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MIA 2024

Transformar a escrita em resistência: Aissatu Seidi e a revolução cultural da Nómada Notebooks

November 17, 2024
Aissatu Seidi Nómada entrevista

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Aissatu Seidi é uma artista e ativista que encontrou no ofício da encadernação um caminho de resistência e expressão cultural. Através de uma jornada marcada por um desejo profundo de mudança, Aissatu fundou a Nómada Notebooks, um projeto que ressignifica o ato de escrever e o próprio objeto do caderno, transformando-o numa poderosa ferramenta de representação e fortalecimento da identidade negra. A ideia para o projeto nasceu da necessidade de expressar a sua vivência e a de outros artistas e pessoas negras, criando um espaço onde a história e a presença negra sejam visíveis e celebradas. 


Numa conversa íntima com a BANTUMEN, Aissatu fala sobre o seu percurso com uma sensibilidade especial, e reflete sobre o impulso que a levou a criar a Nómada Notebooks. “Na época, sentia-me sufocada. Portugal, na altura, parecia-me um espaço restrito, onde não encontrava representação nem espelhos para as minhas questões. Fui para Inglaterra, onde estudei conservação de arte. Trabalhei em locais como os National Archives, o que me fez perceber o quanto o registro e a preservação escrita são essenciais. No continente africano, a oralidade sempre teve um papel central, mas, ao longo do tempo, fomos sendo empurrados para o formato escrito, perdendo um pouco desse legado oral”, reflete.


A perda de uma pessoa próxima, a sua irmã de apenas treze anos, fez com que Aissatu se questionasse sobre o que estava a deixar para o mundo. Foi nesse contexto que surgiu o conceito de criar cadernos únicos, onde a escrita e a identidade pudessem coexistir como símbolos de memória e resistência. Cada caderno da Nómada Notebooks é concebido como uma extensão do corpo e da história de quem o usa. “Nós, como povo africano, carregamos tantas capacidades e vivências dentro de nós, especialmente na arte. Quando um dos nossos cadernos, costurado com técnicas ancestrais como a costura copta (encadernação artesanal), chega a um novo espaço, ele carrega um pedaço dessa história, e essa presença abre uma conversa, uma troca”, diz Aissatu. 


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Agenda cultural
Aissatu Seidi Nómada entrevista

Nomada Notebooks 

Aissatu Seidi Nómada entrevista

A Nómada Notebooks não é apenas um projeto artístico; é também um espaço de ativismo social e cultural. Para além de expor o seu próprio trabalho, Aissatu destaca a importância de evidenciar outros artistas negros, colaborando com coletivos como o Africandé ou a Bazofo Dentu Zona e muitos outros. Ela sublinha que os cadernos representam algo mais profundo: são uma posição social, uma manifestação que confronta e decoloniza os estereótipos que muitas vezes acompanham a pele negra. “Ter acesso a esta materialização da nossa história coloca-nos numa posição de empoderamento, criando raízes de resistência através da existência e da nossa própria beleza”, afirma a artista.


A experiência de Aissatu no Brasil foi outro ponto de transformação. “O Brasil ensinou-me a resistência que se vive através do corpo. Nos sambas, mesmo em espaços que possam ser difíceis, há uma liberdade, uma alegria que emerge e mantém as pessoas vivas e jovens. A arte tem essa função de trazer uma espécie de rejuvenescimento, mesmo quando as coisas não estão bem. É um escape que encontramos para continuar e para expressar o que nos vai na alma”, explica.


Aissatu vê os seus cadernos como algo mais do que simples objetos; são registros de histórias, espaços de memória e veículos de expressão. “Quando alguém compra um dos nossos cadernos e leva para casa, o objeto começa a percorrer um caminho dentro daquela comunidade. Às vezes, o irmão vê e também quer um, depois a sobrinha, e vai-se espalhando”, descreve. Esta é a sua forma de contribuir para que o povo negro possa valorizar e narrar as suas próprias histórias com orgulho, construindo um legado que transcende o tempo e que poderá inspirar futuras gerações.

