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Uma atriz, um DJ e um empreendedor entram num bar… podia ser o início de uma anedota, mas não. Foi a repetição de um apelo. “Nasci mulher, negra, numa sociedade branca que não me espelha. Que só se lembra de [nós] quando é negativo ou nos casos que se contam pelas mãos de pessoas que rasgam a estratosfera”. Esta frase não é só testemunho. É ferida aberta. Não só na pele de Cláudia Semedo mas de todos os que sentem as mesmas crostas.
É também memória persistente de um país que se quis reinventar na era pós-colonial, mas que ainda não aprendeu a ver-nos como inteiros — apesar dos passos largos já dados nesse caminho. Em Lisboa e arredores, cidade de promessas e pedras calcetadas, os corpos negros continuam a lutar por espaço — não só físico, mas simbólico. E o que pedem é simples: poder existir com descanso, com dignidade, com continuidade. Sem que sejam constantemente reduzidos às rememórias que a história insiste em impor.
Cláudia Semedo, DJ Marfox e Mikas juntaram-se a Paulo Pascoal num dos auditórios do Centro de Arte Moderna, na Gulbenkian, e colocaram o tema no centro do palco. Com percursos distintos, mas vozes sintonizadas, defenderam a urgência de as cidades criarem espaços seguros para todos os tons da negritude — uma necessidade que é muito mais do que um direito. Numa cidade que se apresenta como um mosaico de culturas, garantir essa segurança é, acima de tudo, um dever.
Falamos de espaços de escuta, de diálogo, de partilha e de aprendizagem. Onde podemos ser mais do que as nossas raízes e a intensidade da nossa melanina. Onde podemos além dos traumas que nos acorrentam e dialogar sobre o que nos move. Falo de quem pega nas ruínas e constrói templos onde antes havia silêncio. Mikas fez disso sua missão quando chegou a Lisboa, nos anos 80. “A cidade era como uma tela em branco”, detalhou. Nas décadas que se seguiram, estabeleceu-se como um empreendedor e agente, disseminador das artes e da cultura – criador de espaços nos quais se revê e descansa e dos quais espera que outros tantos consigam sentir e fazer o mesmo.
Falamos também da batida da Príncipe, que transformou o som da periferia -- rotulada como “lataria” ou “lixo” – em arte global. “A Príncipe nasce disso. Da necessidade de encontrar um espaço que nos celebrasse”, reparou o produtor são-tomense.
Foi o próprio quem assinalou: mesmo quando surgem espaços de disrupção, cedo são engolidos pelo sistema. Lembrou o Dia de África, que já passou pela Expo, por Algés e pelo Campo Grande, mas que “hoje já não existe”. Ou os Jardins de Verão, que nos primeiros dois anos moveram multidões — de Loures a Odivelas, da Linha de Sintra à Margem Sul — e que, hoje, viram esmorecer a ambição que os fazia pulsar. A conclusão é clara: os projetos florescem uma vez, talvez duas — e depois morrem. E como diz Mikas, “a dificuldade é maior quando não há repetição.” A cidade celebra-nos esporadicamente, mas continua incapaz de nos sustentar com continuidade.
E se o emprendedor acredita que parte disso acontece por não haver partilha entre agentes culturais que criem “um cordel em torno da cidade” – um fio de continuidade, onde os projetos deixam de ser ilhas, e passam a ser arquipélagos – Cláudia Semedo contrapõe: essa responsabilidade não pode recair apenas sobre os nossos ombros. “Não quero que o ónus seja colocado em nós”, defendeu a atriz.
Aos olhos da artista, é tempo de as estruturas se responsabilizarem. De haver uma educação para a inclusão que não reduza os corpos negros à sua dor ou à sua diferença. “Se só ficamos limitados a um tema que é a nossa pele, então esvaziamo-nos”, e por isso, o apelo é direcionado às instituições, publicas ou privadas. Reinventem-se, repensem-se. Não basta abrir portas. Não basta contratar uma curadora negra para um mês temático – muitas vezes associado às dores do passado – é preciso partilhar o poder de criação, de permanência. A continuidade depende disso. Dentro e fora da Lisboa Criola que sonhamos um dia existir.
Os apelos que ecoaram pelo auditório da Gulbenkian não são novos. E há quem diga que falar de tudo isto é cansativo. E é – os próprios oradores assim o admitiram. Mas mais cansativo ainda é não ver o virar da página permanente. O que se quer é espaço para ser múltiplo, para ser inteiro. Para que as rememórias deixem de ser apenas dor e passem também a ser celebração, invenção e futuro. É verdade que o corpo negro carrega histórias que não pediu. Mas também traz sementes. E Lisboa só será verdadeiramente cidade quando essas sementes conseguirem germinar em descanso.
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