"Se não formos nós a valorizar a nossa cultura e os nossos artistas, ninguém o fará", Daniel Nascimento

February 23, 2025
daniel nascimento entrevista

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Daniel Nascimento construiu uma carreira singular na televisão e na música, tornando-se uma figura reconhecida do entretenimento em Angola e Portugal. Desde cedo, demonstrou um talento natural para a comunicação, o que o levou a tornar-se um dos primeiros rostos negros na televisão portuguesa no início dos anos 2000, onde se estreou, na SIC, no programa “Noites Marcianas”. Conhecido pela sua curiosidade e coragem, acabou por se tornar referência para muitos jovens negros que, até então, não se viam representados na televisão nacional. O seu estilo irreverente e capacidade de envolver o público deram-lhe lugar no panorama televisivo, fazendo com que entendesse que o seu papel poderia passar, também, por abrir portas a novas gerações de comunicadores afrodescendentes.


Esse foi um dos motivos que o fez regressar a Angola, país de onde é natural. Apesar do reconhecimento em Portugal, o apresentador sentiu que poderia contribuir de forma mais ativa para a construção do panorama mediático angolano, onde ajudou a edificar um dos projetos televisivos mais conhecidos do país e que se mantém ativo até hoje.


Ao regressar a Angola, Daniel encontrou um mercado televisivo em crescimento, mas ainda com desafios estruturais significativos. A sua experiência tornou-se uma peça-chave na construção do canal ZAP Viva e o seu papel foi muito além da apresentação: esteve diretamente envolvido na conceção, desenvolvimento e consolidação da identidade do canal, contribuindo para o profissionalismo e modernização da televisão angolana. Ajudou a lançar o ZAP News, um programa inovador que rapidamente se tornou num fenómeno de audiência. “Fui convidado para um projeto que ainda não existia e transformámo-lo no que se tornou. Quando o projeto estava solidificado, decidi sair para procurar novos desafios", recorda. O ZAP News não apenas trouxe uma nova dinâmica ao jornalismo de entretenimento em Angola, como também serviu de plataforma para promover e valorizar talentos locais. Sob a sua liderança, o programa atingiu recordes de audiência e consolidou-se como um dos conteúdos televisivos mais influentes do país.

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“Nós passamos demasiado tempo a discutir e pouco tempo a resolver”

Daniel Nascimento

Além do sucesso televisivo, Daniel esteve envolvido na formação de novas gerações de comunicadores. "Era fundamental não apenas criar um programa, mas também formar pessoas. O que construímos no ZAP Viva teve impacto direto na forma como a televisão em Angola evoluiu", afirma. Muitos dos jovens talentos que passaram pelo canal destacam a sua mentoria como um fator determinante para o seu crescimento profissional.

Depois de consolidar a sua influência na televisão angolana, e ainda antes regressar a Portugal, viveu uma temporada no Dubai. A decisão de voltar a Lisboa não foi tomada de ânimo leve, mas surgiu como uma oportunidade natural. "Quando regressei, percebi que a minha trajetória em Portugal foi positiva. O meu trabalho nunca foi esquecido e a receção foi imediata", afirma.

O seu regresso foi marcado pela entrada na CMTV, onde faz parte do painel de comentadores do programa “Noite das Estrelas”, um espaço de comentário social apresentado por Maya. Não esconde que, para alguns, a escolha do canal gerou curiosidade e até alguma controvérsia, mas mantém-se firme na decisão que tomou. "A minha dignidade e experiência estão naquilo que eu faço, independentemente do lugar. Eu sou guiado pelo trabalho e não por perceções externas de prestígio", sublinha. 

Hoje, com uma visão mais madura e consciente do seu papel, o apresentador acredita que a sua presença na televisão portuguesa continua a ser relevante e necessária, sobretudo porque afirma ter encontrado um cenário igual, ou pior, do que aquele que deixou. "Dizem que somos um país diverso, mas onde estão os negros nas televisões? Nos cargos de decisão?", questiona. Para ele, a representatividade real ainda está muito aquém do que se proclama. "Quando volto e olho à minha volta, vejo que está pior do que estava.”

Entende que a visibilidade não pode ser apenas simbólica. "Se continuarmos a ser apenas usados para ilustrar diversidade, sem estarmos realmente nas posições de influência, nada muda de facto", alerta. A ausência de afrodescendentes em cargos estratégicos na comunicação social portuguesa continua a ser um problema estrutural que precisa de ser discutido e resolvido”, pontua acrescentando criticas àquele que foi o discurso do Presidente da Câmara da Lisboa, Carlos Moedas, durante a edição de 2023 da PowerList BANTUMEN 100. "Dizem que os imigrantes trazem cor à cidade, mas onde estamos nós nas mesas de decisão?", reflete. Para o apresentador, é necessário que se passe das palavras à ação através de políticas concretas e de um maior envolvimento da sociedade em geral para reverter o cenário.

