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“Pegue quatro onças de lúpulo, deixe ferver meia hora em um galão de água, coe a água do lúpulo e adicione dezesseis galões de água morna, dois galões de melaço, oito onças de essência de abeto dissolvido em um litro de água, coloque em um barril limpo, em seguida agite bem, adicione meio pint de leveduras, depois deixe descansar e trabalhe uma semana, se o tempo estiver muito quente, menos tempo, quando for retirado para a garrafa, adicione uma colher de melaço a cada garrafa”.
O trecho acima faz parte do livro American Cookery, de Amelia Simmons, é tido como o primeiro livro de culinária escrito por uma pessoa americana, publicado em Hartford, Connecticut em 1796; tem um tom que nos é muito familiar, um tom de uma infância preenchida por animações Disney: velhas bruxas, ervas, pequenos animais, caldeirões e palavras mágicas: asas de morcego, pata de aranha, pitada de formiga, dente de piranha… São parte de nosso imaginário, trazido do período da Idade Média, de um tempo de inquisições. A historiadora e sommelier beer Jane Peyton tem feito ao longo de sua carreira uma extensa pesquisa sobre a história da cerveja e nos trouxe informações que associam a produção cervejeira dos séculos passados a parte das mulheres tidas como hereges e queimadas pela inquisição. Te convido a ler mais aqui: Comprovado: a história mostra que a cerveja foi criada por mulheres, afinal a história da cerveja tem a mulher como protagonista, desde a descoberta da cerveja até os anos de 1700, ainda que haja uma constante tentativa de apagamento de tais histórias.
Na atualidade são as histórias narradas e descritas pela sociedade branca-hegemônica que dão o tom do consumo cervejeiro e sobre a cultura à sua volta. Entretanto há uma história negra da cerveja que passa pela África, Europa e Américas, em um entrelaçar de saberes e fazeres que incluem ritos, celebrações e conhecimentos transmitidos por gerações.
A África, a partir do Egito (KMT/Kemet, carvão/preto), tem papel fundante naquilo que temos hoje como entendimento de cerveja e, em descobertas recentes, sabe-se inclusive que a mesma região, há 5.000 a.C, tinha uma produção cervejeira em escala. Importante reforçar, pois a maneira que estudamos o Egito, ainda hoje, retira sua pertença ao território africano e sua negritude: sim, o Egito é negro e está no continente africano. E não sou eu ou os atuais descobridores das histórias negras que estamos dizendo, mas o historiador, filósofo, antropólogo e político senegalês Cheikh Anta Diop (1923–1986) em Nations nègres et culture: De l’antiquité nègre égyptienne aux problèmes culturels de l’Afrique Noire d’aujourd’hui (Nações Pretas e Cultura: Da antiguidade preta egípcia aos problemas culturais da África Negra de hoje, de 1954). Saber a história negra da cerveja é importante para que a comunidade que hoje busca se estabelecer como profissional do setor tenha espaços menos inóspitos. Fato: a Europa garantiu a modernização dos processos fomentada por investimentos, legislações, interesses mercantilistas e toda a sua trajetória de conquistas – que trarei aqui como invasões –, bem como fundou o que hoje nomeamos como escolas: Alemã, Belga e Inglesa. Contudo, o saber já existente no território africano e asiático (ásia ocidental) para os processos de fermentação; a escravização, que fundou uma ideia de capitalismo; e o grande fluxo migratório garantiram a circulação dos saberes e fazeres. Ao atravessarmos o Atlântico temos no século XVII, a cerveja introduzida nos Estados Unidos, e, no século XX, ela se torna um negócio extremamente lucrativo para o país.
Reconectar a história fissurada nos alimenta e nos faz buscar o que também é nosso. Sendo assim, te convido a ler o texto de James Bennet II, “We’re Reclaiming Beer Because It’s Ours”, algo como “Estamos reivindicando a cerveja porque ela é nossa”, em que o autor junta peças e conta a história da cultura cervejeira nos Estados Unidos, nascida com a chegada dos europeus, fortalecida com a mão de obra escravizada de pessoas retiradas da África e alimentada pelos saberes dos indígenas daquela terra. Um dos exemplos citados sobre a apropriação de tais saberes é o uso da essência de abeto no lugar do lúpulo, para garantir o amargor e a conservação da cerveja.
O abeto naquela época já fazia parte dos conhecimentos indígenas sobre as ervas. Adaptações, características que impulsionam até hoje os modos de fazer cerveja no território africano. Em Ruanda, a Kweza, microcervejaria gerida por mulheres e que tem a ruandesa Fina Uwineza como fundadora, usa os conhecimentos tradicionais aliados ao modo de fazer atuais para marcar presença no negócio de cerveja artesanal local – o sorgo e a banana são ingredientes que estão em suas receitas. Na África do Sul é Apiwe Nxusani-Mawela a responsável pela criação da Tolokazi, cervejaria que também usa ingredientes tradicionais em suas receitas. A cerveja faz parte da cultura de vários países africanos: no Quênia os Nandi bebem suas produções de maneira coletiva, usando de longos canudos para tomá-las; na RDC – República Democrática do Congo, é a banana a base de produção da Kasiksi; para o povo Xhosa, migrado da região dos Grandes Lagos (África Central) para o que hoje conhecemos como África do Sul, no Cabo Oriental, fabricam de maneira tradicional uma cerveja com base de milho, sorgo e água, a Umqombothi, e seu papel inclui ritos culturais, sociais e espirituais. Celebrações, cerimônias de iniciação, festas, casamentos funerais imbizos (reuniões tradicionais), são momentos em que a tradicional cerveja é parte importante da cultura.
Robert Kenzo Falck e Elizabeth Kyoko Wada, resumem os significados da história do consumo da cerveja de maneira precisa: A comensalidade, como dimensão da hospitalidade, é a partilha de comida e bebida, universalmente celebrada em culturas e religiões ao redor do globo. A cerveja, presente nos momentos de fruição, socialização e lazer, transpõe esses conceitos modernos de consumo por meio do consumo simbólico de algumas variantes arcaicas, como as cervejas de sorgo e painço africanas e o cauim indígena sul-americano – tecnicamente, ambos cervejas. O consumo ritualizado dessas bebidas oferece pontes interessantes com conceitos de hospitalidade e comensalidade, permitindo estabelecer relações entre o ritual e a dádiva, pedra filosofal da hospitalidade. Características de hospitalidade e comensalidade no consumo coletivo de cervejas: cerveja tradicional africana e cauim – Revista de Alimentação e Cultura das Américas (RACA) – 2022.
Cumprindo papéis tradicionais e atuais, a cerveja é parte integrante de uma longa história de consumo e o continente africano tem papel precursor nesta trilha. Talvez você se pergunte ou me pergunte: ok, mas se hoje pensarmos na larga produção industrial, que mantém uma perspectiva de produção que atende bilhões de consumidores no mundo, qual o sentido de buscar vínculos em passados remotos? Eu te responderia: há sempre um novo sabor a ser criado! A cerveja atravessou milênios e é a segunda bebida mais consumida no mundo, ficando atrás apenas da água. Grandes indústrias estão presentes em todos os continentes. Entretanto, a produção industrial em larga escala pasteuriza os gostos e o ser humano é naturalmente curioso pelo novo.
Sobre a criatividade e a importância histórica para a atualidade, eu te conto nos próximos encontros.
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