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MIA 2024

Migrantes africanos em Lisboa, o limbo entre os sonhos e o muro burocrático

August 2, 2024
Migrantes africanos em Lisboa, o limbo entre os sonhos e o muro burocrático
À esquerda, Gora, de 30 anos, de Kaolack e Gora de 31 anos, de Saint-Louis

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Na zona dos Anjos, em Lisboa, há vários meses que cerca de 100 pessoas vivem numa situação dramática. São sobretudo jovens, originários de países como o Senegal, a Gâmbia e a Mauritânia, que partiram das suas respetivas terras à procura de um futuro melhor na Europa. Partiram com a certeza, imaginada, que o que quer que o velho continente tivesse para oferecer seria muito melhor do que pouco ou nada que tinham nos seus países. Em Portugal, à semelhança do que acontece em França, Grécia, Itália, Espanha e nos restantes países europeus onde as muitas embarcações sobrelotadas encontram destino, a realidade é muito diferente dos sonhos que os motivaram a fazer a travessia tantas vezes mortal.


Na última edição especial da Wikipédia Visbilidade Negra, organizada pelo coletivo Wiki Editoras Lx, com a curadoria da BANTUMEN, conhecemos dois destes jovens. Ambos chamam-se Gora, nasceram no Senegal e há cerca de sete meses chegaram a Portugal. Fazem parte do coletivo solidário Cozinha Migrantes do Anjos, um apoio fundamental para os mais de 100 migrantes acampados perto da Igreja dos Anjos. Gora, de 31 anos, é natural de Saint-Louis, uma cidade costeira do Senegal com mais de 254 mil habitantes. A cidade, primeira capital do país, é um importante centro económico, com um terço da população envolvida na economia informal e um sector de pesca que sustenta muitas famílias. O outro Gora, de 30 anos, vem de Kaolack, uma região fronteiriça com a Gâmbia, que abriga cerca de 1,3 milhões de pessoas. A cidade de Kaolack, com aproximadamente 298 mil habitantes, também tem uma forte ligação ao sector da pesca.


Estes jovens partiram do Senegal há sete meses, numa viagem que incluiu uma travessia de cerca de dez dias de barco até Tenerife, em Espanha. "Muitos disseram-nos que na Europa as coisas não são tão boas quanto imaginamos, mas preferimos ver por nós próprios," disse Gora de 31 anos. Após um mês em Espanha, decidiram seguir para Portugal, movidos por histórias que ouviram sobre o país, desde a infância e outras contadas por familiares que passaram entretanto por terras lusas. Chegados a Lisboa, a esperança de encontrar trabalho e uma vida digna rapidamente se transformou numa luta diária pela sobrevivência e contra a discriminação e rejeição.


Entre os muros burocráticos que se vão erguendo contra a presença legal destes migrantes em Portugal [considerando que, ilegalmente, milhares tornaram-se na força de trabalho motriz da indústria agrícola e não só], os dias destes jovens africanos são passados na rua, onde dormem ou em filas para a AIMA ou para falar com advogados, que de forma voluntária têm tentado encontrar soluções.


O pedido de asilo feito por ambos foi negado, deixando-os num limbo burocrático sem acesso a direitos básicos. A nova lei de imigração, adotada em junho, extinguiu a manifestação de interesse para obtenção de residência e estabeleceu que os imigrantes só podem ser aceites no país com um visto de trabalho obtido antes da chegada. Esta mudança legal dificultou ainda mais a situação dos migrantes, empurrando-os para a ilegalidade e expondo-os a redes de tráfico e exploração laboral.


Neste contexto desolador, o coletivo solidário Cozinha Migrantes dos Anjos tem sido fundamental para garantir algum apoio. Fundado por apoiantes, o coletivo não é uma organização formal, mas sim um grupo de pessoas mobilizadas para ajudar os migrantes a enfrentarem as suas dificuldades diárias. "Moro perto, passo por ali todos os dias," explica uma das pessoas envolvidas. "Quis perceber o que se estava a passar e falei com algumas pessoas para entender o que precisavam. Juntamos algumas pessoas e percebemos que a comida era uma necessidade óbvia."



A Cozinha Migrante dos Anjos funciona de forma autónoma e cooperativa. Com o apoio de outra associação, que lhes permite um espaço para cozinharem, ali os migrantes cozinham, convivem, ajudam-se mutuamente e encontram um espaço de apoio e descontração. Além de fornecer alimentos, o coletivo oferece outras formas de suporte, incluindo ajuda na aprendizagem do português através dos Encontros Falantes, e criam pontes com outras instituições ou profissionais que auxiliam com a burocracia.


A obtenção de documentos essenciais, como o Número de Identificação Fiscal (NIF) e o Número de Identificação da Segurança Social (NISS), é um desafio constante. Sem estes documentos, é impossível regularizar a sua situação ou aceder ao mercado de trabalho formal, o que os coloca numa posição vulnerável, sujeita à exploração laboral.


A área profissional que estes jovens melhor conhecem é a pesca, mas em Portugal, para trabalhar como pescador, é necessário ter uma habilitação específica, que só pode ser concedida se o candidato tiver NIF e NISS. Esta exigência burocrática coloca mais um obstáculo no caminho dos migrantes, que já enfrentam uma série de dificuldades.


https://www.instagram.com/p/C82x9GXszNn/


Os dois Gora, como muitos dos seus companheiros, têm histórias de vida marcadas pela dureza do trabalho desde tenra idade no Senegal. Ambos vêm de famílias de pescadores e sonham encontrar um lugar onde possam aplicar os seus conhecimentos e sustentar as suas famílias que ficaram na sua terra natal. Quando questionados sobre as oportunidades na área da pesca em Lisboa, reconhecem que cidades como Peniche podem oferecer melhores perspetivas.


Enquanto os sonhos permanecem inalcançáveis, estes migrantes são suscetíveis a propostas de trabalho abusivas. Um exemplo disso foi um episódio em que foram recrutados por um matadouro, mas após uma semana de trabalho, o contrato de trabalho prometido continuava a ser adiado. Perante esta situação, os jovens decidiram abandonar o emprego.


A situação dos migrantes africanos na zona dos Anjos é um retrato da complexidade e dos desafios da imigração em Portugal. Há oito meses a viverem na rua, as respostas das entidades competentes para uma solução temporária de abrigo tardam em chegar e, num sistema que frequentemente deixa os mais vulneráveis à margem, a solidariedade e o apoio comunitário, como o proporcionado pela Cozinha dos Migrantes dos Anjos, são essenciais para garantir a dignidade e a sobrevivência daqueles que procuram um futuro melhor.


A única certeza que para já têm é que pelo menos os cidadãos comuns podem continuar a ajudar estes jovens até estes conseguirem o que mais procuram: trabalho. Seja através de apoio legal, financeiro, alimentos, vestuário, medicamentos não sujeitos a receita médica ou aulas de português. Para tal, basta entrar em contato com a Cozinha dos Migrantes ou diretamente com os próprios migrantes, que pernoitam em em frente à Igreja dos Anjos.

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