Marcas por escrever
Contactos
BantuLoja
Pesquisa
Partilhar
X
Aissatu Seidi é uma artista e ativista que encontrou no ofício da encadernação um caminho de resistência e expressão cultural. Através de uma jornada marcada por um desejo profundo de mudança, Aissatu fundou a Nómada Notebooks, um projeto que ressignifica o ato de escrever e o próprio objeto do caderno, transformando-o numa poderosa ferramenta de representação e fortalecimento da identidade negra. A ideia para o projeto nasceu da necessidade de expressar a sua vivência e a de outros artistas e pessoas negras, criando um espaço onde a história e a presença negra sejam visíveis e celebradas.
Numa conversa íntima com a BANTUMEN, Aissatu fala sobre o seu percurso com uma sensibilidade especial, e reflete sobre o impulso que a levou a criar a Nómada Notebooks. “Na época, sentia-me sufocada. Portugal, na altura, parecia-me um espaço restrito, onde não encontrava representação nem espelhos para as minhas questões. Fui para Inglaterra, onde estudei conservação de arte. Trabalhei em locais como os National Archives, o que me fez perceber o quanto o registro e a preservação escrita são essenciais. No continente africano, a oralidade sempre teve um papel central, mas, ao longo do tempo, fomos sendo empurrados para o formato escrito, perdendo um pouco desse legado oral”, reflete.
A perda de uma pessoa próxima, a sua irmã de apenas treze anos, fez com que Aissatu se questionasse sobre o que estava a deixar para o mundo. Foi nesse contexto que surgiu o conceito de criar cadernos únicos, onde a escrita e a identidade pudessem coexistir como símbolos de memória e resistência. Cada caderno da Nómada Notebooks é concebido como uma extensão do corpo e da história de quem o usa. “Nós, como povo africano, carregamos tantas capacidades e vivências dentro de nós, especialmente na arte. Quando um dos nossos cadernos, costurado com técnicas ancestrais como a costura copta (encadernação artesanal), chega a um novo espaço, ele carrega um pedaço dessa história, e essa presença abre uma conversa, uma troca”, diz Aissatu.
Nomada Notebooks
A Nómada Notebooks não é apenas um projeto artístico; é também um espaço de ativismo social e cultural. Para além de expor o seu próprio trabalho, Aissatu destaca a importância de evidenciar outros artistas negros, colaborando com coletivos como o Africandé ou a Bazofo Dentu Zona e muitos outros. Ela sublinha que os cadernos representam algo mais profundo: são uma posição social, uma manifestação que confronta e decoloniza os estereótipos que muitas vezes acompanham a pele negra. “Ter acesso a esta materialização da nossa história coloca-nos numa posição de empoderamento, criando raízes de resistência através da existência e da nossa própria beleza”, afirma a artista.
A experiência de Aissatu no Brasil foi outro ponto de transformação. “O Brasil ensinou-me a resistência que se vive através do corpo. Nos sambas, mesmo em espaços que possam ser difíceis, há uma liberdade, uma alegria que emerge e mantém as pessoas vivas e jovens. A arte tem essa função de trazer uma espécie de rejuvenescimento, mesmo quando as coisas não estão bem. É um escape que encontramos para continuar e para expressar o que nos vai na alma”, explica.
Aissatu vê os seus cadernos como algo mais do que simples objetos; são registros de histórias, espaços de memória e veículos de expressão. “Quando alguém compra um dos nossos cadernos e leva para casa, o objeto começa a percorrer um caminho dentro daquela comunidade. Às vezes, o irmão vê e também quer um, depois a sobrinha, e vai-se espalhando”, descreve. Esta é a sua forma de contribuir para que o povo negro possa valorizar e narrar as suas próprias histórias com orgulho, construindo um legado que transcende o tempo e que poderá inspirar futuras gerações.
