Poderemos nós algum dia descansar?

April 16, 2025
Poderemos nós algum dia descansar?
📸: Vista da sala de leitura - Pedro Pina

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Depois de um dia de trabalho, restou-me apenas uma hora para estar no centro da cidade e experienciar a exposição de Julianknxx Coro em Rememória de um Voo. Ao ali chegar, os nossos sentidos começam por ser ativados com o som do violino, tocado por Edvânia Moreno e o canto do coro invoca a presença do nosso espírito, antecedendo e preparando o corpo para ouvir os testemunhos sobre as longas caminhadas feitas por corpos negros dentro das muralhas da Europa, uma Europa construída sob o trabalho e a exploração desses mesmos corpos. 


Vejo assim uma exposição - que é uma belíssima obra cinematográfica - que permite-nos visionar a (sobre)vivência negra nas terras autoproclamadas do colono. Apesar de não conseguirmos observar, de forma tão direta, o retrato do não belo, ele está presente nesses corpos; as violências, o racismo, as horas a fio de trabalho, a falta de remuneração e condições dignas por esse trabalho, a falta de uma casa, o encarceramento, a subalternidade, a imposição do não ser e coletivamente não pertencer mas, sobretudo, o cansaço. Porque há muito tempo que estamos cansados e acumulamos cansaços. No final da jornada de movimento e cinematografia, Julianknxx leva-nos até à Sala de Leitura, um lugar para ler, ouvir, descontrair e, sobretudo, descansar.


Na Sala de Leitura, encontramos uma pequena biblioteca, que contou com a participação curatorial literária de Vítor Sanches, Dentu Zona – Cova da Moura, e também da equipa curatorial do programa público, Jesualdo Lopes, Paulo Pascoal, Rafael de Oliveira e Selma Uamusse


Olhamos para livros que talvez nos permitam encontrar respostas aos questionamentos identificados nos testemunhos ao longo da exposição, que talvez nos ensinem a vestir a pele negra sob o sol. Livros que são instrumentos para a sobrevivência do corpo negro na esfera do capitalismo, que nos informam sobre o ser, sobre existir, sobre nos afirmarmos e, principalmente, instrumentos para lutarmos coletivamente. Uma luta secular traçada pelos nossos ancestrais, e que nós herdamos, hoje, com novos contornos. 


Por isso, apesar de encontrarmos sofás e pufes para nos sentarmos e descansarmos na Sala de Leitura, ser negro é ainda estar com a mira da opressão apontada à nossa testa. 


Tornando-se utópico o descanso, pois continuamos a ser assassinados, estamos constantemente em estado de alerta, com a necessidade de nos protegermos, com a urgência de nos organizarmos e habituados à exaustão. No entanto, a utopia cumpre o papel de nos guiar e fazer-nos imaginar um lugar possível onde, por exemplo, aprendemos a desacelerar e a descobrir que não somos apenas corpos de trabalho. 


Uma utopia onde vivemos num lugar em que os povos africanos serão detentores da sua própria riqueza, onde os nossos espíritos poderão celebrar, onde nos sentaremos em roda para ouvir as histórias uns dos outros, onde conviveremos em harmonia com a natureza, onde seremos totalmente livres de qualquer exploração e onde existimos coletivamente.


Entretanto, sentada num pufe, enquanto oiço os registos áudio de entrevistas recolhidas por Julianknxx, em Lisboa - editados pela BANTUMEN, com uma ótima produção feita por Luzingo -, chega até mim a trabalhadora do museu, dizendo que tenho dez minutos para sair da Sala de Leitura, pois o espaço irá fechar. Amanhã é mais um dia de trabalho, mais um dia de luta e a utopia do descanso será guia para o nosso movimento.


Numa caminhada conjunta, um dia teremos direito ao descanso coletivo!

Relembramos-te que podes ouvir os nossos podcasts através da Apple Podcasts e Spotify e as entrevistas vídeo estão disponíveis no nosso canal de YouTube.

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