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“Eu já estou há mais de 10 anos produzindo e tocando”, diz Carlos do Complexo no início da videochamada no final de julho. “Eu sempre amei fazer música desde menor. Nasci no Morro do Urubu, no Rio de Janeiro, então a gente não tinha muito acesso às coisas quando eu estava começando, por isso o processo foi um pouco mais lento até eu começar de fato a produzir”. Essa falta de tecnologia não impediu que ele colocasse em prática os seus planos. Pelo contrário, serviu de incentivo para que seguisse em frente. Não demorou muito para que começasse a misturar funk com eletrônica, rap, trap e R&B. “Eram coisas da minha vivência. Depois comecei a produzir artistas e sigo até hoje fazendo o meu trabalho autoral”.
Um dos primeiros a inserir o funk em outros elementos da música eletrônica, principalmente no rap, Carlos não se considera criador de uma tendência que ganhou destaque mundial com o Sango. Porém, concorda que quando começou, na metade da década de 2010, poucas pessoas faziam esse tipo de fusão, que tem sua base alicerçada em batidas carregadas, sendo encorpada por samples de funk. Naquele período, a estética foi ignorada ironicamente. Hoje, ela estrutura grande parte das composições do mainstream brasileiro. Para o produtor e DJ, se houver um responsável por abrir os caminhos, o nome dele é Cojaque.
“Ele é de uma comunidade do Rio Grande do Sul. Um moleque preto com todas as dificuldades de morar no Sul, com a maioria sendo pessoas brancas e ele fazendo música”, observa. "Acho que hoje nem lança mais nada, mas conseguiu cravar uma bandeira porque muita coisa veio do que ele fazia”.
“Eu precisava transformar essa raiva em alguma forma de arte, porque se eu ficar com essa raiva dentro de mim só vai me deteriorar”
Carlos do Complexo
Ouvinte de funk e assíduo frequentador dos bailes na adolescência, Carlos do Complexo lembra que a primeira música que começou a estourar no Soundcloud, chamando a atenção dos “gringos” (como os brasileiros chamam os estrangeiros, principalmente da Europa e EUA), foi uma que misturou jazz com funk. “Geralmente a galera usa jazz pra fazer sample de rap”. Aquele foi o sinal de que precisava experimentar ainda mais. “A galera começou a enxergar outra possibilidade e talvez desmistificar um pouco essa coisa da barreira, tipo: o jazz fica ali no canto do jazz, o rap no seu canto e o funk aqui”. Assim, mostrou que, apesar de distintos, esses gêneros se conversam porque fazem parte da mesma árvore genealógica – de origem negra – e podem se complementar.
O Soundcloud, de certa forma, foi responsável por expandir o alcance desses experimentos. Na era de ouro, entre 2008 e 2017, uma série de produtores conseguiu se destacar internacionalmente pela facilidade de disseminar música na plataforma de forma gratuita. Naquele momento, a média de usuários chegava à casa de 15 milhões. Foi ali que o coletivo Soulection ganhou destaque, assim como Sango, SPZRKY, Esta, Ta-Ku, DKVPZ (Deekapz), Tropkillaz, Mafalda, Shavoso e o próprio Carlos do Complexo.
“Era o nosso portfólio, mano”, diz. "Hoje em dia a gente tem o Spotify, que é onde conseguimos chegar em mais pessoas porque nem todo mundo usa Soundcloud. Mas teve uma época do ápice que muita coisa foda nasceu dali, daquele empenho dos produtores upando música todo dia, toda semana... era onde chegava na galera global. Foi onde a gente viu que eu, do Morro do Engenho, conseguia postar uma música e o mano lá na Alemanha ia ouvir e curtir o bagulho. Assim que rolou os meus primeiros lançamentos, fiz um EP por um selo francês e outro da Bélgica porque eles ouviram meu som e quiseram lançar. Eu não consigo imaginar de outra forma se não fosse o Soundcloud ou Bandcamp – que são lugares independentes”.
É interessante observar que, fora do Brasil, o funk tem conquistado cada vez mais os ouvidos do público, músicos, DJs e quem produz. Porém, dentro do país ainda não conseguiu entrar no nicho tradicional da música eletrônica. O assunto sempre volta à tona quando o espaço desse gênero é reivindicado dentro desse território. Mesmo com as tentativas de entrada em festivais e playlists relacionadas, o acesso raramente é concedido. “É foda que a galera sempre banaliza muito o funk e coloca naquele lugar preconceituoso da vulgaridade, da não inteligência por serem pessoas pretas e pobres que estão fazendo”, reflete Carlos, observando que o jazz, hoje considerado rebuscado e de elite, também não foi muito bem recebido nos meios culturais. “Era considerada música de vagabundo... e hoje em dia parece que o jazz é feito e consumido só por pessoas da alta sociedade que têm muita grana e é majoritariamente branca. Então, pode ser que daqui a alguns anos o funk vire essa porra também, tá ligado!? A gente não sabe”.
