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"Espero um mundo onde cada país tenha leis que protejam e respeitem todas as pessoas", Paulo Pascoal

November 4, 2024
paulo pascoal entrevista
Paulo Pascoal | DR

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Após mais de 25 anos de carreira, Paulo Pascoal, ator, autor e ativista, com 42 anos, continua a aproveitar a sua trajetória multifacetada para passar uma mensagem de propósito e responsabilidade social. Embora tenha passado muitos anos em grandes palcos, hoje, Paulo destaca-se também como escritor, com o lançamento da sua primeira obra “XPR4xTX” (O 4.º Preto). Este livro marca um novo capítulo da sua jornada artística e pessoal, enquanto honra simultaneamente o seu passado tumultuoso. Mas afinal, quem é mesmo Paulo Pascoal? “Sou apenas uma alma que se materializou neste corpo em constante evolução e aprendizagem, vivendo um dia de cada vez com entusiasmo e tentando terminar cada um desses dias com satisfação”, conta à BANTUMEN.


Paulo cresceu em Angola até aos 12 anos, quando deixou o país rumo à Espanha, onde estudou num seminário de padres. Relembrando a sua infância, fala com carinho e nostalgia. “Crescer em Angola foi muito bonito, considerando as circunstâncias, porque estávamos em guerra. Há elementos adjacentes a essa experiência, mas eu tive uma infância relativamente normal, segundo os padrões sociais daquele tempo”, confessa. “Para nós, afrodescendentes, crescer em África é uma vivência singular, que quem lá vive sabe exatamente o que significa. Na época, eu não tinha a consciência que tenho hoje, então era tudo sobre viver o dia a dia com aquilo que tínhamos e que nos era permitido.”


A mudança para Portugal, entretanto, é uma história bem mais recente. Paulo partilha que, após a experiência na Espanha, viveu muitos anos nos Estados Unidos e no Canadá, antes de finalmente começar a passar mais tempo em Portugal. “A minha conexão com Portugal começou há cerca de 20 anos, quando passei a fazer escalas mais longas aqui a caminho de Angola. Aos poucos, aquelas horas entre voos transformaram-se em dias, depois em fins de semana, até que um dia fiquei um mês inteiro, um verão. Foi então que pensei: Portugal parece ser um bom lugar. Quero mudar-me para Lisboa, reconectar-me com as minhas raízes, com Angola e comigo mesmo. E esta foi uma decisão importante para mim.”

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calema voyage II
paulo pascoal entrevista

Paulo Pascoal | DR

paulo pascoal entrevista

Paulo Pascoal | DR

Na sua essência, Paulo Pascoal é o resultado de uma trajetória nómada, de alguém que viajou entre continentes e deixou-se moldar pelas experiências e pelas lições diárias. Mesmo assim, há uma solidez, uma raíz que traz consigo e que o forma, sobretudo em Portugal, onde, a cada dia, se sente a florescer. Entre várias culturas e realidades, a sua visão do mundo expandiu-se e tornou-se única. A sua infância em Angola foi marcada pela inocência, o aconchego familiar e o estar "entre os seus". Nos Estados Unidos, por outro lado, descobriu-se a si mesmo e sentiu pela primeira vez uma liberdade genuína, uma liberdade que só encontrou no pulsar criativo de Nova Iorque. Nessa cidade, desabrocharam as suas expressões de artista e de pessoa queer. Entre trocas culturais e constantes reinvenções de identidade, Paulo foi-se formando.


Mais tarde, foi o Canadá que o acolheu, um espaço onde assentou essas descobertas e explorou, com maturidade, as camadas do seu eu recém-descoberto, depois de um mestrado em Estudos Culturais Africanos. Voltando-se novamente para África, tentou viver em Angola, mas encontrou barreiras que o fizeram procurar outras paragens. “A Angola que conheci necessitava de mudanças estruturais para eu sentir que podia existir em plena liberdade,” explica Paulo. Foi então que São Tomé e Príncipe se tornou o seu refúgio. Ali, encontrou uma paz crua e uma vivência natural, principalmente na Ilha do Príncipe, onde se apaixonou pela simplicidade dos seus pouco mais de sete mil habitantes e pela energia jovem - maioritariamente com menos de 15 anos de idade. Dessa vivência surgiu a inspiração para o seu projeto R.I.N.A. (Reconexão Imaginativa para Nativos Africanos), uma metodologia de ensino que desenvolveu para integrar as artes performativas nas escolas, criando um espaço de reconexão cultural e espiritual com a população local. Apesar do carinho e das aspirações, Paulo admite que o regresso a África pode ser desafiante e desmistifica as expectativas românticas, sublinhando que, muitas vezes, são os próprios pares africanos que complicam a adaptação daqueles que tentam regressar.