Consequentemente, a artista e ativista guineense, traz também para a sua marca Nómada Notebooks uma visão única que conecta sustentabilidade e práticas artesanais. Ao escolher os materiais, Aissatu procura sempre dar uma segunda vida a sobras e resíduos que, de outra forma, seriam descartados. "O meu processo começou na Guiné-Bissau, onde o problema do lixo é visível e afeta diretamente a nossa comunidade", confessa. Lá, Aissatu passou a recolher tecidos que seriam descartados e a utilizar sobras de lojas locais, transformando-as em materiais para os seus cadernos. A jovem traz a mesma prática para Portugal e para o Brasil, onde estabeleceu redes de apoio com comerciantes locais, que reservam sobras de tecidos e papéis que reaproveita na produção dos seus cadernos. 


A marca também prioriza o uso de papelão reciclado e aproveita folhas já impressas, como blocos de anotações de hotéis ou até folhas de testes de matemática e química, criando uma mistura única entre o passado e o presente. Esse processo reflete uma filosofia em que, para além da função, o caderno carrega história e identidade. "A ideia é que tudo seja reutilizável. Temos tanto papel que não usamos", comenta Aissatu, realçando o compromisso com o ambiente e a importância de reduzir o desperdício.


Aissatu Seidi Nómada entrevista

Nomada Notebooks

“A ideia é garantir que as próximas gerações tenham acesso a algo que vem do bem, que faz bem à natureza e que carrega a nossa história e ancestralidade”

Aissatu Seidi


A produção da Nómada Notebooks vai além do ato de encadernar; é uma forma de promover sustentabilidade e renovação na comunidade. Aissatu observa como os materiais que utiliza passam a ter um novo significado e valor. Ela incentiva a comunidade a refletir sobre o que consideramos "descartável" e promove o ciclo de renovação e reutilização. "A ideia é garantir que as próximas gerações tenham acesso a algo que vem do bem, que faz bem à natureza e que carrega a nossa história e ancestralidade", diz Aissatu. Ela compartilha o seu conhecimento através de workshops, ensinando a fazer cadernos e incentivando outras pessoas a criarem com suas próprias mãos, estabelecendo um elo entre a tradição e o presente, enquanto encoraja o uso de materiais recicláveis.


O trabalho de Aissatu Seidi também representa um forte compromisso com o ativismo social e a valorização da identidade africana. Na sua arte, Aissatu inclui figuras que considera referências e que se destacam pelo impacto na comunidade. Entre elas, estão personalidades como Erika Candido, cuja presença nas capas dos cadernos representa o reconhecimento de figuras vivas, contemporâneas e muitas vezes sub-representadas. Para ela, essas pessoas são tão icônicas quanto qualquer outra celebridade amplamente reconhecida no mundo ocidental e merece visibilidade pelo trabalho revolucionário e pela resistência que carregam.


Assim, a artista acredita que esse processo de escolha vai além de criar algo esteticamente agradável; ele é uma forma de destacar aqueles que partilham a sua trajetória e cultura, criando uma conexão entre a sua arte e a história de vida dessas figuras. "A minha inspiração está nas pessoas que conheço e admiro, como um Sinho [Baessa de Pina] ou uma [Isabel] Zuáa, que estão próximas de mim e que trazem uma força real e autêntica", conta ela, explicando como a inclusão dessas referências é uma forma de promover representatividade.


A presença de figuras conhecidas e pessoas próximas a Aissatu nas capas dos seus cadernos é uma forma de ativismo, que, segundo ela, flui naturalmente através do seu processo criativo. É também uma forma de trazer a comunidade para perto da sua arte, dando visibilidade a histórias que muitas vezes passam despercebidas. "Por que não? Porque é que as figuras da nossa comunidade não podem estar nas capas dos cadernos e receber o mesmo destaque?", reflete Aissatu. Com esta abordagem, ela contribui para desmistificar a ideia de que apenas figuras validadas pela sociedade ou pelos media têm valor.


