muitas vezes pensei: “tá foda, caralho, essa música vai arrebentar. Não, porra, esta música vai arrebentar ou não, essa escrita não tem nada a ver comigo, tá faltando algo. E quando falaram o dia que sairia, eu fiquei sem acreditar que iria sair de fato. Quando lançou, eu fiquei assim: ‘caralhooo’. É porque a gente vem daquele efeito de ‘porradaria’ de saber que nem tudo é fácil. Então, a gente fica flutuando em relação a isso, porque a gente sabe que está uma coisa boa, que o álbum é sinistro e vai ser alvo de críticas boas e até ruins. Mas que critiquem pensando neste conceito de hoje, pensando nas novas plataformas e os MCs que estão vindo por aí e os que já vieram. É aquela coisa de (porra) tu iniciou lá atrás, tu acompanhou, tu renasceu, tu fez.. Então, ainda estou me sentindo nas nuvens. Muitas vezes, eu tento não pensar na crítica e no que os outros vão falar, mas de tudo que eu tenho visto está sendo muito bem positivo. Eu me sinto realmente lisonjeada, não só por isso, mas também pela minha coragem, porque, como eu sempre falo, acredito na minha escrita e na minha cabeça em relação ao que quero e do que quero que o povo ouça. 

E você é perfeccionista, no sentido de fazer uma letra depois de um tempo desistir dela, regravar e ir criar tudo novamente?

Geralmente, as minhas escritas são bem impulsivas. Por exemplo, em “Bondage”, quis fazer um estilo vogue, bem dançante, eletrônica, para ver realmente as ‘gatas quicarem’, entendeu!? Mas quando mandei para o Arthur Santoro (do selo Batekoo), eu estava na empolgação que estava ótimo, porém, ele disse que estava faltando alguma coisa. Falei para ele que sabia o que estava faltando. Aí, fui buscar algumas referências no YouTube e fui pesquisar sobre bondage, fui pesquisar mais sobre sadomasoquismo e de repente me peguei nessa mistura dessas duas coisas. Mas a inspiração veio da fala de uma amiga, que dizia que adorava soco na costela, que adora um puxão de cabelo, uns tapas fortes na bunda, uma mordida no pescoço… falei: é isso, ‘vamo embora’: “Sadomasoquista, bondage!!”(canta). Tipo assim, murro na costela. Agora, “Monalisa” vem realmente de um momento de mágoa e de uma residência artística que fiz, pensando nessa volta. “Amanheceu, resisti, estou de frente para o mar, mesmo sabendo que o sol vai embora / As ondas batem nos meus pés / veio revigorar / e eu estou viva agora” (declama).

Isso tinha que ser realmente um ato diferente do que eu era lá atrás, e pensar nessa situação de hoje que é o funk, que é uma resistência. Então, não tinha como pensar numa escrita mais contemporânea misturando a arte plástica com a favela. Não que a gente não faça arte ou não acredite, mas é para reforçar porque me peguei em situações que eram fortes e chorei, fiquei triste (dá risadas)… e aí é isso, se você não imagina uma pessoa, vamos brincar com “Monalisa”, porra! (dá risadas)

É uma personagem conhecida, né!? Então, vamos nos identificar com ela…

De verdade… mas é isso. Eu estou muito feliz, mas quero expor essa felicidade nesse olhar tête à tête. A gente leva tanta porrada que às vezes acha que um carinho vai doer, mas com certeza vamos dar a volta por cima e reconhecer de quem vem. 

Você faz o retorno com esse álbum depois de um tempão sem lançar músicas inéditas. É claro que vieram alguns singles antes, mas um trabalho completo fazia muito tempo que não lançava. Como tem sido esse retorno e por que ficou tanto tempo longe da música? Não queria voltar mais ou era um tempo que você tinha que dar para você mesma?

