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O rap crioulo em Portugal tem crescido significativamente nos últimos anos, com artistas a recorrer ao streaming e redes sociais para divulgar trabalhos e crescer a ponto de fazer números que os permitam viver apenas da sua arte. E, apesar deste ser um facto positivo para todos, a verdade é que nem sempre foi assim. “Back in the days”, quando o crioulo representava o underground e se ia impondo como símbolo de identidade e resistência, surgiram alguns grupos que começaram a movimentar a cena e fazer do rap crioulo uma arma de intervenção social e política.
Foi esse movimento que trouxe para o panorama musical artistas como Ghoya. O rapper, e agora ativista, deu os primeiros passos com o grupo Mentis Afro, mas não esconde que o contexto social em que cresceu foi determinante para que visse na música a sua forma de expressão. “Cresci nas Fontainhas, mas eu saí de lá. Na minha adolescência, já estava a viver noutras zonas, mas a partir das Fontainhas já dava para se ter essa noção (de diferenças sociais) de uma forma bem vincada”, explica.
À época, as diferenças sociais entre a periferia e o centro eram mais evidentes do que nos dias de hoje. Esse muro, nem sempre visto mas sentido, foi o bastante para criar uma visão crítica da sociedade. "Só na cena de fazer os documentos dava para perceber isso. Eu para ir fazer os documentos tinha que me levantar às quatro da manhã. E os meus colegas normalmente não passavam por isto", recorda. A música acabou por surgir de forma natural, mas acima de tudo como uma forma de encontrar espaço, refletir e abordar criticamente as situações que vivia.
“A música ajudou-me a transformar a minha revolta em algo construtivo. O amor faz o mesmo”
Ghoya
“(A música) é um veículo muito forte nesse sentido”, afirma. Não se lembra ao certo do primeiro verso que escreveu, mas assume que o crioulo foi sempre a sua primeira opção. Apesar de escrever em português, foi naquela que considera ser a sua língua materna, que surgiram as primeiras composições. “No meu dia a dia penso em crioulo, falo crioulo, imagino em crioulo, sonho em crioulo. Claro que em muitas vertentes do dia a dia, em muitos aspectos do dia a dia falo português, mas é porque me é solicitado. Eu sinto que não é uma coisa que me é completamente natural”, afirma, acrescentando que rimar em crioulo molda toda a sua criação artística, fazendo com que tudo pareça mais natural. Com o tempo, as músicas acabaram por provar isso. E se hoje até já se ouve pessoas a cantarolar em crioulo, há uns anos o idioma era símbolo não só de resistência, mas também de identidade. “Só nos apercebemos que não é normal estarmos a falar crioulo quando começamos a sair das esferas em que estamos a falar crioulo. Quando vamos para a escola, quando começamos a frequentar lugares públicos onde as pessoas já não falam só crioulo”, explica.
A necessidade de afirmar essa identidade e começar a ocupar certos espaços foi um dos pilares que esteve na base da criação da Mentis Afro, um projeto que na altura surgiu para dar voz a uma realidade pouco representada em Portugal e que acabou por confirmar a entrada de Ghoya na lista dos maiores nomes do rap crioulo. O movimento nacional, à época, refletia muito aquelas que eram as narrativas importadas dos Estados Unidos, deixando de fora a realidade vivida nos bairros da Grande Lisboa. O grupo criado pelo artista e alguns amigos conseguiu romper essa barreira e impor-se durante algum tempo, mas os caminhos acabaram por se afastar, ditando a separação do grupo, ainda que apenas artisticamente. Continuam amigos e o respeito prevalece. “Não tenho como falar da minha trajetória sem passar por aí, pois foi e continua a ser um marco muito importante da minha carreira, onde eu acho que faria tudo igual”, afirma.
Ghoya 📸 BANTUMEN/Wilds Gomes
A verdade é que a rutura acabou por ditar, também, o afastamento de Ghoya da música. Apesar de ter ficado alguns anos sem lançar nada, a pausa não ditou o fim do impacto das suas composições, que voltaram a ganhar força em momentos cruciais. Exemplo disso foi a manifestação que decorreu a 26 de outubro, dias depois da morte de Odair Moniz. “Oto lado lei” tocou na Avenida da Liberdade como símbolo de resistência e manifesto, quase duas décadas depois do lançamento. Quando uma música prevalece no tempo é porque é boa, ou é porque as coisas mudaram pouco? Para o artista, o sentimento é agridoce. “Sinto orgulho por a minha música continuar relevante, mas, por outro lado, é um sinal de que os problemas que denunciei há anos continuam sem solução”. Ghoya não esteve presente na manifestação, por questões de agenda, mas não esconde que, tendo oportunidade, faria questão de comparecer. Assume que o ativismo está presente na sua vida muito antes da música. A sua mãe liderava uma associação comunitária, e Ghoya cresceu envolvido num ambiente onde a resistência era uma necessidade do dia a dia. "Era fácil um jovem como eu, que já tinha ligação com esse tipo de dinâmicas, interessar-se por estas questões."
A pausa na música foi, acima de tudo, um período de crescimento pessoal. Com o tempo, percebeu que nem tudo precisava de ser dito com urgência, que a forma como se transmite uma mensagem é tão importante quanto o conteúdo. "Se soubesse dosear melhor a energia nas palavras, talvez as minhas mensagens tivessem sido compreendidas de forma mais abrangente”. Olhando para trás, reconhece que aquele rapaz que começou no início dos anos 2000 “mesteba uns dos tapona (merecia umas duas chapadas)”. Se antes via a arte como um grito de resistência, hoje reconhece nela um espaço de equilíbrio. O amadurecimento trouxe-lhe uma nova perspetiva—não apenas sobre a música, mas sobre a própria vida.
E o amor teve um papel nesse processo. "O amor é uma coisa clarividente, que traz claridade e nos faz sentir melhor. O mundo ganha outra cor quando gostamos das pessoas." Quando fala de amor, não se refere apenas ao amor romântico. Fala do amor nas suas múltiplas formas—o amor pela família, pelos amigos, pelo bairro que o viu crescer, pela cultura que o moldou. Acredita que é esse amor que dá significado à resistência. "A música ajudou-me a transformar a minha revolta em algo construtivo. O amor faz o mesmo."
Depois do amadurecimento, o regresso. Ghoya assume que está de volta e já há sinais visíveis do retorno. Recentemente, lançou uma coletânea no Spotify onde apresenta algumas canções que marcaram o seu percurso. A ideia, confessa, era “não deixar a casa vazia”. Ainda que esteja de volta, e agora numa versão mais madura, considera que não fazia sentido avançar sem fechar o capítulo anterior. Assume que deve isso aos seus fãs. “Pa sempri djuntus”, nome do álbum lançado no spotify, é a materialização desse respeito pela sua trajetória, por quem o ouviu e acompanhou desde sempre.
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