A falta de negros em posições de destaque na comunicação social reflete, segundo Daniel, um problema estrutural. "Muitas vezes, somos incluídos apenas para preencher uma cota simbólica, sem verdadeiro impacto nas decisões estratégicas", afirma. O apresentador destaca que a mudança não depende apenas dos media, mas também de um compromisso social mais amplo. "Enquanto não houver um esforço sério para garantir diversidade real – e não apenas diversidade cosmética –, a situação continuará estagnada”, afirma acrescentando que um dos grandes desafios é garantir que a representatividade seja efetiva, promovendo mudanças reais nas narrativas mediáticas.

Admite que a falta de políticas concretas para incentivar a inclusão torna a mudança ainda mais difícil. "Se queremos diversidade, temos de criar mecanismos que possibilitem a ascensão de profissionais negros em todas as áreas da comunicação social. Caso contrário, continuaremos a ver as mesmas dinâmicas de exclusão perpetuadas", alerta.

“O dinheiro não é tudo. Se fosse, Angola já estaria noutro patamar”

Daniel Nascimento

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Instagram Daniel Nascimento 

Para Daniel, é fundamental que os media reflitam a realidade multicultural do país e sirvam como espaço de representação de todas as vozes. "O público negro em Portugal consome televisão, rádio e jornais como qualquer outro, mas raramente se vê representado nas decisões que moldam a informação e o entretenimento", pontua. Entende que é essencial haver uma mudança cultural e institucional para que a inclusão aconteça de forma significativa e sustentável.

Neste contexto das diásporas, defende que a comunidade negra precisa de se organizar melhor para garantir uma presença mais forte nos diferentes setores da sociedade. "Os brasileiros fazem isso muito bem. Ajudam-se, criam redes de apoio, puxam uns pelos outros. Nós passamos demasiado tempo a discutir e pouco tempo a resolver", lamenta. 

O apresentador de TV e artista entende que o progresso é uma combinação de talento e estrutura. Olhando para a comunidade negra no geral, admite que as questões que pontua na música e nos media podem ser extensíveis a outras áreas. "Não basta termos músicos e apresentadores. Precisamos de advogados, economistas, empreendedores e líderes comunitários visíveis e influentes. A representatividade real acontece quando temos poder de decisão", revela. Ainda que a capacidade financeira seja tida como principal fator de desenvolvimento, Daniel aponta a falta de visão como problema maior. “O dinheiro não é tudo. Se fosse, Angola já estaria noutro patamar. O problema é a falta de um projeto consistente e de uma visão de longo prazo. Precisamos de nos estruturar melhor, criar redes de apoio e perceber que o sucesso individual só tem impacto se também impulsionar o coletivo", conclui.

A opinião firme que tem sobre as questões de representatividade é fruto do conhecimento de duas realidades que, embora distintas, foram a base e moldaram a sua paixão pela comunicação. Mas desengane-se quem pensa que a vida do apresentador passa apenas pelos holofotes televisivos. Embora tenha consolidado a sua carreira na televisão, a música esteve sempre presente na sua vida e isso fê-lo, numa fase posterior da carreira, enveredar pelo meio e explorar novas possibilidades de afirmar o seu talento. 

“A música é a minha identidade. Semba e kizomba são a minha praia", afirma. Autor de temas como “Kazukuta” e “ Karma”, assume que o envolvimento com a televisão acabou por colocar a música em segundo plano, algo que pretende contornar ainda em 2025. ”A televisão consome muito tempo, mas isso vai mudar. Tenho um novo álbum pronto para sair este ano”. O lançamento do single “The Bungle” é a materialização desse desejo e a reafirmação do seu compromisso com a música.

Apesar do amor pela música, não esconde as dificuldades que o setor enfrenta, sobretudo em Angola. "O Brasil exporta a sua cultura, Cabo Verde também. Angola não. Tivemos momentos isolados com Eduardo Paím, Bonga, Anselmo Ralph, C4 Pedro e Matias Damásio, mas nunca houve uma estratégia estruturada de internacionalização", critica. Para o artista, o talento evidente no país está em contraponto com a falta de investimento e de uma estratégia bem definida, que assume dificultar a projeção dos artistas angolanos além-fronteiras.

Acredita que a solução passa por mais investimento e organização. "Se não formos nós a valorizar a nossa cultura e os nossos artistas, ninguém o fará por nós", avisa. Além disso, defende que é essencial criar uma indústria musical robusta, capaz de competir a nível global. A falta de um circuito estruturado é apontado como um dos fatores que não permite aos artistas angolanos viverem exclusivamente da música. "Em Angola, temos talentos incríveis, mas falta-nos uma indústria que permita a profissionalização real. Não basta gravar música, é preciso um ecossistema que apoie a distribuição, a promoção e a monetização sustentável", afirma. Para o cantor e apresentador, a criação de festivais internacionais, a abertura de mais espaços de performance ao vivo e a profissionalização das editoras são medidas essenciais para o crescimento do setor. Mas, mais importante que isso é a importância da identidade cultural na música. "A nova geração tem de perceber que podemos modernizar o nosso som sem perder a essência. Há uma riqueza enorme na nossa música tradicional que pode ser reinventada para atingir um público global", destaca. Daniel não esconde que é essencial que os artistas angolanos invistam na autenticidade e na inovação, criando um som distintivo que represente a verdadeira identidade do país.

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