Passei um tempo com depressão, que não acreditava mais que fosse passar, porque parecia que eu tinha magoado pessoas em relação ao meio artístico e ter decepcionado por não ter concluído uma viagem europeia tão almejada por todo mundo dentro do funk. Tive essa “deprê”, mas não deixei de escrever nesse meio tempo. Escrevi “Madame”, “Prostituto”, “Sexo Internet Funk” (com Larinhx), “Vagabundo” e fiz a residência artística, mas continuei escrevendo as músicas, assinei com a Batekoo…

A gente sempre ouviu as mães falarem que se não estudar vai virar lixeiro

Deize Tigrona

As músicas que estão nesse disco não são as da primeira assinatura do contrato?

Eu me reinventei. Aí teve a pandemia mas, antes disso, a gente foi fazer uma turnê na Europa. Então, esse tempo foi necessário por uma questão de saúde e também de estudo, porque a gente não sabe quantas abas a nossa mente abre, mas foi essencial e tive que enxergar isso.

São muitas coisas que acontecem, muitas informações e você querer entender o porquê da depressão, o porquê de pessoas não acreditarem na depressão, principalmente você. Mesmo assim, com tudo isso, eu não parei. Fiz essas músicas todas, entrei na residência [artística], assinei com a Batekoo… Comecei a trabalhar como gari no Rio de Janeiro.

Peguei uma luta incrível, porque acompanhei as músicas do Caetano [Veloso] falando sobre a Ditadura Militar e, nesse feito da greve dos garis [em abril de 2022], eu estava lá. Vi aquilo como se a gente estivesse na luta pela liberdade, um feito que é o nosso direito, que é a volta do contínuo salarial que foi travado. Nesse meio tempo, vivi coisas por questão de saúde e também de aprendizado. O meu trabalho na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), digo que é uma terapia onde você conhece pessoas, tem contato com uma outra classe trabalhadora. A gente sempre ouviu as mães falarem que se não estudar vai virar lixeiro….

Como se esse fosse um trabalho indigno….

Sim! Mas nossos pais, naquela época, não tinham uma comunicação do que passou, do que deixou de passar e de não saber que a classe trabalhadora é trabalhadora, independentemente do nível de escolaridade, seja varrendo rua ou trabalhando de empregada doméstica. Tipo assim, no meu concurso (para entrar na Comlurb), peguei muitas pessoas com faculdade e eu só tinha a quinta série. Juro ‘pra tu que fiquei com vergonha quando fui me apresentar no auditório com muitas pessoas foda, com faculdade e eu com a quinta série.

Sinceramente, nem consegui falar ali que eu era artista. Falei simplesmente: “Eu sou a Deise Maria Gonçalves da Silva, só tenho a quinta série e estou aqui para aprender”. Hoje, Adailton, aconteceu uma coisa que vou falar para você. Fui para a minha gerência e uma pessoa importante lá me chamou no meio da multidão, depois da orientação dos procedimentos de segurança. Todo mundo achou que era uma bronca, e eu também achei, mas ele veio me parabenizar. Me disse que apareci numa publicação no Facebook e logo foi pesquisar. Falou que estava muito feliz de me ter ali trabalhando com ele, que dá para sentir o quanto a pessoa é guerreira e trabalhadora, independente de onde vem e do seu ideal. Fiquei muito emocionada, agradeci, peguei os sacos e saí para trabalhar. Aquilo me deixou tão feliz, porque enquanto estou aqui nessa nuvem de não acreditar, tem pessoas que estão ouvindo o meu disco. E eu ainda não acredito que elaborei isso, que tive essa coragem, sabe!? Ainda estou muito emocionada com essa minha trajetória e isso não foi algo que não iria deixar de acontecer porque sou uma pessoa persistente. Por isso, imagino um futuro melhor, não só para mim, mas também para outros artistas. Mesmo que eu lute para dar aquele passo e não vá mas outra pessoa vai, fico muito feliz. Ouvir isso, às 6h da manhã foi tipo: continue, você está linda, vai dar tudo certo. Fiquei muito feliz.