Consequentemente, a artista e ativista guineense, traz também para a sua marca Nómada Notebooks uma visão única que conecta sustentabilidade e práticas artesanais. Ao escolher os materiais, Aissatu procura sempre dar uma segunda vida a sobras e resíduos que, de outra forma, seriam descartados. "O meu processo começou na Guiné-Bissau, onde o problema do lixo é visível e afeta diretamente a nossa comunidade", confessa. Lá, Aissatu passou a recolher tecidos que seriam descartados e a utilizar sobras de lojas locais, transformando-as em materiais para os seus cadernos. A jovem traz a mesma prática para Portugal e para o Brasil, onde estabeleceu redes de apoio com comerciantes locais, que reservam sobras de tecidos e papéis que reaproveita na produção dos seus cadernos.
A marca também prioriza o uso de papelão reciclado e aproveita folhas já impressas, como blocos de anotações de hotéis ou até folhas de testes de matemática e química, criando uma mistura única entre o passado e o presente. Esse processo reflete uma filosofia em que, para além da função, o caderno carrega história e identidade. "A ideia é que tudo seja reutilizável. Temos tanto papel que não usamos", comenta Aissatu, realçando o compromisso com o ambiente e a importância de reduzir o desperdício.
Nomada Notebooks
“A ideia é garantir que as próximas gerações tenham acesso a algo que vem do bem, que faz bem à natureza e que carrega a nossa história e ancestralidade”
Aissatu Seidi
A produção da Nómada Notebooks vai além do ato de encadernar; é uma forma de promover sustentabilidade e renovação na comunidade. Aissatu observa como os materiais que utiliza passam a ter um novo significado e valor. Ela incentiva a comunidade a refletir sobre o que consideramos "descartável" e promove o ciclo de renovação e reutilização. "A ideia é garantir que as próximas gerações tenham acesso a algo que vem do bem, que faz bem à natureza e que carrega a nossa história e ancestralidade", diz Aissatu. Ela compartilha o seu conhecimento através de workshops, ensinando a fazer cadernos e incentivando outras pessoas a criarem com suas próprias mãos, estabelecendo um elo entre a tradição e o presente, enquanto encoraja o uso de materiais recicláveis.
O trabalho de Aissatu Seidi também representa um forte compromisso com o ativismo social e a valorização da identidade africana. Na sua arte, Aissatu inclui figuras que considera referências e que se destacam pelo impacto na comunidade. Entre elas, estão personalidades como Erika Candido, cuja presença nas capas dos cadernos representa o reconhecimento de figuras vivas, contemporâneas e muitas vezes sub-representadas. Para ela, essas pessoas são tão icônicas quanto qualquer outra celebridade amplamente reconhecida no mundo ocidental e merece visibilidade pelo trabalho revolucionário e pela resistência que carregam.
Assim, a artista acredita que esse processo de escolha vai além de criar algo esteticamente agradável; ele é uma forma de destacar aqueles que partilham a sua trajetória e cultura, criando uma conexão entre a sua arte e a história de vida dessas figuras. "A minha inspiração está nas pessoas que conheço e admiro, como um Sinho [Baessa de Pina] ou uma [Isabel] Zuáa, que estão próximas de mim e que trazem uma força real e autêntica", conta ela, explicando como a inclusão dessas referências é uma forma de promover representatividade.
A presença de figuras conhecidas e pessoas próximas a Aissatu nas capas dos seus cadernos é uma forma de ativismo, que, segundo ela, flui naturalmente através do seu processo criativo. É também uma forma de trazer a comunidade para perto da sua arte, dando visibilidade a histórias que muitas vezes passam despercebidas. "Por que não? Porque é que as figuras da nossa comunidade não podem estar nas capas dos cadernos e receber o mesmo destaque?", reflete Aissatu. Com esta abordagem, ela contribui para desmistificar a ideia de que apenas figuras validadas pela sociedade ou pelos media têm valor.
Aissatu também explora a colagem e o uso de imagens de revistas e jornais que encontra, destacando figuras como Conceição Evaristo e Paulina Chiziane, escritoras blemáticas da literatura afro-brasileira e moçambicana, respetivamente, Aissatu homenageia vozes que representam a luta e a resiliência negra entre outras, criando um espaço para representações culturais e para figuras africanas que, embora não amplamente conhecidas, têm grande impacto. Para ela, esses elementos trazem uma sensação de pertença, oferecendo uma homenagem à ancestralidade africana e ao mesmo tempo promovendo a visibilidade de novas gerações e de figuras emergentes.
