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Por trás do nome Chong Kwong existe uma mulher que aprendeu a colar pedaços de identidades, histórias, línguas e geografias. Com o este álbum Dinastia, a artista entrega uma afirmação de quem é, do que carrega e para onde quer ir.
"O 'Soweto' vive dentro de mim”, disse, ao responder à pergunta que abriu a conversa. Mais do que um ponto de partida simbólico, era o coração da narrativa — a forma mais autêntica de perceber de onde vem Chong Kwong, ou melhor, onde começa a sua história, que ganha corpo na quarta faixa do álbum.
Crescida na Cova da Moura e na Damaia, Chong vê esses lugares como o seu próprio Soweto – sigla para South Western Townships e refere-se a uma grande área urbana situada na periferia sudoeste de Joanesburgo, na África do Sul. É um símbolo histórico e cultural importantíssimo no contexto da luta contra o apartheid. “É uma homenagem à minha família, às minhas raízes, aos que já foram, aos que estão cá, aos que não conseguiram sair do Soweto, aos que conseguiram sair, mas o Soweto nunca sai de ti.”
O álbum Dinastia começou a ser pensado há cerca de dois anos, mas só agora ganha forma. O adiamento, conta, deveu-se sobretudo à pandemia, que a forçou a repensar todo o processo criativo. Teve de repensar tudo: as músicas, os lançamentos, as intenções por trás de cada faixa. Foi um processo de filtrar o que ainda fazia sentido e deixar para trás o que já não ressoava consigo. Algumas canções ficaram pelo caminho, outras ganharam uma nova forma. A pausa, embora frustrante, revelou-se inevitável e, no fim, certa.
ançar este disco representa mais do que uma nova fase artística. É um statement pessoal. Dinastia fala da procura por identidade, da aceitação das múltiplas origens - Timor, São Tomé, Cabo Verde, Moçambique e China. “Dinastia é para quem sente que não pertence a lado nenhum. Eu demorei muito tempo a sentir-me confortável na minha pele. Dinastia representa a certeza de quem eu sou. Aceitação. Legado. Presente, passado e futuro”, e quando se é mulher no hip hop, essa procura de lugar ganha outras camadas. “Ainda existe essa cena de não acreditarem que as mulheres escrevem as suas letras. Há muitos homens que assumem que o que a gente canta foi escrito por alguém. Mas para mim, real baddies, real rappers têm de ser donos da própria caneta. Senão, és o quê? Intérprete?”, questionou Chong.
Chong fala com firmeza, sem rodeios. Para ela, fazer rap é incorporar a própria história, e tudo o que fuja disso soa a falso, a mera representação. No universo onde se move, entre o hustle do dia a dia e a vontade de concretizar os seus projetos, há uma linha que não cruza: a de trair a essência.
“Eu controlo aquilo que consigo produzir. Posso não ter big budget [grande orçamento], mas tenho ownership [controlo] da minha cena. Isso não significa que não ouço a minha equipa. Mas tenho de me sentir confortável com cada decisão”, acrescentou.
“Põe uma pedra na coroa da mulher que está ao teu lado”
Chong Kwong
A questão da autoria feminina no rap é, para Chong, uma porta para algo maior: o direito de existir no espaço com legitimidade plena. O hip hop foi, desde o início, a casa que a acolheu, o espaço onde se sentiu parte de algo maior. Mas, com o tempo, percebeu que o lugar reservado às mulheres era limitado, muitas vezes restrito a cantar refrões ou aparecer nos videoclipes. E foi aí que entendeu que teria de lutar por mais, por um espaço real, com voz própria e protagonismo.Essa visão alargada reflete-se também no tema da sororidade. Chong acredita que há espaço para todas e critica a ideia de que só uma mulher pode estar no topo.
Para Chong, não há espaço para rivalidades entre mulheres. Ver mulheres a "bifarem" entre si é, como diz, “muito feio” e “low” [baixo]. Acredita que há vários reinados e tantas histórias por contar quantas vozes existirem. Em “Queen Size”, uma das faixas do álbum, deixa isso claro: é um apelo à partilha de espaço, de reconhecimento e de poder. “Põe uma pedra na coroa da mulher que está ao teu lado”, lança, numa espécie de manifesto de união e sororidade e ainda acrescenta que "O mercado é suficiente. Só que há uma ideia de que só pode haver uma rainha. Isso não existe com os homens”.
Entre rimas e batidas, Dinastia também fecha ciclos pessoais. Faixas como High e Villain espelham relações tóxicas, vividas intensamente e agora encerradas. "É o fim, mesmo. Foram relações intensas, mas percebi que algumas pessoas já não estavam a fazer sentido na minha vida. Às vezes habituamo-nos à toxicidade. Mas Dinastia trouxe essa clareza: afastar para estar intacta com a minha arte.Trouxe-me clareza. Afastar pessoas que já não estavam a fazer sentido foi essencial para proteger a minha arte”.