[Deise se emociona ao falar desse elogio e também das lutas que teve e não conseguiu vencer pelo simples fato de ser mulher]

Você é uma das grandes inspirações para outras mulheres brasileiras. Representa a grande maioria da população, que é preta e feminina, e está sempre na resistência. Continua acreditando, porque esse disco trouxe uma cor, um brilho, para um segmento que está cada vez mais do mesmo. Queria saber da construção desse trabalho? Ele possui vários produtores que contribuíram para que fosse bem diverso, mas com toda sua essência e verdade.

Pensando no que as plataformas pedem hoje em dia, acreditei no que sinto. Então, essa construção foi variada. Por muitas vezes, discuti com o pessoal [da gravadora] que eu queria pôr algumas músicas antigas. Uma delas era Ibiza. E esse processo foi de noites sem dormir, de muitos pensamentos em relação às dancinhas do TikTok, de mostrar que a ‘mãe tá on’, e muitos pensamentos de prosperidade de chegar em outros lugares, de estar em outro nível, não só do Brasil, mas no mundo.

Pensando em coisas que já vivi lá atrás, por exemplo, “Sobrevivente de Rave” é uma música que foi escrita há um tempo. Foi tudo muito pensado na harmonia musical, na harmonia dos gêneros, porque quando escrevi “Monalisa”, pensava nas emoções vividas, mas decidi ter um foco. Foi um processo bem distribuído de emoções, noites de sono perdidas, mas era o que devia ser feito de acordo com aquilo que venho ouvindo e vivenciando. É uma junção também de vários artistas de que sou fã, como Rita Lee, Liniker, Majur, Letrux… Nossa, elas me inspiram bastante, assim como o pessoal do trap e do rap: o BK, o MV Bill (meu vizinho de porta, o ‘de menor’). Então, não tinha como dar errado. Mas não é porque eu sou chata em relação à minha escrita que vou estar segura. 

Tenho a gana de voltar para Europa e também lançar esse disco internacionalmente e, principalmente de não ser só aquela coisa da fama. Quero grana, isso é óbvio”

Deize Tigrona

As suas letras são bem quentes e, na música – principalmente no Brasil -, as pessoas se seguram para falar de sexo de uma maneira mais explícita. Você já fala de uma forma direta. Essas músicas nascem naturalmente, são relatos pessoais ou histórias que ouviu de alguém?

[dá risadas]

E poderia dizer que é tesão, que é vivência, que é querer, que é ardência, que é vai mais, bota fundo… [Entre gargalhadas: ‘olha a cara do Adailton’). Tô brincando hein, mas faz parte [dá risadas].

[Risadas] Com absoluta certeza, é a vida!

Faz parte, mas vem da elaboração também da vivência com nossos pais, desse tabu de não poder falar sobre sexo. Eu tenho comigo o fato de, na minha primeira menstruação, eu não falar para minha mãe, porque as únicas falas entre as famílias eram: “não sei quem está grávida, se perdeu, não é mais virgem”. Entende? A fala entre as famílias era isso, não era assim: “aí, a última menstruação dela veio tal dia; aí, ela não tomou injeção (anticoncepcional), ela não botou camisinha ou ele não botou camisinha?; não sei quem deu pra um e pra outro”. Parece que cada família ficava tomando conta da filha da vizinha. 

Quando minhas letras e de outras meninas deixam de serem tabus também nos dá coragem de denunciar o estuprador, o abuso, sem ter vergonha do que a gente passou quando fomos vítimas

Deize Tigrona

É, e sempre jogando o peso nas mulheres, como se os homens não tivessem nenhum um tipo de responsabilidade.