Ao longo do tempo, a Nómada Notebooks criou uma base de seguidores e admiradores que vêem nos cadernos de Aissatu uma coleção de história viva, representando familiares, amigos e figuras icónicas do quotidiano. É comum que pessoas próximas a Aissatu acabem por ter um caderno ou até uma coleção inteira de cadernos que narram a sua história familiar, as suas raízes e, de forma indireta, a sua cultura.
“Conectar-se com os coletivos que atuam em outras partes da Europa é fundamental para construir diálogos sólidos”
Aissatu Seidi
Ao incluir-se a si mesma nas capas dos cadernos, a guineense reafirma a importância de cada um ser protagonista da sua própria narrativa. Ao promover a inclusão de figuras da comunidade, ela desafia o status quo e valoriza histórias que merecem ser contadas. “Já somos revolucionários, ativistas e grandes pessoas dentro da nossa comunidade. Precisamos de nos reconhecer e valorizar sem esperar validação externa”, afirma Aissatu, enfatizando o poder do seu trabalho em celebrar, preservar e transmitir o legado africano e das suas raízes, numa resistência que é tanto cultural quanto ambiental.
A artista comenta sobre a colaboração com o coletivo Africandé, um coletivo que luta pela valorização da cultura africana e contra o racismo em Portugal, fundado pela família de Bruno Candé e amigos após o trágico assassinato do ator. Ela destaca a força e a dedicação de Olga Candé e de outras mulheres que, entrelaçando as suas histórias pessoais, fortalecem a luta coletiva. Essa troca proporciona uma rede em que artistas e ativistas se conectam e ampliam as suas vozes, criando assim diálogos necessários e proporcionando um espaço de inclusão para jovens e adultos, além de promover a cultura negra na Cova da Moura.
Outro ponto importante do trabalho de Aissatu é a construção de pontes entre as diásporas africanas em diferentes países da Europa. A artista comenta a sua recente viagem a Valência (Espanha), onde conheceu o coletivo Me Pongo Negra, um grupo de mulheres negras que explora o significado e a apropriação das palavras usadas para definir as suas identidades. No processo, Aissatu reconheceu a importância de fomentar um espaço de diálogo entre as realidades vividas por mulheres negras, desde Portugal até Espanha, promovendo uma conexão entre pessoas com experiências de exclusão e resistência em contextos locais distintos, mas interligados. Para a artista, “conectar-se com os coletivos que atuam em outras partes da Europa é fundamental para construir diálogos sólidos. Precisamos saber quem são estas pessoas, entender as leis de imigração que afetam cada lugar e amplificar as nossas vozes todos juntos.”
Este posicionamento reflete-se através do próprio nome da marca, Nómada, que Aissatu escolheu justamente por representar o movimento e a transformação de quem vive entre territórios e culturas. Ela reforça que o “ser nómada” é um dos pilares do seu trabalho e explica a necessidade de construir, de forma dinâmica, uma comunidade forte e unida. Para ela, o intercâmbio cultural é uma oportunidade para partilhar, aprender e crescer sem perder a própria identidade. “A palavra nómada fala sobre estar em constante movimento, explorar novos territórios, construir uma comunidade com aqueles que trazem também as suas histórias e culturas. É isso que a Nómada Notebooks busca fazer”, completa.
Para Aissatu, essa conexão com outros países e culturas tem raízes profundas e pessoais. Enquanto vivia no Brasil, conheceu de perto a luta de Marielle Franco e viu o impacto que a vereadora teve em comunidades marginalizadas. Inspirada pelo trabalho de Marielle, mas também de Sil Bahia, Tati Villela, Dai Ramos entre muitas outras, Aissatu procura trazer essas influências para Portugal, um país onde a diáspora africana também luta pelo reconhecimento e valorização da sua presença e cultura. A construção de pontes não se limita ao Brasil; Seidi menciona o desejo de conectar-se com coletivos de afrodescendentes nos Estados Unidos, Inglaterra e outros países europeus, acreditando que essa articulação pode gerar uma rede de apoio enorme e fortalecimento imensurável das lutas em comum.