Portugal surge assim como o marco geográfico onde o artista se define e se afirma enquanto “corpo político”. Sente-se, de repente, marcado pelo sistema. "Tornei-me negro, um negro para o sistema, com todas as limitações impostas: sem papéis, sem acesso à academia, sem tantos outros privilégios." Com esta consciência, Paulo começa a estruturar a sua vida por camadas e a aceitar as transições da sua existência.


Entre gargalhadas e uma ironia madura, o ator reconhece que a sua vida poderia ser "digna de uma série Netflix", recheada de desafios, momentos quase inverossímeis e situações que parecem saídas de uma biografia ficcionada. Ao longo dos seus 42 anos, muitas vezes já se perguntou onde reside a verdade na sua narrativa, e daí surge a ideia de "bioficção", um neologismo que criou como uma forma de suavizar as fricções da sua própria história. “É tudo real, mas parece ficção,” conta Paulo com um sorriso nos lábios. Hoje, vive uma transformação enquanto autor, com o primeiro livro de uma trilogia a conquistar leitores numa voracidade incrível. Cada página é lida como se fosse uma experiência partilhada, uma realidade íntima que agora ganha vida nas mãos de desconhecidos e, mesmo para Paulo, é um momento de assombro. "Agora sim, sinto que a minha vida se transforma em algo novo, porque partilhei um diário que nunca foi escrito para ser lido!", revela.


Mas se lhe perguntassem sobre o momento mais transformador da sua vida, Paulo hesitaria em classificar algo como definitivo. “Estou em constante transformação,” diz, sem sentir necessidade de documentar ou de hierarquizar os momentos da vida como melhores ou piores. Já houve outros tempos em que considerou outras fases como transformadoras, como quando enfrentou um linfoma por três vezes. Recorda-se, com humor, de quando foi preso por roubar música na Virgin Megastore da Times Square — um pequeno episódio que evoca, entre risos, como mais uma das tantas "temporadas" da sua vida.


O artista não se define em linhas rígidas. Entre sonhos, percalços e uma vontade insaciável de construir o seu espaço, ele permanece na procura constante pela autenticidade e pela liberdade de ser. Cada país, cada cidade, cada pessoa com quem se cruzou, foi tudo parte dessa jornada que, entre avanços e desvios, o tornou quem é. E, talvez, se um dia lhe voltarem a perguntar sobre a sua transformação, a resposta poderá ser, novamente, completamente outra.


Paulo Pascoal viveu toda a sua infância em Angola, onde desde cedo confrontou-se com os estereótipos em torno da masculinidade. A sua voz aguda e o rosto delicado atraíam comentários como "muito bonito para ser menino" ou "é Paulo ou Paula?". Na escola primária, onde as crianças usavam batas brancas, essas observações tornavam-se comuns, criando um ambiente que dificultava a compreensão das normas cis-heteronormativas entre meninos e meninas.


A vida de Paulo foi moldada, em grande parte, pela presença das mulheres que o educaram. Com a morte trágica do pai, quando o artista e autor tinha apenas seis anos, cresceu sob os cuidados da avó, das tias e da mãe. Essas mulheres, mães solteiras, de personalidade e resiliência extraordinárias, marcaram profundamente a sua visão do mundo e o seu próprio conceito de masculinidade. Desde cedo, o artista observou e normalizou o que via nelas, uma ligação inevitável com a feminilidade, não como uma razão para a sua identidade queer, mas como um reflexo natural da convivência e influência dessas mulheres poderosas.