©Julia Pavin
©Julia Pavin
Em 2023, Carlos do Complexo colocou no mundo o álbum "No Tiengas Miedo" (NTGM), contendo 10 faixas. Na sequência, achou que seria legal chamar uma galera da música eletrônica para deixar essas músicas mais pista, porque as versões originais seguiam uma linha mais densa. Assim, fez alguns remixes e chamou outros artistas para assinarem as demais. “Deu um trabalho do caralho pra juntar todo mundo. Foi praticamente um ano de construção dessa segunda parte. No total, eu acho que tem quase 3 anos, desde a primeira parte”.
Antes de fazer o álbum, ele diz que desenvolveu um processo maluco de primeiro escrever o nome de cada uma das músicas, colocando ao lado quem gostaria que estivesse no feat. “Montei sem música, sem nada”. Essa é a primeira coisa que faz antes de fazer o roteiro do conceito e a construção. “Aí, eu vou tentando, trocando ideia, tem nome que sai, tem nome que entra... mas por muita felicidade minha nesse álbum eu consegui quase todos”, observa. “Acho que só dois nomes que eu tinha colocado que não rolaram”. No quesito beats, cada convidado fez o seu próprio com base no direcional de Carlos. “Costumo fazer um beat pensando em cada pessoa. É um álbum de 20 faixas, considerado grande, mas tem muita coisa plural, tem vários universos".
Comparando o original com o remix, Carlos do Complexo diz que a primeira versão tem muito mais coisas sentimentais. Também explora a sensualidade dos ritmos latinos, como o reggaeton. Na segunda parte, o direcionamento vai para algo que se relaciona com o estilo clubber, para ouvir dentro do clube, na pista. Quando começou a fazer esse trabalho, ele tinha acabado de perder o irmão. Estava com vários sentimentos confusos, mas o principal deles era de raiva.
“Eu precisava transformar essa raiva em alguma forma de arte, porque se eu ficar com essa raiva dentro de mim só vai me deteriorar”, ressalta. “Então, eu pensei: o que me remete à raiva? E nessa loucura de pensamento, eu cheguei à conclusão de que essas músicas clubber pesadona me trazem esse sentimento de querer socar a parede, de querer sair correndo e gritar. Por isso, fez muito sentido pra mim mergulhar nesse universo. Agora vai ser uma parada mais agressiva e eu preciso descontar a minha raiva, e isso precisa ser na música. Não posso fazer outras paradas, senão fudeu. Tem o lado sombrio do álbum também, porque desde o início eu usei referências de filme de terror... me baseei muito em coisas afro-surrealistas, que exploram muito o terror, a fronteira entre o real e o irreal, entre o que sou e o que não sou, criando essa confusão. Mas em termos de sonoridade é porrada pra ouvir alto pra caralho e sentir o corpo tremendo”.
"Não sou aquela pessoa que fica com fone de ouvido o tempo todo, mas a música me persegue em todos os momentos"
Carlos do complexo
Sempre existe uma curiosidade em saber como nasce uma música, ainda mais quando é instrumental. Pergunto para Carlos como surge a inspiração para chegar a um som específico. “Ele meio que só acontece”. Mesmo acontecendo, existe uma linha de raciocínio, de sentimento que ele pretende passar com aquela produção. Porém, não se considera tão metódico. “Eu gosto de experimentar muitas coisas”, afirma. "O meu processo foi muito experimental e aí tem processos que eu fico só testando até uma coisa dar certo, indo por caminhos não óbvios”. Um exemplo disso é uma das produções que estava trabalhando há vários dias, mas a inspiração não bateu. Então, abriu o TikTok e começou a samplear alguns vídeos. “Foi uma coisa diferente que despertou outro caminho e me deu inspiração, mas não era algo óbvio de começar colocando um piano, depois uma bateria... às vezes eu ia explorar esse outro lado inesperado pra ver o que saía”.