A pergunta “Quantas vezes levaste e juntaste as mãos e disseste amen?” é inspirada em “Legacy”, a segunda faixa do álbum, e toca num ponto sensível da vida artística. Chong não hesita na resposta: foram muitas. Muitas vezes se viu a juntar as mãos em silêncio, em busca de força ou de algum sinal de que estava no caminho certo. Ser artista, diz, é uma das experiências mais incompreendidas. “O público não tem noção de quão difícil é ser artista”, confessa. Lida-se com tudo ao mesmo tempo: a síndrome do impostor, a ansiedade, o medo constante do amanhã. “Como é que as tuas músicas vão ser recebidas? Será que vais conseguir fazer mais música?” A pressão não é só criativa, é existencial. E em Portugal, ser artista é ainda um desafio maior.
Na faixa “Tou Okay”, Chong fala do sucesso como um processo e não como um destino. Quando lhe perguntamos onde está nesse caminho, a resposta surge com uma certeza desarmante: “Estou no sítio certo”.
Para ela, o sucesso deixou de ser uma meta distante. Já não é algo a alcançar, mas sim algo que se vive, aqui e agora. “O sítio certo é exatamente onde eu estou". Durante muito tempo, pensou que sucesso era um ponto fixo, uma conquista definitiva, mas percebeu que essa ideia só nos faz correr atrás de uma cena invisível, sempre fora do alcance, sempre insuficiente, mesmo quando se chega lá.
Hoje, escolhe celebrar o presente, mesmo com as dificuldades. Dar graças pelo hustle, pelas pequenas bênçãos que muitas vezes passam despercebidas. “Estar onde estás, ver a flor que está ali, sentir o cheiro do perfume no pescoço de alguém, comeres uma comida que te sabe bem, estares com um amigo, dares um abraço.” Coisas simples, mas cheias de significado.
📸:Eddie Pipocas/BANTUMEN
No universo de Chong Kwong, a luta é constante, interna e externa, como um combate coreografado entre Bruce Lee e o amor em equilíbrio de Ying e Yang. E nesse mundo, Vanessa e Chong Kwong são a mesma pessoa? A resposta foi direta: são. “São exatamente a mesma pessoa.”
Crescida nos anos 90, entre Mortal Kombat, Tekken, Bruce Lee e Jackie Chan, Chong viu nessas figuras referências de força, foco e resistência. Também Muhammad Ali faz parte desse panteão pessoal de lendas que moldaram o seu imaginário. “O Bruce Lee é quase uma homenagem a muitas das lendas que eu admiro”, confessa. E, nessa mitologia pessoal, nasce a ideia de uma heroína, não uma figura distante, mas alguém com falhas, força e coração.
A Vanessa duvida, pondera, questiona. A Chong avança, “let’s get it” [bora]. E é nesse contraste que encontra o equilíbrio. Essa dualidade entre dúvida e ação, vulnerabilidade e força, é o que torna o seu percurso tão genuíno. “Toda a heroína tem esse lado humano”, diz. E no fim do dia, por detrás de todas as camadas, são a mesma.
E Chong Kwong é isso mesmo. Um nome de família. Um apelido que se perdeu ao longo do tempo, mas que carrega consigo uma história silenciosa. A artista conta que nunca tinha partilhado esta parte da sua vida: o apelido original, Chong Kwong, foi retirado porque o seu avô acreditava que era “demasiado chinês” e temia pelo bullying que os filhos poderiam sofrer na escola. Por isso, ao longo das gerações, o nome foi sendo deixado para trás.
📸:Eddie Pipocas/BANTUMEN
Mas Chong sentiu necessidade de o resgatar. De assumir essa parte da identidade que tinha sido silenciada. “Faz parte da nossa história”, diz. A decisão dos seus antepassados foi compreensível no contexto em que aconteceu, e ela respeita isso. Mas, para si, recuperar o nome foi um gesto de afirmação. “Fui buscá-lo do género, ‘não quero saber. Isto também sou eu’.”
Ter completado este álbum, depois de anos a amadurecer ideias, é uma conquista. “Sinceramente, o que mais me orgulha foi tê-lo feito. Fazer um álbum é muita coisa”.
No fim, tudo se resume a legado. E Dinastia é isso mesmo, um manifesto pessoal, um grito artístico, uma carta de amor às origens. Um álbum que, mais do que música, é território. “Se eu me for embora amanhã… está feito”, diz-nos a artista.
Muito ainda se poderia dissecar sobre este primeiro voo discográfico de Chong Kwong, mas uma Dinastia não nasce da noite para o dia. Enquanto o tempo faz o seu trabalho, deixem-se levar pelo álbum e assistam à entrevista completa aqui em cima.
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