No entanto, Paulo entende bem o perigo da sociedade impor a todas as pessoas queer um padrão "feminino", reforçando estereótipos que não refletem a complexidade da identidade individual. "No meu caso, é mesmo porque eu vim com tudo a que tenho direito", comenta, rindo. E foi no seminário, onde ingressou com o desejo de seguir a vocação religiosa, que sentiu, pela primeira vez, a pressão para se enquadrar numa masculinidade rígida. Era esperado que reprimisse gestos, movimentos e o próprio tom de voz, reduzindo-se àquele modelo padrão que, para muitos, simboliza a masculinidade. "O que percebi foi que a sociedade cria um comportamento padronizado para que o homem se afirme como tal" - desabafa. Paulo conheceu esse modelo em casa, no pai que recorda, e, ao longo dos anos, foi adaptando-se a ele, transformando essa não conformidade em estudo e autoconhecimento.


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Paulo Pascoal | DR

A grande viragem deu-se em Nova Iorque. Ali, longe das pressões e dos olhares traiçoeiros, Paulo encontrou, pela primeira vez, um espaço onde poderia explorar a sua identidade com liberdade. A cidade, com a sua diversidade e aceitação, proporcionou-lhe a oportunidade de observar a multiplicidade de expressões queer e perceber que já não precisava de reprimir a sua própria essência. Pessoas de mãos dadas, beijos entre casais homoafetivos, tudo isso reacendeu nele o desejo de ser autêntico. Ali, renasceu o verdadeiro Paulo, que já não precisava esconder os gestos ou moldar a voz para parecer algo que não era. Contudo, essa desconstrução, admite, é um processo contínuo. Aos 42 anos, Paulo ainda nota o "Paulo construído" a emergir em ambientes onde a masculinidade tóxica predomina. "Às vezes, sem perceber, lá estou eu a baixar o tom de voz ou a adotar uma postura mais rígida", confessa. É uma luta constante entre o Paulo que se libertou e aquele que, ocasionalmente, se sente inseguro. A insegurança, reconhece, é algo com o qual qualquer pessoa lida, e a sua jornada para abraçar todas as suas facetas ainda está em curso. "Há dias em que me sinto empoderado e outros em que não estou no meu melhor", concluiu, num tom que pondera a vulnerabilidade de quem escolheu ser, todos os dias, mais fiel a si próprio.


O ator mostra-nos a importância de compreender a necessidade de uma reconstrução interior quando nos afastamos da nossa zona de conforto, desafiando as camadas que nos foram ensinadas e tentando reconhecer-nos no reflexo do que, às vezes, se torna tudo à nossa volta. Assim, acolher essa realidade implica aceitar que podemos voltar a cair nos velhos hábitos que moldaram quem somos, hábitos que muitas vezes carregam o peso da cultura e da tradição. Ter a consciência constante desses padrões pode ser um exercício árduo, por vezes, até contraproducente. “No final do dia, é preciso acolher essas supostas falhas e sermos gentis conosco”, acrescenta.


No ativismo que o move e define, o artista entrelaça vida, resistência e resiliência. Ele próprio reconhece que o ativismo pelos direitos LGBTQIA+ é um espelho do seu próprio corpo e experiência, por vezes forçados a um jogo de portas entreabertas, onde as condições impostas tentavam descrever limites à sua identidade. O que o levou a envolver-se tão profundamente, diz, foram justamente esses silenciamentos disfarçados de concessões, e o eco dessas vozes de resistência revela-se até no título da sua mais recente obra “O 4.º Preto”. 


Este título — que à primeira vista pode parecer apenas um símbolo de uma lista, uma posição — é para ele um ponto de sátira, uma provocação que questiona as dinâmicas de aprovação social e os filtros que categoricamente excluem corpos não canónicos, negros, queer e imigrantes. Paulo revela que a nomeação como “o quarto preto mais bonito do mundo” surgiu no final do mesmo ano em que escreveu o seu diário agora publicado, uma nomeação que, longe de ser um elogio, trazia consigo um desconforto profundo. “Eu odiava essas etiquetas e até hoje tenho uma relação difícil com tops e prêmios, pois considero tudo bastante questionável. Muitas vezes não se trata de mérito, mas de lobby, de conexões sociais, de onde vens.” Durante anos, Paulo perseguiu esses espaços de destaque, até perceber que, se não fazia parte desses lugares, não era pela falta de talento e dedicação, mas pela sua condição de ser negro, queer, imigrante e não estar vinculado ao que é tido como padrão.