Aissatu também explora a colagem e o uso de imagens de revistas e jornais que encontra, destacando figuras como Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, escritoras blemáticas da literatura afro-brasileira e moçambicana, respetivamente, Aissatu homenageia vozes que representam a luta e a resiliência negra entre outras, criando um espaço para representações culturais e para figuras africanas que, embora não amplamente conhecidas, têm grande impacto. Para ela, esses elementos trazem uma sensação de pertença, oferecendo uma homenagem à ancestralidade africana e ao mesmo tempo promovendo a visibilidade de novas gerações e de figuras emergentes. 


Ao longo do tempo, a Nómada Notebooks criou uma base de seguidores e admiradores que vêem nos cadernos de Aissatu uma coleção de história viva, representando familiares, amigos e figuras icónicas do quotidiano. É comum que pessoas próximas a Aissatu acabem por ter um caderno ou até uma coleção inteira de cadernos que narram a sua história familiar, as suas raízes e, de forma indireta, a sua cultura.


“Conectar-se com os coletivos que atuam em outras partes da Europa é fundamental para construir diálogos sólidos”

Aissatu Seidi


Ao incluir-se a si mesma nas capas dos cadernos, a guineense reafirma a importância de cada um ser protagonista da sua própria narrativa. Ao promover a inclusão de figuras da comunidade, ela desafia o status quo e valoriza histórias que merecem ser contadas. “Já somos revolucionários, ativistas e grandes pessoas dentro da nossa comunidade. Precisamos de nos reconhecer e valorizar sem esperar validação externa”, afirma Aissatu, enfatizando o poder do seu trabalho em celebrar, preservar e transmitir o legado africano e das suas raízes, numa resistência que é tanto cultural quanto ambiental.


A artista comenta sobre a colaboração com o coletivo Africandé, um coletivo que luta pela valorização da cultura africana e contra o racismo em Portugal, fundado pela família de Bruno Candé e amigos após o trágico assassinato do ator. Ela destaca a força e a dedicação de Olga Candé e de outras mulheres que, entrelaçando as suas histórias pessoais, fortalecem a luta coletiva. Essa troca proporciona uma rede em que artistas e ativistas se conectam e ampliam as suas vozes, criando assim diálogos necessários e proporcionando um espaço de inclusão para jovens e adultos, além de promover a cultura negra na Cova da Moura.


Outro ponto importante do trabalho de Aissatu é a construção de pontes entre as diásporas africanas em diferentes países da Europa. A artista comenta a sua recente viagem a Valência (Espanha), onde conheceu o coletivo Me Pongo Negra, um grupo de mulheres negras que explora o significado e a apropriação das palavras usadas para definir as suas identidades. No processo, Aissatu reconheceu a importância de fomentar um espaço de diálogo entre as realidades vividas por mulheres negras, desde Portugal até Espanha, promovendo uma conexão entre pessoas com experiências de exclusão e resistência em contextos locais distintos, mas interligados. Para a artista, “conectar-se com os coletivos que atuam em outras partes da Europa é fundamental para construir diálogos sólidos. Precisamos saber quem são estas pessoas, entender as leis de imigração que afetam cada lugar e amplificar as nossas vozes todos juntos.”

Este posicionamento reflete-se através do próprio nome da marca, Nómada, que Aissatu escolheu justamente por representar o movimento e a transformação de quem vive entre territórios e culturas. Ela reforça que o “ser nómada” é um dos pilares do seu trabalho e explica a necessidade de construir, de forma dinâmica, uma comunidade forte e unida. Para ela, o intercâmbio cultural é uma oportunidade para partilhar, aprender e crescer sem perder a própria identidade. “A palavra nómada fala sobre estar em constante movimento, explorar novos territórios, construir uma comunidade com aqueles que trazem também as suas histórias e culturas. É isso que a Nómada Notebooks busca fazer”, completa.


