Música e antropologia, resistência e identidade, a proposta artística de Fidju Kitxora

April 15, 2025
Fidju Kitxora entrevista
📸 Fabiana Esposito

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Fidju Kitxora apresenta-se como um coletivo em trânsito entre Lisboa e Cabo Verde. E, se a definição é forte o bastante para deixar algumas pessoas curiosas, a mistura de sonoridades que vão do funáná ao semba, passando pelo kuduro e afrohouse, quando mixadas com os dizeres, cantares e sons locais, ganha uma nova dimensão. “Rave de funana, corpos turbinados, terra em transe” e “música física e indomesticável” são alguns dos elogios tecidos por quem já teve oportunidade de ver ao vivo o coletivo que, entre passado, presente e futuro, vai ressignificando o que é ser cabo-verdiano. 



Músico e antropólogo, Fidju trabalha a música como ciência e o palco como espaço de arquivo. As composições híbridas, como “Boi Prétu” ou “Lobo na sucuru”, revelam uma reflexão sobre identidade, pertença e diáspora, ao mesmo tempo que contestam a visão romantizada que a academia ainda tem sobre culturas pós-coloniais. Esta entrevista surge no âmbito da parceria entre a BANTUMEN e a Associação Sons da Lusofonia, no projeto Fora do Centro, onde Fidju Kitxora inaugura a primeira temporada.


Racodja, o álbum de estreia lançado em 2024, foi a consolidação de um trabalho cuja primeira aparição ocorreu no Boom Festival, em Castelo Branco. Numa altura em que o digital assume parte da estratégia de comunicação dos artistas, o grupo optou por manter a discrição com que começou. Sem divulgação e de forma tímida, seguiram-se presenças em eventos como o Festival Square, em Braga, e mais recentemente, o Westway Lab, em Guimarães, e o Festival Tremor, nos Açores, fazendo antever o início de uma história que começou bem antes e está profundamente ligada ao fundador do coletivo.


Foi ao perder a avó, durante a pandemia, que Fidju se deu conta das saudades que tinha de algo que nunca tinha vivido. Filho de pai português e mãe cabo-verdiana, é fruto do fenómeno migratório que compõe a diáspora do país. São cerca de 1,5 milhões de pessoas, quase o triplo da população residente no arquipélago, espalhadas entre Boston, Holanda, Portugal e França – locais que tomam a dianteira quando se fala da comunidade cabo-verdiana espalhada pelo mundo. Kitxora faz parte dessa segunda geração de imigrantes. Cresceu e viveu parte da sua vida em Portugal, antes de se fixar por um período em Macau, e não esconde que a perda da avó levou-o a enfrentar uma história de mágoa e distância cultural, marcada pela ausência de memórias familiares e conhecimento sobre si próprio. "Senti um certo arrependimento de não ter aproveitado as histórias da avó. As histórias de família, os álbuns de família que depois são abertos e falados, de pessoas que a gente não conhece." Numa casa onde não se falava crioulo, o enquadramento socio-cultural da parte materna da família era feito através da comida e da música. As memórias dos discos de vinil dos Tubarões, banda cabo-verdiana que se tornou famosa pela morna e coladeira, eram a ligação mais próxima a uma terra que veio descobrir sua, já na fase adulta. "Os vinis, os Tubarões... é uma memória muito forte que eu tenho porque estava sempre a pôr aquilo."

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Agenda cultural

“A antropologia dá-me ferramentas a nível metodológico”

Fidju Kitxora

Sem saber, a perda acabou por se tornar o fio condutor do seu trabalho. A visita que fez a Cabo Verde depois da morte da avó, embora inicialmente recebida com resistência familiar, transformou-se numa experiência de imersão cultural e reconexão com suas raízes. Durante três meses realizou trabalho de campo detalhado: "Gravei 500 áudios, fossem depoimentos, fossem conversas". Viveu e foi acolhido de perto pelas comunidades locais, ao mesmo tempo que enfrentou momentos de forte conexão emocional ao conhecer familiares até então desconhecidos: "Sou o neto do teu tio, do João Mimoso. E ela agarrar-me como se já me conhecesse, e a chorar 'nha fidju matxu'", conta a propósito de uma visita à Ilha de São Nicolau, onde (re)encontrou familiares que só o conheciam através de fotografias. No período pós-independência, e antes do advento do digital, eram comuns as trocas de registos fotográficos entre os cabo-verdianos residentes na diáspora e os que tinham ficado na terra. Era também a forma mais fácil de estar perto, mesmo não estando, e de conhecer a família, mesmo não conhecendo.