Logo, “O 4.º Preto” torna-se uma apropriação de uma posição à margem, onde o “primeiro lugar” nunca foi desenhado para ele — um título com o tom irônico de “o primeiro dos últimos”, onde o não reconhecimento é uma constante. Estando longe das medalhas e do pódio, Paulo reconhece que essa crítica que faz é um reflexo das suas vivências, seja em Angola, seja em Portugal, lugares que carregam nas entrelinhas esses limites. Chegar a Portugal já “formado e pronto”, só o levou a encontrar um espaço saturado de negações e migalhas: “Aqui não dá, aqui não funciona, aqui não há espaço”, recorda, rememorando as oportunidades imaginadas e para as quais, paradoxalmente, esperavam a sua gratidão.


Mesmo com esse caminho de resistência e de rejeição aos moldes que não o contemplam, Paulo Pascoal revela uma aceitação da sua missão com um toque de espiritualidade. “O movimento escolheu-me; é o propósito da minha alma. Sinto que, em outra vida, devo ter acumulado erros, e esta é a minha forma de redenção: voltar como preto, africano, queer, pobre, artista, carregando um corpo marcado por uma condição crônica de saúde”. Para Paulo, a escolha não existe — ele é a pessoa que ninguém quer ser, porque o que ele representa é, ainda hoje, a margem da margem. E, no entanto, ele honra essa condição, como se fosse o fardo que decidiu carregar para que outros, como ele, possam encontrar paz e aceitação em si.


A jornada do ativismo mistura-se, também, com a história da imigração que transforma profundamente a relação do artista com o conceito de “casa”. Para ele, casa não é um local, mas o corpo que o acolhe, que nunca falha em servi-lo. “É o único espaço verdadeiramente meu”, afirma, refletindo sobre as múltiplas vezes que recomeçou do zero, sem nada, salvo o próprio corpo. Com o tempo, a casa expandiu-se para os afetos que formam a sua rede de apoio — amigos e laços que o sustentam em amor, amizade e partilha.


Hoje, apesar de uma vida relativamente estável em Lisboa, onde desfruta de um lar e de uma segurança inédita, Paulo sente-se distante de qualquer ideia de permanência. A estabilidade material é assim, para ele, subjetiva. “A qualquer momento, posso ter uma nova vontade de partir”, menciona, motivado pela incerteza constante que o acompanha e pelas mudanças que o seu livro e o seu trabalho social suscitaram na sua vida. A seu ver, Portugal foi uma peça essencial na sua construção pessoal, uma escola de vida que o formou enquanto ativista, artista e pessoa negra imigrante. Contudo, Paulo sente que chegou a um ponto em que a missão aqui está cumprida, e talvez esteja na hora de abraçar o novo e seguir em frente.


Inerentemente, nesse trajeto marcado pela transformação e pela busca incessante, Paulo entende que a definição de lar nunca foi sobre um destino, mas sobre estar disponível para as possibilidades que cada movimento e mudança oferecem. É um entendimento de “casa” que se encontra na flexibilidade da alma e nas raízes profundas que ele carrega, mesmo quando se vê movido por novas urgências e dúvidas — urgências que o convocam a desafiar fronteiras, físicas e simbólicas, que um dia lhe foram impostas.


Sem hesitação, perder-se é uma etapa necessária para que alguém possa, de facto, encontrar-se, diz o autor. A natureza desta perda, explica ele, é essencialmente uma aceitação do que é ser humano. O mundo ainda marginaliza identidades e, nesse contexto, ele aconselha: “não há problema em sentir-se perdido; pelo contrário, é um convite para se permitir acolher a incerteza”. Para ele, cada fase de desencontro é, paradoxalmente, um encontro consigo mesmo, pois a vida é uma experiência em constante construção. A sua mensagem ressoa como uma aceitação honesta do processo de perder-se para evoluir. “Quanto mais perdido, mais encontrado.” diz, como se a inquietação e o estranho fossem necessários para o autoconhecimento e para a criação. Ele explica que “para que haja sonho, é preciso haver dor; para que haja criação, é preciso haver trauma”. Apoia-se na ciência para expor que a noradrenalina, substância associada à dor, também é aquela que surge nos sonhos, traçando uma linha invisível entre sofrimento e esperança.