Para Aissatu, essa conexão com outros países e culturas tem raízes profundas e pessoais. Enquanto vivia no Brasil, conheceu de perto a luta de Marielle Franco e viu o impacto que a vereadora teve em comunidades marginalizadas. Inspirada pelo trabalho de Marielle, mas também de Sil BahiaTati VillelaDai Ramos entre muitas outras, Aissatu procura trazer essas influências para Portugal, um país onde a diáspora africana também luta pelo reconhecimento e valorização da sua presença e cultura. A construção de pontes não se limita ao Brasil; Seidi menciona o desejo de conectar-se com coletivos de afrodescendentes nos Estados Unidos, Inglaterra e outros países europeus, acreditando que essa articulação pode gerar uma rede de apoio enorme e fortalecimento imensurável das lutas em comum.


Apesar do seu alcance e influência, Aissatu não hesita em apontar para a lacuna nas conexões com África, especialmente com países como a Guiné-Bissau, o seu país de origem, e Cabo Verde. “Precisamos criar essas pontes e reconhecer a riqueza e o potencial que existe nestes territórios. Muitas vezes, as pessoas brancas viajam para o continente, adquirem conhecimentos e levam-nos de volta para a Europa, apropriando-se das nossas raízes e tradições. É fundamental que nós, enquanto africanos, sejamos os primeiros a construir e fortalecer essas conexões com o nosso continente”, afirma confiantemente. 


Aissatu Seidi acredita que a Nómada Notebooks pode e deve contribuir para essa reapropriação das rotas culturais, estabelecendo caminhos de troca autêntica e genuína entre a Europa e África. Este compromisso com a comunidade, a identidade e a autenticidade são, para ela, os pilares que sustentam a sua marca e o seu trabalho como artista e ativista.


Em relação à arte, a guineense analisa que é uma linguagem própria, uma forma de comunicar aquilo que muitas vezes não conseguimos dizer. A criação dos cadernos artesanais transforma-se num espaço seguro onde cada um pode expressar a sua individualidade e criatividade. Aissatu conta-nos a jornada de uma jovem que entrou no seu estúdio, em Rio de Mouro, e ficou maravilhada com a possibilidade de criar. Esta jovem, que vive numa comunidade vizinha, sentiu-se inspirada a explorar o seu lado mais artístico. Depois de fazer o seu primeiro caderno, Aissatu percebeu a força que esta experiência teve para ela. A jovem não só aprendeu a fazer brincos, mas também começou a acreditar nas suas capacidades, expressando hoje um desejo enorme de criar e de um dia poder ter o seu próprio espaço. 


Aissatu considera que, através da arte, é possível desconstruir padrões e preconceitos. Ela vê na oralidade e na escrita uma forma de pertença, um caminho para conectar-se consigo mesma e com os outros. A escrita, muitas vezes considerada um ato solitário, torna-se uma ferramenta de autoconhecimento e cura. "A história que contamos é profundamente humana", pondera Aissatu, enfatizando que, ao escrever, revelamos não apenas nossos medos e inseguranças, mas também a força que nos habita.


No entanto, a jornada não é isenta de desafios. Aissatu partilha que, como empreendedora criativa e ativista, tem enfrentado os atravessamentos e as limitações que a sociedade impõe, especialmente para mulheres negras. Ela ressalta a importância de saber de onde se vem e a flexibilidade necessária ao longo do caminho porque muitas vezes, as metas que estabelecemos podem não alinhar-se com o que realmente desejamos. Assim, Aissatu sugere que é fundamental abrir-se a novas oportunidades e estar disposta a adaptar os planos. Essa flexibilidade, segundo ela, é essencial para o crescimento pessoal e profissional.


Além disso, Aissatu incentiva outras mulheres negras que desejam iniciar os seus próprios negócios na área da arte e da comunidade a cercarem-se de inspiração. Ela acredita que a troca de experiências é vital; ninguém é inalcançável, e é preciso ter a coragem de aproximar-se de pessoas que admiramos. "Falar com as pessoas é fundamental", diz Aissatu, sublinhando que muitas vezes as portas abrem-se a partir de uma conversa e quando menos esperamos. O conhecimento vem da vivência e da experiência dos outros, que são mais valiosos do que qualquer curso formal.

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