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Memé Landim, o homem que trocou a vida de pastor para tocar gaita

October 8, 2024
Meme Landim entrevista
Memé Landin entrada da Associação Cavaleiros de São Brás | 📸 Wilds Gomes

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É impossível escrever sobre Funaná, sobre a cultura da gaita, sem mencionar Memé Landim. Um dos impulsionadores desse género musical em Cabo-Verde e na diáspora e que vai atuar pela primeira vez no festival Lisboa Mistura, no Capitólio, em Lisboa (Portugal), no dia 13 de outubro.


Tinha eu cinco ou seis anos quando saí de São Tomé e Príncipe para Portugal, altura em que Memé Landim lançou o seu primeiro álbum, intitulado Canga Boi. A arte que fazia na Achada Lora, Santiago, em Cabo Verde, de onde é natural, fazia-se ouvir além fronteiras. 


Eu vivia numa comunidade maioritariamente cabo-verdiana, onde os fins de semana eram preenchidos por várias festas e pequenos convívios entre os vizinhos. De longe, sentia-se o cheiro do milho e das carnes a ferver na panela de Cachupa, garrafas de grogue (aguardente cabo-verdiano) na mesa, muitos risos e Memé Landim a sair das colunas da aparelhagem preta da Sony TA-AV581, cujas colunas mediam um metro e meio. Canga Boi tornou-se na banda sonora de uma grande parte de cabo-verdianos dentro e fora do país. É um álbum que retrata o quotidiano das ilhas de barlavento e sotavento, dos locais, do sonho da música, da imigração, da saudade e das lutas diárias. 

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Memé Landim começou como pastor de cabras, com um único sonho: tocar gaita cabo-verdiana, mais conhecida como harmónica. Em criança, na Achada Lora, encantava as pessoas com o seu talento natural para cantar e improvisar. Gostava de ver e ouvir as mulheres mais velhas a tocar batuque, a roda dos mais velhos a fazer Funaná, e os tocadores de gaita. Ele imitava-os simplesmente, e todos ficavam maravilhados com aquele jovem pastor cheio de talento. "Tinha uns rapazes de Pico Leão que iam passar na minha zona, então eu cantava. Cantava tanto que um deles, que já me conhecia, chamou os outros para me ouvirem cantar. E ficavam espantados com o que eu sabia fazer. E foram essas interações iniciais que plantaram a semente do que se tornaria uma longa e respeitada carreira musical", explicou-nos Memé Landim enquanto pousava a mala da gaita no chão da sala da Associação dos Cavaleiros de São Brás, onde nos encontrámos para esta entrevista.


Desde cedo que sempre quis aprender a tocar gaita, mas devido ao receio familiar, principalmente do pai, esse sonho só começou a materializar-se aos 18 anos de idade, quando finalmente conseguiu dar o primeiro passo sério na música. Apesar do talento precoce, o pai não estava de acordo com o desejo de Memé. Afinal, a vida de artista era movida de incertezas - assim como ainda o é nos dias de hoje.  "O meu pai não deixou. Ele não estava de acordo. Se eu fosse tocar gaita, ele metia-me fora de casa. Havia uma ideia errada de ser músico, era visto como algo de bandido. Mas na verdade, o meu pai tinha medo de perder o bom pastor que eu me tinha tornado. Então, tive de respeitar. Só toquei gaita com 18 anos".


O percurso musical de Memé começou a ganhar forma por volta dos 19 anos, quando se juntou a figuras influentes da sua comunidade que o ajudaram a desenvolver o seu talento. Entre essas figuras, destacava-se João Salopi, uma pessoa que teve um impacto significativo na sua trajetória. Essa relação foi determinante para o seu crescimento como artista. Memé reconhece que, sem o apoio de Salopi, não teria alcançado a popularidade que tem hoje, dentro e fora da comunidade cabo-verdiana. Foi graças à ajuda dele e de outras pessoas que Memé finalmente conseguiu tocar gaita e começar a conquistar o seu espaço no panorama musical.

"Lembro-me de chegar a Portugal e começar a trabalhar no dia seguinte, com a mesma roupa com que tinha vindo, só tirei a gravata"

Memé Landim

Naquela época, a gaita era construída por quem a tocava, o que a tornava mais barata. Compravam-se os materiais, a caixa, e fabricava-se a gaita. "Em três meses, aprendi tudo o que precisava sobre a gaita", afirma Memé. Além de João Salopi, Memé aprendeu também com outros tocadores, como Orlando Gomes, que na altura tinha vindo de São Tomé para Cabo Verde com uma gaita grande.