"Eu só ocupo o espaço da minha liberdade"

Paulo Pascoal

Nesta perspectiva de aceitação, Pascoal também alerta que, dentro deste espaço de dúvida e reconstrução, o preconceito e a discriminação não podem ter lugar. Pelas suas palavras, “não podemos discriminar as pessoas que estão perdidas; essa é a única consciência necessária.” Reconhece que, para alguns, o caminho pode parecer linear, garantido por privilégios financeiros ou familiares, mas para aqueles que são racializados ou imigrantes, a trajetória é outra, sempre marcada pela necessidade de adaptação e superação. Ele defende que a vida, afinal, “é um relacionamento, não um evento”, e que se deve compreender que alguém que falha hoje encontrará uma resolução amanhã, desde que seja acolhido com empatia pelos seus.


Quando reflete sobre o significado de “liberdade”, Paulo desconstroi o conceito de forma profunda, trazendo à tona o peso que a visão eurocêntrica imprime sobre esta palavra tão disputada. Para ele, liberdade é menos uma questão física e mais uma experiência espiritual. Adotou como mantra pessoal a frase “eu só ocupo o espaço da minha liberdade”, afirmando que “onde estou, esse é o meu lugar”. Por ter vivido muito tempo sem permissão legal para sair de Portugal e estar com a sua família, diz que teve de adaptar-se e transformar qualquer espaço em que estivesse no seu lugar de liberdade. Essa autodeterminação, por ele cultivada ao longo dos anos, confere-lhe hoje uma perspicácia apurada para identificar quando um ambiente é hostil e, num piscar de olhos, afastar-se dele.


Através dos olhos de Paulo, a liberdade é vista como um espaço de autopercepção e coragem; é ser capaz de agir na sua verdade, sem medo das consequências. “Liberdade para mim é esse sentimento de auto-poder, de atrevimento, e de permissão para fazer as coisas sem medo das consequências” ,esclarece. Mas, ao contrário do ideal de liberdade total, entende que esta é uma experiência pessoal e subjetiva, envolta por sistemas, estruturas e códigos nem sempre acessíveis a todos. Aponta como as regras de mobilidade internacional, por exemplo, criam uma dualidade e hierarquia clara entre a liberdade que é facilmente alcançada por alguns e aquela que parece inalcançável para outros. “Liberdade é subjetiva,” diz, “porque vais viajar e precisas (à priori) de um visto, de um bilhete de passagem de ida e volta, de uma carta de chamada, enquanto algumas pessoas europeias podem viajar para mais de cem países sem nenhum desses entraves.” A liberdade, portanto, torna-se um privilégio desigual, moldado por estruturas históricas e culturais.


No que toca à espiritualidade, Paulo revela-se alguém profundamente conectado com forças transcendentais. Desde cedo, sentiu-se como um canal para o bem comum, e hoje encara essa ligação espiritual como algo indiscutível. Sente a presença constante de seres espirituais ao seu lado e reconhece que, embora seja socialmente solitário, nunca está realmente só. Esta espiritualidade, fortemente enraizada na matriz africana, traz-lhe uma sensação de pertencimento e continuidade. Reflete que “este corpo tem no mínimo 14 gerações de trauma, para que eu pudesse existir. Estas vidas incluem o meu pai, as minhas tias, os meus avós e as minhas avós; pessoas que passaram por aqui e que de alguma forma me contagiaram, fizeram parte da minha vida e que deixaram alguma coisa, mesmo já não estando presentes na fisicalidade”. Por outro lado, essas vidas também incluem amigos que partiram cedo, mas que deixaram marcas indeléveis no seu ser. Assim, Paulo constroi uma ponte entre a memória e o presente, revivendo e homenageando aqueles que amou. Pessoas como Angélico Vieira e Sara Tavares continuam presentes na sua vida de maneira intencional e quotidiana.


