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O mundo sempre foi objecto de transformações e relações histórico-sociais. A partir da Idade Moderna, período da expansão e ocupação europeia, a relação de homens com outros homens estabeleceu uma luta social regida pelo princípio de raça que é «uma forma espectral de divisão e de diferença humana susceptível de ser mobilizada para fins de estigmatização e de exclusão, de segregação, pelos quais tenta isolar, eliminar e, até, destruir fisicamente determinado grupo humano». (MBEMBE, 2017, p.102). Portanto, uma luta social é, antes de tudo, uma luta de raças – Branca e Negra.
Com isso, textos e comentários foram elaborados sobre a raça dita negra, excluindo-a do estágio de racionalidade, humanidade e civilidade. A escravatura é uma expressão desta exclusão. Será que a raça é um facto natural e genético? Ou uma invenção e ilusão? Essas e outras questões compôem uma «crítica» filosófica sobre a «lógica das raças».
De país africano nomeado em homenagem à admiração de navegadores portugueses a multiplicidade de crustáceos, Camarões, Achille Mbembe (filósofo, politólogo e historiador) aborda, em linguagem científica e figurada, a «ideia de raça» e o «conceito de Negro» em Crítica da Razão Negra o qual sugerimos para leitura.
O seu enredo teórico localiza-se nas fases e doutrinas do capitalismo em que quase tudo é convertido em força reprodutiva e/ou mercadoria, razão pelo qual «homens e mulheres originários de África (do século XV a XIX) foram transformados em homens-objecto, homens-mercadoria e homens-moeda». A obra desdobra-se na invenção do Negro pelo capitalismo selvagem e no devir-negro do mundo.
Achille Mbembe apresenta dois fundamentos sobre o conceito de razão negra:
Estes dois fundamentos levantam as seguintes questões: a raça é uma condição natural? O Negro foi inventado? Se sim, para quê a sua invenção? O académico camaronês responde no plano filosófico: «a raça não existe enquanto facto natural fisico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil, de uma construção fantasista ou de uma projecção ideológica cuja função é desviar atenção de conflitos antigamente entendidos como mais verosímeis – a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo». (Ibid., p.26-27). O nome Negro é um produto da máquina social e técnica do capitalismo, inventado para «significar exclusão, embrutecimento e degradação» (Ibid., p.19), reduzindo o Outro que é a aversão do Europeu ao estágio de não-racionalidade, não-humanidade e de coisificação; é uma manifestação mais honesta do “estado de bárbarie”, um animal irracional. Portanto, a raça é o centro do racismo e outras tecnologias de poder. Sobre este assunto, tratámos em outro artigo.
O epicentro da ideia de raça é a colonização que permitiu o Ocidente estabelecer o direito de conquistar terras e subjugar o homem de origem africana desqualificado a nível jurídico, estético e racional. Será que o nome Negro é, na época contemporânea, atribuído unicamente aos africanos?
«Pela primeira vez na história humana» – alerta Achille Mbembe –, «o nome Negro deixa de remeter unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo (predações de toda espécie, desapossamento da autodeterminação e, sobretudo, das duas matrizes do possível que são o futuro e o tempo). A este novo carácter descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro», o autor chama de o devir-negro do mundo. (Ibid., p.18).
O devir-negro do mundo é um racismo planetário em capitalismo selvagem; reprodução de uma vida descartável e deplorável a que esteja sujeito qualquer um originário ou não de África. Por exemplo, o povo palestino afligido pelas constantes guerras apresenta-se como o novo Negro. Nesta ordem, o conceito de raça já não é elaborado na esfera ontológica somente, mas também biológica.
Para Foucault, filósofo francês lido por Mbembe, o controlo de um Estado não se centra sobre um território, mas sobre uma população. Este controlo é biológico ou seja, sobre a vida da população que se articula num poder disciplinar do Estado de «fazer morrer e deixar viver». No entanto, tirar a vida pode ser um assassínio directo ou indirecto (rejeição, expulsão, exposição à morte). Não existe racismo sem Estado nem luta social sem ideia de raça, o que significa que o devir-negro do mundo está ligado à biopolítica que, segundo Mbembe, no nosso tempo ganhou uma nova forma que é a necropolítica: «capacidade de matar ou de produção da morte» do outro que é Negro.
Crítica da Razão Negra é uma produção académica exímia, por isso vale a pena ser lido e/ou debatido para compreensão do pensamento racial na Europa e no Mundo. Achille Mbembe despede-se esperançoso de «um mundo livre do peso da raça» onde poderemos dizer tal como Fanon de qual é herdeiro: «Negro não é nem o meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e identidade. Sou um ser humano, e isso basta». (Ibid., p.88).
BIBLIOGRAFIA
MBEMBE, Achille. (2017). Crítica da Razão Negra. 2a ed. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona.
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