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Lembro-me da primeira vez que li João Melo. Era um livro de contos, daqueles que parecem carregar um pedaço vivo da história de Angola. O tempo, na sua narrativa, não passa — permanece. Talvez por isso me tenha marcado tão profundamente.
Será que a literatura pode capturar o tempo? João Melo parece acreditar nisso. Como ele mesmo afirma: “Sou um escritor preocupado com o tempo enquanto categoria histórica.” Essa afirmação está relacionada a uma de suas obras, lançada em 1991, intitulada Canção do Nosso Tempo. Publicada um ano antes das primeiras eleições democráticas em Angola, a obra reflete sobre a relação entre a escrita e a memória.
O autor angolano, com a sua vasta produção literária — que abrange poesia, contos, ensaios e romances —, revela-se um cronista atento à temporalidade, às dores e aos resgates históricos, sociais e humanos.
Lançou oficialmente o seu primeiro livro em 1985, 10 anos depois da independência com o título Definição, uma obra que procura refletir sobre Angola enquanto indivíduo coletivo, questionando profundamente a identidade nacional e o lugar do país e do seu povo no mundo após a independência.
Quem somos nós? Do que somos feitos? Estas são algumas perguntas centrais que atravessam o livro, enquanto explora também a complexidade do "indivíduo Angola", um ser que caminha há séculos pelo mundo, presente nas Américas e em outros lugares, levando consigo as marcas da diáspora, da resistência e da reconstrução de uma identidade fragmentada.
50 anos após a independência, em 2024, João Melo lança O Perigo Amarelo e Outros Contos. A obra reúne narrativas inéditas e outras já publicadas anteriormente, como as que integraram a coletânea lançada pela Editora Caminho em 2020. Entre os contos destacados está O Angolano que Não Gostava do Verbo Malhar, publicado pela editora Caminho, uma narrativa rica em ironia e crítica social. O texto explora a complexidade das interações culturais entre Angola e o Brasil por meio de um personagem multifacetado, Américo V.A. Por intermédio desse protagonista, o autor aborda os contrastes linguísticos, culturais e até morais que permeiam essas duas realidades.
"...Essa palavra, também me recuso a empregá-la. A partir de hoje, quero apenas voltar às nossas origens, aos nossos costumes e à nossa forma de ser, sem as interferências que tanto critiquei e, ao mesmo tempo, alimentei.”
A mulher, perplexa e incrédula, tentou decifrar o significado oculto dessas palavras, mas o olhar de Américo V.A. era indecifrável. Não se tratava de raiva, nem de tristeza, mas de uma espécie de resignação e renascimento. Algo havia acontecido no Brasil, disso ela tinha certeza, mas sabia que ele não lhe contaria. O silêncio dele era uma muralha que nem o mais hábil interrogatório conseguiria romper. Ainda assim, ela decidiu não insistir. Guardaria as suas perguntas para depois, talvez esperando que o tempo revelasse o que o marido tentava esconder. Por ora, o mais importante era que Américo V.A. estava de volta a Luanda, decidido a abandonar certos hábitos, e parecia determinado a retomar a rotina que ele próprio sempre prezara como parte de sua identidade.
E assim, o verbo "malhar" desapareceu do vocabulário de Américo V.A., como se nunca tivesse existido. Talvez fosse apenas uma palavra, mas para ele, representava muito mais: uma vida que ele havia escolhido deixar para trás…” (p. 110, 111).
Este texto, por exemplo, mostra a forma como as palavras, os costumes e os valores se transformam e ganham novos significados dependendo do contexto. Américo, mesmo sendo apresentado como um homem erudito e ligado às suas "tradições", não escapa das ambiguidades que regem o comportamento humano. A sua aceitação do verbo "malhar", usado inicialmente de maneira inocente para descrever práticas de ginástica, vai progressivamente carregar significados e dimensões que refletem os conflitos entre a sua identidade pessoal, as normas da sua cultura e a liberdade que ele encontra no Brasil.
Para além disso, o autor mostra com humor e tom crítico os desafios de navegar por tempos contemporâneos marcados por "neo-moralismos" e "protofascismos", colocando em evidência as tensões entre a liberdade individual e as imposições sociais. O Américo, que inicialmente se delicia com as permissividades e os encantos do Brasil, acaba por enfrentar um momento de ruptura pessoal, simbolizado pela rejeição final ao verbo "malhar". Essa rejeição, contudo, deixa em aberto a questão: seria uma renúncia genuína ou uma tentativa desesperada de reconfigurar a sua identidade em um mundo cada vez mais moralizador?
Por fim, o conto reflete sobre os paradoxos da condição humana: a dissimulação, a contradição e a luta constante entre o que somos, o que queremos ser e o que o mundo nos exige. É um texto que provoca reflexão e, ao mesmo tempo, diverte com a sua linguagem espirituosa e a sua habilidade em captar as nuances culturais e emocionais do personagem.
Como diz o escritor: "Para mim o tempo não é apenas uma abstração ou um pano de fundo. Nas poesias, como em Todas as Palavras ou Exercícios e Linguagens, o tempo é matéria viva, arde e transforma-se em verbo, em imagem, em denúncia."
Logo, a sua obra não se limita a uma contemplação passiva do passar dos dias; ela revisita o passado colonial e as suas feridas abertas, enquanto nos convida a pensar o presente e imaginar futuros possíveis. Como dizia Octavio Paz "Todo poema é tempo e arde." Essa combustão de temporalidades — a histórica, a política e a da intimidade — define não só a sua literatura, mas a sua própria trajetória como comunicador e intelectual.
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