Além de seus autorais, o produtor também assina para outros artistas. Entre a primeira e a segunda opção de trabalho, fazer suas próprias coisas parece ser mais fácil, já que não precisa fazer aprovações ou ouvir pitacos de outras pessoas. A liberdade é maior, porém, quando vai para o estúdio produzir para outra pessoa, tenta esquecer essa lógica para agradar quem o contratou. “Tento pensar no projeto do artista, gosto de estar junto na construção e não apenas mandar um beat. Trocar ideia para criar uma narrativa, ouvir o artista, ver se faz sentido aquela ideia”.
Se tivesse que escolher entre fazer remixes e produção original, ficaria com a primeira. “Não porque seja fácil, mas porque me divirto muito, é muito foda. Quando tem algo pronto, acho muito desafiador pegar um som e ressignificar. Eu ouço músicas que curto muito, que fazem parte da minha construção enquanto pessoa, e aí me pergunto: e se fosse eu fazendo isso aqui? E se tivesse outro beat, outra levada? Isso me faz dar uma importância ainda maior para a obra. Isso me faz fazer remix e ressignificar a música e a própria obra também”.
Ele destaca que não são todas as músicas que permitem tal liberdade. O maior desafio é transformar e continuar sendo respeitoso com a criação original. Além disso, não acha interessante fazer o mesmo som que já foi feito, “gosto de experimentar muitas coisas... como eu sou DJ, gosto de colocar umas paradas que vou poder tocar na pista. Gosto de me testar fazendo coisas que nunca imaginei que faria, porque se eu fizer uma coisa que eu já faço, já fiz, não tem graça”.
Quando está tocando como DJ, o processo é diferente de quando produz, afinal, ele não tem controle total da pista. “Eu estou testando coisas novas toda hora porque tem uma galera na minha frente que eu não conheço, eles não me conhecem e eu preciso testar essas coisas com eles pra ver se funciona. Quando estou na produção, a música está rolando dentro da minha cabeça, mas também de outra pessoa que não conhece a minha vivência, não sabe de onde eu vim, quem sou eu... e eu preciso traduzir aquilo que estou sentindo pra aquela pessoa da pista. Pra mim, essas são as duas maiores diferenças”.
Por ser um DJ que também toca, Carlos do Complexo diz que o vinil é importante, porém, não é sua prioridade nas apresentações. “Pra mim, não é uma obrigação, é só mais uma ferramenta”. Ele destaca que isso pode soar meio esnobe, já que algumas pessoas acabam colocando o DJ de vinil como superior. “Tem quem diga que, se não é DJ de vinil, então você não é DJ de verdade. Mas, no final das contas, não vejo dessa forma. Pra mim, o que mais importa é a troca com a pista”.
Em constante pesquisa para encontrar novas referências e misturá-las com as que fazem parte da sua construção, Carlos do Complexo busca dar um toque pessoal na produção. Isso ocorre tanto em seus trabalhos autorais quanto nas produções para outros artistas. Essa inspiração vem de diferentes fontes, como a espiritualidade – que envolve os estudos da ancestralidade e da espiritualidade africana –, além de estudos diários. “Eu acordo de manhã e a primeira coisa que faço é o meu ritual. Vou lá e acendo uma vela. Isso influencia a minha música porque me traz paz. Posso estar fazendo um som agressivo, mas estou em paz, e aquilo vai com certeza tocar uma pessoa que vai ouvir”.
Ele também tenta aprender e ouvir tudo o que pode, “não sou aquela pessoa que fica com fone de ouvido o tempo todo, mas a música me persegue em todos os momentos... quando estou fora do estúdio, no carro, indo pra algum lugar... a música me segue”. Um dos produtores mais admirados por ele é o Shavoso. “É um cara que está ao meu lado e a gente troca muita coisa. Um dos caras que mais me inspira. A gente troca tudo, até mesmo referências de coisas que estamos ouvindo. Além de ser um cara foda na produção, ele é uma pessoa muito foda em tudo o que faz”.
Além do Shavoso, outro nome importante para Carlos é o Kiefer, produtor e tecladista californiano que se destacou na música instrumental nos últimos anos e no lo-fi. Ele mistura elementos do jazz, hip-hop e lo-fi, incorporando camadas orgânicas em suas batidas. “Eu fui pra um show dele aqui em São Paulo e foi muito foda. Eu fico muito louco com a música instrumental porque é como se fosse o produtor ali te mostrando a vibe dele. Não tem ninguém cantando, então o som é só aquilo e você vai sentir ou não. Quando ouvi o Kiefer a primeira vez, vi que ele consegue me trazer muitas sensações... posso ouvir antes de dormir, posso ouvir quando estou de boas, ou até mesmo pra ouvir na rua. Eu consigo entender muito o som dele e isso me trouxe até outras sensações quando fui fazer o meu próprio som também”.
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