“Eu faço questão de viver uma vida que também os permita desfrutarem dessa integração da morte, na minha vida. Eu vivo muito com essa consciência. Por exemplo, cada dia 19 do mês, uso um vestido, uma saia ou uma blusa da Sara porque a vesti nos últimos 7 anos de vida e portanto, quando ela faleceu, a família dela pediu-me que o fizesse uma última vez, antes da cremação. Hoje, tenho várias peças de roupa da Sara que foram partilhadas pela família e como celebração do ‘mesário’, eu uso uma peça todos os meses. Isto é uma forma de fazer com que a Sara se mantenha viva através da minha vida e no meu quotidiano.


Paulo emerge então como um artista que ressignifica dor, que encontra liberdade nas entrelinhas de uma sociedade condicionada e que vive com uma espiritualidade profunda e contínua, sustentando-se nas suas memórias e nas suas perdas. Revivendo assim, constantemente, por memórias e reconstruindo realidades sem que o luto pese e que honre também as pessoas que marcaram bastante quem é hoje.


Aos olhos de Paulo Pascoal, as questões de transformação social não podem ser vistas como responsabilidades de um só indivíduo. Embora a sociedade muitas vezes exija que figuras como ele sejam porta-vozes, agentes de mudança, Paulo rejeita essa posição única. “Eu não sei... Eu tenho vindo a tentar descartar-me dessas responsabilidades assim coletivas porque acho que não consigo ser representativo de tudo e de todos porque é um lugar impossível. Somos todos diferentes e temos todos especificidades e as nossas próprias subjetividades.”


“Então, esse poder de ocupação que é o poder da história única, de que uma pessoa apresenta o protótipo radical para todo o resto, acredito que seja um estatuto colonial e capitalista. Eu não quero ser essa pessoa, não quero ocupar esse lugar de ser exemplo para ninguém. O que eu quero sim, é que no fim desta vida, ou se puder ainda ser em vida, é que as pessoas percebam o que ando aqui fazer. Mesmo não sabendo muito bem o que é.”


Sendo assim, o artista declara que o ritmo da mudança é instável. “A mudança é necessária, mas é errante. Às vezes, parece avançar e outras vezes estagna”, contempla. E quando pensa nas suas próprias vivências, considera que Portugal ainda está "desfasado" especialmente no que toca ao acesso e à representatividade da comunidade negra e queer. "A comunidade aqui precisa dos códigos de acesso, do capital, das condições para a criação ou, simplesmente, para se conhecer," desabafa. É uma busca incansável por ver a comunidade crescer e fortalecer-se, mas sem o peso de ser o seu rosto único. “O problema é que, às vezes, caímos na ilusão de que somos nós a fazer a diferença, quando na verdade somos apenas uma ferramenta, um canal entre tantos.”

Esse papel de “agente de mudança” carrega consigo um fardo, e Paulo reconhece que ser idolatrado por essa responsabilidade pode cobrar um preço elevado na saúde mental e emocional. "O senso de ativismo pode ser consumidor e exaustivo. Criação e defesa não coexistem, tal como no futebol. O defesa poucas vezes marca golos porque cada um tem o seu papel", ilustra, quase poético. “Se estamos focados em sobreviver, como podemos criar? O sistema mantém-nos ocupados com a sobrevivência para nos desviar do ato de criar.”

Sobre saúde mental, Paulo revela um processo pessoal de autodescoberta e autocuidado, mesmo em tempos em que a terapia não era acessível. “Escrever, escrever e escrever foi o meu método,” afirma. Vê na escrita um exercício de autonomia, uma terapia própria para organizar os pensamentos e confrontar os traumas, especialmente nas alturas em que não havia condições financeiras para procurar ajuda profissional. Para ele, o ato de colocar no papel é mais do que uma simples prática de libertação; é uma forma de autossuficiência. "Exteriorizar os pensamentos no papel é um ato poderoso. É como se, ao escrever, eu tivesse um lugar seguro para dar forma às emoções e despir a pele dos traumas,” elucida.

Foi apenas em 2020, durante a pandemia, que o artista se confrontou com o passado, ao revisitar o diário escrito 20 anos antes. A experiência foi como uma viagem aos cantos mais profundos da sua mente, reativando sentimentos há muito adormecidos. “Ao ler aquele diário, senti que havia muita coisa que ficou enterrada na pele, e percebi que era altura de procurar ajuda terapêutica,” admite. No entanto, ainda enxerga na escrita o seu refúgio e a sua ferramenta de cura mais fiel, pois ao passar cada palavra para o papel, dá voz àquilo que, de outra forma, continuaria a ser apenas silêncio.


