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Portugal, nos últimos anos, tem sido promovido como um destino cultural vibrante e um país seguro, consolidando sua imagem como um refúgio de paz e igualdade. No entanto, por detrás desta fachada, escondem-se barreiras invisíveis que impedem a diversidade e a verdadeira riqueza cultural de se manifestarem plenamente. Uma dessas barreiras, que necessita de revisão urgente, é a Lei do Cinema.
Como realizador de cinema e argumentista jamaicano-estadunidense, residente em Portugal há oito anos, deparei-me com uma realidade que muitos ignoram: a exclusão de vozes migrantes no setor cinematográfico português. Recentemente, a minha candidatura ao concurso de Primeiras Obras do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) foi rejeitada devido à minha nacionalidade não ser portuguesa ou de um país da União Europeia. Esta decisão, tecnicamente em conformidade com a Lei n.º 55/2012, de 6 de setembro, Artigo 2.º, alínea i)¹, que exige que um mínimo de 50% da equipa de autores – incluindo o realizador, argumentista e autor da banda sonora – seja de nacionalidade portuguesa ou de qualquer Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, levanta questões sérias sobre o acesso à cultura e os direitos dos autores em Portugal, mesmo daqueles que, como eu, já contribuem para o setor há anos.
É paradoxal que, apesar da minha forte ligação com o setor artístico nacional e da minha contribuição para a economia do país, eu seja impedido de aceder aos incentivos financeiros destinados à cultura. Não é coincidência que qualquer cidadão da União Europeia, mesmo que nunca tenha pisado em território nacional, seja elegível para o apoio do ICA, enquanto eu, que resido em Portugal há quase uma década e contribuo ativamente para o setor cultural, seja excluído. A Lei do Cinema, na sua forma atual, exclui efetivamente a mão de obra migrante que, embora contribua significativamente para o território em termos culturais e financeiros, é privada de direitos. Tal exclusão não é apenas uma falha técnica; é uma expressão da precarização estrutural que ignora a verdadeira diversidade do país.
O cinema – e a cultura de forma geral – desempenha um papel crucial na formação de identidades e na representação das várias faces de uma nação. A exclusão de projetos como o meu, que retrata um lado de Lisboa raramente representado no cinema português, focando nas experiências da comunidade negra queer migrante, é um reflexo claro de uma legislação que precisa de revisão. A cultura deve refletir a multiplicidade de vivências que compõem a nossa sociedade, e não apenas uma visão monolítica, limitada e branca.
"O que realmente mudou para as pessoas racializadas em Portugal?"
David J. Amado
Ao longo da história, leis e políticas culturais foram frequentemente usadas para reforçar o status quo e perpetuar narrativas hegemônicas, muitas vezes à custa de vozes minoritárias. A Lei do Cinema, tal como está, perpetua essa dinâmica, restringindo o acesso a oportunidades criativas e econômicas a uma pequena elite europeia privilegiada. Este é um reflexo de uma mentalidade colonial ainda presente nas instituições europeias, que aproveita a mão de obra migrante enquanto ignora os seus direitos e dignidade.
A exclusão do cenário cultural é apenas uma faceta de um problema mais amplo: a negação da plena humanidade das pessoas migrantes e racializadas em Portugal. Não estamos apenas a falar de acesso a subsídios ou concursos culturais; estamos a falar de uma luta por inclusão, equidade, e sustentabilidade social. A exclusão cultural é mais uma porta fechada, mais um meio de sobrevivência retirado da mesa.
Se o acesso à cultura fosse garantido a todos os que contribuem financeiramente para o Estado, independentemente da nacionalidade ou origem, estaríamos a criar uma sociedade mais justa e equilibrada. Sei que a exclusão de artistas migrantes dos concursos culturais, como os do ICA, pode parecer uma questão secundária quando comparada aos desafios diários enfrentados por muitas pessoas racializadas em Portugal – desde a violência policial até à precariedade económica. No entanto, todas essas lutas estão interligadas. A exclusão cultural é mais um sintoma de um sistema que nega a nossa existência e plena participação na sociedade.
Ao celebrarmos 50 anos da Revolução dos Cravos, devemos questionar: o que realmente mudou para as pessoas racializadas em Portugal? Ainda somos pressionados a aceitar o pouco que nos é dado, a "comportar-nos", a assimilar ou a resignar-nos à nossa marginalização. Esta falsa escolha nos impede de criar identidades verdadeiramente radicais, autênticas e transformadoras. O nosso passado é sistematicamente desvalorizado e o nosso presente apagado, cortando-nos às raízes e impossibilitando a construção de um futuro. As estruturas institucionais que nos excluem hoje são as mesmas que nos negam a plena humanidade há 500 anos, há 50 anos, e no presente.
"A revisão da Lei do Cinema é um passo crucial para garantir que todas as vozes, incluindo as dos imigrantes, sejam ouvidas e valorizadas"
David J. Amado
Se queremos celebrar verdadeiramente a Revolução dos Cravos e o espírito de liberdade que ela trouxe, precisamos assegurar que esse espírito se estenda a todos. A revisão da Lei do Cinema é um passo crucial para garantir que todas as vozes, incluindo as dos imigrantes, sejam ouvidas e valorizadas. Portugal tem a oportunidade de liderar com o exemplo, reconhecendo que uma nação só é verdadeiramente rica quando todas as suas histórias são contadas.
É imperativo que a legislação seja ajustada para que qualquer residente em Portugal que contribui financeiramente ao Estado e ao governo, independentemente da nacionalidade, tenha acesso aos mesmos incentivos culturais que os cidadãos da União Europeia. Além disso, a criação de programas específicos de apoio à produção cinematográfica de artistas imigrantes pode assegurar uma maior diversidade de histórias e representações na cultura portuguesa. Tais medidas não apenas fortaleceriam o setor cultural, mas também refletiriam o compromisso do país com a inclusão e a justiça social.
Outras instituições, como a DGARTES, com o novo programa Arte e Periferias Urbanas em parceria com a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), já estão reconhecendo a importância de iniciativas inclusivas e demonstram que há um caminho para criar um Portugal mais acolhedor e representativo. Portanto, a questão não é a falta de possibilidades, mas a necessidade de expandir essas práticas para todos os setores culturais. A verdadeira riqueza cultural de Portugal será alcançada quando todos tiverem a oportunidade de contribuir artisticamente e prosperar financeiramente.
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