Memé começou então a tocar em bailes pela ilha de Santiago, em locais como Salineiro, São Martinho, Picos e outras localidades. Foi a partir desses eventos que começou a ganhar dinheiro com a música. Com um sonho e alguns escudos no bolso, Memé rumou a Portugal em 1971, deixando a sua gaita em Cabo Verde. "Fui acolhido pelo meu tio. Lembro-me de chegar a Portugal e começar a trabalhar no dia seguinte, com a mesma roupa com que tinha vindo, só tirei a gravata", recorda, enquanto serve um copo de grogue. 


Na altura, Memé trabalhava na construção civil, ganhando 82 escudos por dia. Pouco depois, passou a trabalhar na linha dos elétricos, onde já recebia 110 escudos. Seis meses após a sua chegada, conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar uma nova gaita, que lhe custou 1.150 escudos — um marco importante tanto para si como para a sua família. 


Com esse rendimento, Memé não só comprou a gaita, como começou a enviar dinheiro ao pai. Parte do que ganhava vinha da música, tocando em obras e em pequenos bares da comunidade. Apesar da resistência inicial, continuou a enviar dinheiro da música. "Todas as segundas-feiras mandava dois contos e quinhentos". A música, além de o libertar, permitiu-lhe apoiar a família, e esse foi um momento significativo na aceitação por parte do pai, que inicialmente o proibira de seguir a carreira musical, mas mais tarde reconheceu a sua importância.

Meme Landim entrevista

Memé Landin na Associação Cavaleiros de São Brás | 📸 Wilds Gomes

Memé, então, já ganhava acima da média, conseguindo em uma semana o que um trabalhador comum ganhava num mês. Esse sonho tornou-se possível graças à facilidade de difundir a música que tocava e cantava. Aos domingos, na casa onde morava com primos, irmãos e amigos — um total de 12 pessoas, no Cacém —, era "obrigado" a tocar, gravavam-no, e ele ganhava dinheiro com isso.


Em 1975, casou-se, na altura vivendo na Amadora, no Bairro de Santa Filomena. Pouco depois, mudou-se para Miraflores, no bairro da Pedreira dos Húngaros. Percorria quase todos os bairros da Linha de Sintra para tocar, desde a Damaia, Buraca até Fontainhas. Cinco anos após a sua chegada a Portugal, as saudades de casa começaram a apertar, e Memé voltou a Cabo Verde, onde já era conhecido e foi calorosamente recebido.


Após o regresso à sua terra natal, seguiu para Espanha e, finalmente, França, onde vive desde 1977. Memé construiu grande parte da sua vida pessoal e profissional em França, embora admita que, inicialmente, o Funaná não era muito popular por lá. Só no final dos anos 90, com o sucesso de grupos como Ferro Gaita, é que o Funaná começou a ganhar notoriedade na diáspora cabo-verdiana e em outros países. Memé reconhece o papel crucial do Ferro Gaita na ascensão do Funaná.


Antes disso, como muitos artistas cabo-verdianos, Memé enfrentou dificuldades para encontrar espaço no mercado musical europeu. Mesmo assim, conseguiu lançar o seu primeiro álbum, Canga Boi, em 1999, com Zeca di Nha Reinalda, um marco na sua carreira. Seis anos depois, em 2005, lançou o seu segundo e último álbum, Tchada Pilam Katuta.

"Cada vez mais sinto mais vontade de tocar e cantar"

Memé Landim

Meme Landim entrevista

Memé Landin na Associação Cavaleiros de São Brás | 📸 Wilds Gomes

O longo percurso de Memé na música foi marcado por altos e baixos, mas nunca perdeu a paixão. Com mais de 50 anos de carreira e 73 anos de idade, menciona que o apoio dos fãs tem sido um dos seus maiores motivadores para continuar. "A motivação vem da população, dos fãs, que sempre disseram que gostavam e viviam da minha melodia. Isso sempre me deu força e coragem. Cada vez mais sinto mais vontade de tocar e cantar", confessa. Esse carinho do público ao longo das décadas tem sido uma fonte constante de energia para se manter ativo e criativo.


Uma das coisas que Memé nota é a evolução da música cabo-verdiana e o surgimento de novos estilos, como o Cotxipó — uma variante mais acelerada do Funaná —, que tem ganhado popularidade entre os jovens. Embora alguns críticos acusem o Cotxipó de "estragar" a música tradicional, Memé discorda. "Cotxipó é para os jovens. Funaná é para os mais antigos. Cada um ouve o que quer. Os dois podem coexistir; são estilos diferentes, mas ambos se desenvolvem a partir do som tradicional. O importante é que a música continue a evoluir e que cada geração tenha a liberdade de criar e expressar-se da forma que lhe parece mais autêntica".


Hoje, com a sua vasta experiência de vida e de carreira, Memé continua a criar e a inspirar, mostrando que, independentemente da idade ou das adversidades, a música continua a ser uma força que move gerações. "Estou contente com tudo", afirma, com o espírito de quem ainda tem muito a oferecer, e garante que tem novos projetos para apresentar entre este e o próximo ano.

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