Em relação ao estado da inclusão na indústria do entretenimento em Portugal, o artista diz honestamente que “a inclusão ainda é uma questão muito embrionária e, sinceramente, bastante superficial. Falamos de inclusão, sim, mas a realidade é que a indústria aqui parece resistir à mudança, especialmente nas posições de poder, que há anos são ocupadas pelas mesmas pessoas. É um sistema cristalizado, com produtores e canais a insistirem em fórmulas repetidas, onde a diversidade é quase uma nota de rodapé. Pior, vejo figuras públicas como Cláudia Simões e Mamadou Bá a enfrentarem uma hostilidade institucional, e tudo isso só mostra que, no fundo, muitos ainda não estão dispostos a reconhecer e apoiar as minorias demográficas de verdade.”


“Ainda estamos num processo de aprender a reconhecer o valor das nossas próprias histórias, pois temos muito para curar”

Paulo Pascoal

“Por vezes, parece até que a inclusão existe apenas para preencher quotas. Para muitos, ser uma figura representativa de uma minoria no cinema ou no teatro é um fardo, porque, por vezes, a própria comunidade e o público não sabem como abraçar esse espaço e o que isso simboliza. Já me cansei de tentar ocupar esses lugares e, agora, continuo porque tenho a responsabilidade, mas também o desejo, de mostrar que o talento negro e queer tem espaço sim, mesmo que, por enquanto, ainda seja visto como 'estranho'. É importante que o espectador que vê uma pessoa negra ou queer em destaque na TV, no cinema ou no palco possa, finalmente, se ver ali, sentir que aquele espaço é seu também.”


“Ainda estamos num processo de aprender a reconhecer o valor das nossas próprias histórias, pois temos muito para curar. Portugal, tal como os nossos países africanos, ainda não se libertou verdadeiramente dos estigmas coloniais. Há muito racismo, homofobia e xenofobia profundamente enraizados e que impedem essa verdadeira inclusão. E isso requer tempo, paciência e, sobretudo, empatia, tanto da sociedade para conosco quanto entre nós mesmos”, afirma.


“Acredito que esse processo de aceitação ainda está no começo, porque o nosso entendimento de inclusão precisa de amadurecer. Em última análise, a mudança acontece de forma lenta, mas inevitável. Já vejo amigos meus a sentirem-se mais à vontade comigo, a deixarem de ver-me como 'o outro' e a abraçarem essa diferença, seja na cultura ou na própria forma de se relacionarem. É um processo, sim, mas acredito que, com paciência e muito trabalho, vamos chegar lá."


Olhando para o futuro e avaliando todos os seus sonhos e ambições, Paulo confessa, rindo levemente: “essa pergunta é muito ampla e, ao mesmo tempo, algo abstrata para mim. Não costumo pensar no futuro dessa forma. A minha saúde também me faz focar muito mais no presente, no que vou fazer agora, no que vou viver já. O futuro para mim não é uma ideia distante; é o próximo momento, a próxima refeição, o ato de entregar o meu livro. Planejar a longo prazo não é algo que faça sentido na minha vida. Vivo um dia de cada vez.”


Paulo reflete sobre os desafios de fazer planos, especialmente como alguém que carrega o peso de ser um “corpo político.” “Muitas vezes fiz planos, mas a vida tratou de os transformar, o que me ensinou a adaptar-me, a persistir, e a investir no futuro como ele se apresenta, sem tentar impor uma visão rígida sobre o que quero.”


Ainda assim, Paulo guarda um desejo para o futuro coletivo. “O que realmente quero ver é um mundo com mais equidade, menos desigualdade. Espero um mundo onde cada país tenha leis que protejam e respeitem todas as pessoas, incluindo as LGBTQIA+, onde haja menos bilionários e mais distribuição de riqueza. A humanidade ainda pode ser melhor. É isso que espero para o futuro — um lugar onde todos possam sonhar com liberdade.”

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