A experiência em terras de Cesária fê-lo ver Cabo Verde com outros olhos. Fora do conceito “engessado” de Morabeza – expressão comummente usada por cabo-verdianos para se referirem à arte de bem receber e bem viver -, o que é Cabo Verde? Quem são, na verdade, as suas gentes e o que têm para oferecer aquelas dez ilhas no Atlântico? As respostas são muitas e podem ser encontradas na diáspora, que ao longo dos anos tem levado a cultura para fora do espectro do arquipélago. Para o artista, Cabo Verde é "um país suportado pela diáspora, pelas remessas, pelo dinheiro que todos os meses as pessoas enviam." Ainda assim, a música, em particular, emerge como uma ferramenta poderosa na preservação cultural. E foi nessa senda que conseguiu traduzir vivências emocionais em obras híbridas que misturam estilos e tradições: "O choque emocional que eu tive foi traduzido num plano musical. Trabalho muito com sample, isso tornou-se mais fácil."

Além de músico, Fidju Kitxora é antropólogo e não esconde que, embora pareçam distantes, os dois mundos têm em comum muito mais do que se possa imaginar e são, ainda que de formas distintas, a base do seu trabalho. “Empresto muitas coisas de um lado para o outro”, afirma. Se a música é ritmo, vibração e identidade, a antropologia é o lado metódico, analítico e racional do que chega ao público. "A antropologia dá-me ferramentas a nível metodológico, a nível de reflexão, muito interessantes para um trabalho pessoal muito forte”. Músicas como “Boi Prétu” ou “Lobo na sucuru” trazem essa dimensão: de um lado a parte documental conseguida através da pesquisa de campo, do outro, o lado híbrido de ritmos que misturam tradição e modernidade. Acredita que, de certa forma, todo o músico tem um lado antropólogo e cita, a propósito, Orlando Pantera, cantor cabo-verdiano, a quem atribui o resgate da memória e identidade culturais do país, numa altura em que Cabo Verde não sabia bem como se definir. "O Orlando Pantera era um incrível antropólogo, ele foi fazendo o resgate de histórias do meio rural. Foi um movimento muito bonito de resgatar histórias que conectam a identidade cabo-verdiana com uma relação com a África, que está logo ali do lado", conta.

Fidju Kitxora entrevista

Foto divulgação

Para o artista, é tempo de reconhecer a música e outras formas de arte como ferramentas científicas. "A academia agora está a perceber que tem que dar mais abertura... que a música pode ser vista como um produto científico integrado na academia”, e é nesse contexto que acaba por encontrar, também, espaço para validar o seu trabalho. O Prémio da Literatura concedido a Bob Dylan, em 2016, é, segundo o artista, a prova e materialização da arte como forma de conhecimento. Para que tal passe a ser mais frequente, considera necessário que a academia se dispa do olhar fechado que tem sobre si própria. "A antropologia foi muito potenciada na altura do período colonial, porque era uma forma também de certas potências coloniais conseguirem ter uma capacidade de estudo dos povos colonizados” e isso acabou por trazer realidades “engessadas e romantizadas”, muitas vezes não correspondentes à verdade. A título de exemplo conta a forma como os rabelados, comunidade que resistiu à igreja e ao colonialismo nos anos 40 e 50, eram muitas vezes retratados no seio académico. "Retrata uma povoação como se eles fossem um povo primitivo, que estão na Idade da Pedra, quando lá já chegou a eletricidade, os miúdos têm telemóveis, a malta tem televisão”, conta. 

Apesar do contexto, não esconde os avanços e admite que atualmente já se pode ver nas ciências sociais a inclusão de investigadores de contextos pós-coloniais, que têm contribuído para a desconstrução de visões colonialistas. "Hoje em dia, há o envolvimento de cientistas que conhecem, especialmente pessoas que vêm desses lugares", podendo esse ser o ponto de partida para uma academia diversificada, ampla no discurso e aberta às inúmeras possibilidades de investigação que existem.


Em suma, Fidju Kitxora é, tal como o nome indica, o filho que chora e que puxa para si as dores e memórias de um povo que sabe de onde veio, mas nem sempre sabe onde se encontrar. O limbo entre música e academia, memória e identidade são o epicentro de um projeto que, apesar da conotação pessoal e íntima, serve de base para questionar e ressignificar não só o que é ser cabo-verdiano como também a matriz que compõe o tecido cultural e social de Cabo Verde. O músico, cujo nome verdadeiro prefere não assumir, vê na discrição o ponto forte do seu trabalho. “O foco é arte, não é o artista”.

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