Sim! Eu sou daquela época que tinha que dar benção. Pegar na mão do meu avô, beijar e dar benção. Muitas vezes ele cobrava isso e a minha avó é que ia lá pegar os filmes pornográficos dele na locadora. Sendo que também minha avó não podia assistir com ele. Entendeu? Então, tinha esse tabu intenso em não falar de sexo abertamente, mas fazer o sexo escondido. Para os meninos, os pais falavam: “se der mole, come mesmo”. E nós meninas não podíamos falar (mesmo na inocência) do menino em que a gente estava de olho. Quer dizer, a nossa conversa em relação a sexo era: “eu finalmente fiquei com aquele menino; nossa, doeu a primeira vez; mas sagrou”. Se não sangrou, você não era virgem. Essa era uma discussão nossa, mas não podíamos falar com os pais. Por isso, o meu ato musical vem realmente de conversa de prédio, conversa de praça (eu com as meninas). De mostrar essa vontade do querer, na preocupação do fazer e de dizer que os meninos não eram aquilo tudo.

A música veio para mim na vivência com as amigas e principalmente por causa da TV. Na época, era TV Manchete e tinha as novelas “Engraçadinha”, “Hilda Furacão” (que sou muito fã), e vi que não precisava ser um tabu entre os parentes, quando eles tinham essa liberdade de assistir na TV. Aquilo era uma arte audiovisual e também não era a tal verdade, e vi que eu me tornaria uma roteirista (digamos assim) de um desses filmes. A tal pornografia, que dizem que é o funk, está presente no cinema e mulheres brancas e ricas, moradoras da Zona Sul, praticamente atuavam o que eu cantava. Fico muito revoltada quando falam em pornografia, mas não pensam no explícito do audiovisual. Tudo leva a uma emoção, mas tudo também é uma ficção. A gente tem essa ideia imaginária. E quando minhas letras e de outras meninas deixam de serem tabus também nos dá coragem de denunciar o estuprador, o abuso, sem ter vergonha do que a gente passou quando fomos vítimas. Muitas vezes, meninas passam por coisas que não podem falar porque sempre são culpadas. Elas sempre são apontadas.

Também não existe uma educação sexual necessária para que adolescentes e jovens entendam o que estão fazendo.

Sim, mas o que quero dizer é que, naquela época, a gente não tinha essa conversa com os nossos pais, mas tinha a fala entre eles, porém, eles mesmos não tinham aquela autonomia devido ao machismo, o preconceito. Aquela coisa de que mulher tem que ser submissa. Muitas vezes, nem minha mãe sabia o que era isso, porque mulher era para casar, e casar virgem.

É a coisa da família tradicional que continua sendo pregada, mas só por aparências. Na frente é uma coisa e nos bastidores tudo é permitido.

Pois é! A gente sempre está exposta, inclusive quando vamos ao médico. De repente, vamos fazer algo básico e temos que tirar a roupa. É pesado.

Você é uma das poucas que continuam trazendo esse tema. Tentaram diversas formas de criminalizar o funk, proibir e jogar todas essas coisas pesadas por conta do gênero, sendo que na arte ou na vida, na política e na vida brasileira acontecem coisas piores que não tem nada a ver.

A gente ainda é um problema social, mas eles vêm aqui e nos copiam. Eles vêm e escrevem seus roteiros, querem assinar um contrato ou simplesmente nos plagiam. Então, a gente é um “problema social” porque tem que ser. Somos mais que referência porque, quando o funk desce para o asfalto, ele passa a ter essa aprovação, como aconteceu com o samba

Vão pegando elementos para criar outra coisa e dizer: fomos nós que fizemos.

Oh meu Deus… 

Quais são os planos para fazer o disco fazer ainda mais barulho?

Vou fazer uma trend no TikTok [dá risadas]. ‘Tô brincando. Tenho a gana de voltar para Europa e também lançar esse disco internacionalmente e, principalmente, de não ser só aquela coisa da fama. Quero grana, isso é óbvio. A grana tem que vir. O disco foi feito para a prosperidade do querer e querer coisas boas. Ele é uma coisa boa, foi pensado e elaborado para o futuro, literalmente. Então, que esse futuro venha com portas abertas e com dinheiro no bolso, porque a gente precisa realmente pagar as contas. A mente brilhante aqui precisa ser alimentada e pagar as contas além de tudo.

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