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Vestir preto num dia escaldante de agosto é uma experiência universal — uma batalha silenciosa contra o calor que se agarra à pele como um fardo invisível. É sentir o peso do desconforto e, ainda assim, resistir.
Ser negro tem os seus paralelos com essa vivência, mas apenas alguns podem – e verdadeiramente sabem – contar essa história. Julianknxx (Julian Knox) é um deles. O artista britânico, nómada e poeta, visitou nove cidades portuárias europeias com historial colonial, em 2023, com vista a explorar questões como a herança, a perda e contar a história dos territórios de pertença das comunidades negras na Europa e na relação com o mundo. Uma dessas cidades, Lisboa. A sua passagem pela capital portuguesa ficou marcada sob o título "Aprender a Vestir a Pele Negra Sob o Sol".
“A frase resulta de uma conversa que tive com Oseias Xavier e que, na altura, estava a usar só roupa preta, num dia muito quente de verão aqui em Lisboa. Perguntei-lhe porquê, e ele respondeu-me que teve de aprender a usá-la sob o sol”, contou Julianknxx à BANTUMEN, durante a passagem por Portugal. “Foi uma resposta simples, mas não consegui evitar interpretá-la de forma mais profunda”, explicou, detalhando que o artista musical de origens africanas, com quem falava naquele dia quente na capital portuguesa, teve de também “aprender a navegar” a vida em Portugal como imigrante e “proteger a sua existência” mesmo perante obstáculos que impediam a sua regularização. “Muitos afro-descendentes nascidos em Lisboa não possuem ainda a cidadania portuguesa”, lamenta em forma de crítica.
A história de Oseias Xavier espelha uma realidade da diáspora negra em Portugal e das outras cidades europeias (Amesterdão, Antuérpia, Barcelona, Berlim, Hamburgo, Liverpool, Marselha e Roterdão) que JulianKnxx— nascido em Freetown, na Serra Leoa e imigrado em Londres, no Reino Unido— quis amplificar. Fê-lo através de um retrato cinematográfico em forma de exposição acolhida pelo Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, intitulada “Coro em Rememória de um Voo”, em exibição até 2 de junho.
“Com este trabalho, quis incidir luz sob a forma como a comunidade negra chegou a estas cidades, e o trabalho e as histórias que carregam. Quis criar uma visão contemporânea daquilo que é a nossa experiencia, nestes lugares que não são nossos mas que passam a ser, nos dias de hoje”, refletiu o artista de 37 anos.
Durante a sua passagem por nove cidades, Julianknxx mergulhou nas histórias das comunidades negras que nelas habitam, dando palco a figuras frequentemente apagadas, mas ouvindo simultaneamente políticos, bailarinos e ativistas locais. O resultado desse processo deu origem a uma série de filmes agora exibidos no CAM.
Em cada local, Julianknxx pediu aos residentes que partilhassem algo ligado à sua vivência: fosse uma dança, uma conversa ou “até um chá”, disse. Em Lisboa, além de Oseias Xavier, reuniu-se com Tristany Mundu, Selma Uamusse, Paulo Pascoal, José Lino Neves da Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal e Joacine Katar Moreira.
“O projeto é isto por causa deles. É uma colaboração com este grupo de pessoas a quem entreguei um espaço e que foi curado”, explica.
Com esta exposição cinematográfica, o artista propõe um debate decolonial, trazendo à luz narrativas silenciadas e dando visibilidade a novas iconografias emergentes. “Quando olhamos para a história, seja de hoje ou do passado, existem temas comuns: a migração forçada, a pobreza e a guerra fazem boa parte dela”, observa. Para Knxx, essas forças são reflexo das dores impostas por um sistema capitalista racial e dos traumas geracionais que atravessam Portugal e a Europa. Nas paisagens do centro de Lisboa e nas periferias africanas da Margem Sul à Linha de Sintra, ele encontra os cenários dessas feridas. “Quero expandir a visão que temos da negritude, que vamos e existimos para além dessas narrativas que nos são alimentadas. A imaginação negra é vasta, expande-se e vai para além das limitações que nos são impostas pela branquitude na sociedade”, lamenta ainda. “É difícil, é um percurso longo e cansativo, mas acredito que consigamos romper com isso”, promete.
Julianknxx, Coro em rememoria de um voo | Foto de Pedro Pina
O objetivo da exposição é de que a mensagem seja ecoada por vozes negras e ressoada por aqueles que as reconhecem. Por outras palavras, a diáspora não é apenas a fonte de inspiração do trabalho, mas também o seu público principal. Como uma espécie de dedicatória. No entanto, Knxx não desconsidera a importância de que a obra chegue a outros grupos, especialmente aos que detêm maior privilégio. “Quando faço o meu trabalho não estou a pensar nas pessoas brancas, ou em como o vou tornar percetível para eles. Não é essa a intenção”, garante, rejeitando a noção de que os recados possam ser mal-interpretados uma vez que o centro da narrativa é, acima de tudo, um ser humano. “Se uma história for bem contada, existe uma coneção a nível humano”, vinca. “Não pretendo fazer um trabalho que seja identificável por todos, mas sim contar a história das nossas vidas, histórias humanas. De como chegámos a estes lugares e de como existimos”, diz, recordando uma memória distante – mas presente – do dia em que partiu de Serra Leoa para Inglaterra, e que lá a sua identidade passou a centrar-se á volta de algo que sempre soube que era mas que não sabia que era tema: ser um homem negro.
“[Este trabalho] é sobre criar uma linguagem de empatia que permite que sejamos compreendidos e ouvidos”, reflete. Mas, nos dias de hoje, o artista serra-leonês reconhece que essa missão se tornou mais desafiadora. Com a ascensão de discursos extremistas e a crescente radicalização da sociedade, tanto na Europa como nos Estados Unidos, Knxx sente que a responsabilidade do seu trabalho só aumenta.
“O mundo está sempre a mudar, mas ultimamente as coisas têm se tornado mais acentuadas e separatistas”, reconhece. “Nos últimos 10 anos – provavelmente mais tempo que isso – tem havido uma mudança na minha forma de pensar. Não temos todos de falar a mesma língua, ou pensar da mesma forma. Temos de ser capazes de contar as nossas histórias e de coexistir”, apela, reconhecendo os esforços globais nesse sentido mas que o caminho a percorrer é ainda distante.
Ainda assim, o Knxx mantém-se fiel ao seu percurso. Apesar dos desafios políticos, económicos e sociais, pretende continuar a abrir espaços e a dar visibilidade a estas comunidades dado ser essa uma das coisas que o move enquanto artista.
“A esperança que tenho é de continuar a abrir e criar espaços, mostrar estas comunidades ao meu lado enquanto tiver uma plataforma que o permita”, explica. “A única coisa que podemos esperar é que haja um shift nos discursos e de que a negritude possa coexistir. Anseio por um alargar da perceção negra que existe, e que essa vá para além das narrativas que nos são impostas. Somos mais do que isso”, diz.
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