Apesar do seu alcance e influência, Aissatu não hesita em apontar para a lacuna nas conexões com África, especialmente com países como a Guiné-Bissau, o seu país de origem, e Cabo Verde. “Precisamos criar essas pontes e reconhecer a riqueza e o potencial que existe nestes territórios. Muitas vezes, as pessoas brancas viajam para o continente, adquirem conhecimentos e levam-nos de volta para a Europa, apropriando-se das nossas raízes e tradições. É fundamental que nós, enquanto africanos, sejamos os primeiros a construir e fortalecer essas conexões com o nosso continente”, afirma confiantemente.
Aissatu Seidi acredita que a Nómada Notebooks pode e deve contribuir para essa reapropriação das rotas culturais, estabelecendo caminhos de troca autêntica e genuína entre a Europa e África. Este compromisso com a comunidade, a identidade e a autenticidade são, para ela, os pilares que sustentam a sua marca e o seu trabalho como artista e ativista.
Em relação à arte, a guineense analisa que é uma linguagem própria, uma forma de comunicar aquilo que muitas vezes não conseguimos dizer. A criação dos cadernos artesanais transforma-se num espaço seguro onde cada um pode expressar a sua individualidade e criatividade. Aissatu conta-nos a jornada de uma jovem que entrou no seu estúdio, em Rio de Mouro, e ficou maravilhada com a possibilidade de criar. Esta jovem, que vive numa comunidade vizinha, sentiu-se inspirada a explorar o seu lado mais artístico. Depois de fazer o seu primeiro caderno, Aissatu percebeu a força que esta experiência teve para ela. A jovem não só aprendeu a fazer brincos, mas também começou a acreditar nas suas capacidades, expressando hoje um desejo enorme de criar e de um dia poder ter o seu próprio espaço.
Aissatu considera que, através da arte, é possível desconstruir padrões e preconceitos. Ela vê na oralidade e na escrita uma forma de pertença, um caminho para conectar-se consigo mesma e com os outros. A escrita, muitas vezes considerada um ato solitário, torna-se uma ferramenta de autoconhecimento e cura. "A história que contamos é profundamente humana", pondera Aissatu, enfatizando que, ao escrever, revelamos não apenas nossos medos e inseguranças, mas também a força que nos habita.
No entanto, a jornada não é isenta de desafios. Aissatu partilha que, como empreendedora criativa e ativista, tem enfrentado os atravessamentos e as limitações que a sociedade impõe, especialmente para mulheres negras. Ela ressalta a importância de saber de onde se vem e a flexibilidade necessária ao longo do caminho porque muitas vezes, as metas que estabelecemos podem não alinhar-se com o que realmente desejamos. Assim, Aissatu sugere que é fundamental abrir-se a novas oportunidades e estar disposta a adaptar os planos. Essa flexibilidade, segundo ela, é essencial para o crescimento pessoal e profissional.
Além disso, Aissatu incentiva outras mulheres negras que desejam iniciar os seus próprios negócios na área da arte e da comunidade a cercarem-se de inspiração. Ela acredita que a troca de experiências é vital; ninguém é inalcançável, e é preciso ter a coragem de aproximar-se de pessoas que admiramos. "Falar com as pessoas é fundamental", diz Aissatu, sublinhando que muitas vezes as portas abrem-se a partir de uma conversa e quando menos esperamos. O conhecimento vem da vivência e da experiência dos outros, que são mais valiosos do que qualquer curso formal.
Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.
Para sugerir correções ou assuntos que gostarias de ler, ver ou ouvir na BANTUMEN, envia-nos um email para redacao@bantumen.com.
Recomendações
Marcas por escrever
Contactos
BantuLoja
© BANTUMEN 2024