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É possível, ao intervir sobre a língua, alterar a realidade que esta descreve? Que língua falamos afinal? Que histórias e que História transporta a língua portuguesa? A língua é portuguesa? E as nossas línguas, o que dizem sobre nós? Este questionamento é o ponto de partida de Outra Língua, uma performance-conferência – em cena, até 12 de junho, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II – concebida a partir da experiência de falantes de português de diferentes países.
Criado por mulheres de Angola, Brasil e Portugal, o projeto evoca, em palco, a consciência de que uma boa parte do que somos depende dos nossos atravessamentos pelo conteúdo simbólico que nos precede, e que é através dele que configuramos, tanto as nossas visões do mundo, quanto as nossas possibilidades de compreender o que tem acontecido, e quem somos nós.
A ideia nasceu há cerca de dez anos, no Rio de Janeiro, quando a portuguesa Raquel André se mudou, em 2011, para aquele país e lá conheceu Keli Freitas. “Eu nunca tinha ouvido uma pessoa falar português de Portugal. A Raquel foi o primeiro exemplar humano que me trouxe essa novidade fascinante da diferença”, conta a dramaturga brasileira. “Ficava assim chateando a Raquel o dia inteiro, para ela me mostrar como a língua dela funcionava, como se ela tivesse um brinquedo que eu nunca tinha visto na vida”. Foi aí que começaram a idealizar a criação de uma peça sobre as suas línguas – “porque não é a mesma língua, mas também é.”
O projeto concretiza-se agora e muito mudou desde então. Não só ambas têm mais idade e experiência, como o momento social é outro. “A nossa geração está a viver questionamentos muito importantes. Políticos, de género, históricos. E este espetáculo foi-se tornando também a oportunidade de falarmos, através da língua portuguesa, de todas essas questões que nos são caras e que estão vivas, que não estão terminadas, não estão concluídas e que passam pela língua, antes de passar por qualquer outro lugar”, expõe Keli, autora do texto agora em cena.
Há dez anos, as artistas também não imaginavam que Keli se iria tornar imigrante em Portugal, conta Raquel, que vive novamente no país. Ambas acumulavam agora uma história de imigração, em sentidos opostos do globo, mas, quando o projeto arrancou, perceberam imediatamente que queriam ter outras pessoas com elas, “que pudessem trazer outras histórias, perspetivas e identidades, e que também tivessem histórias de migração através da língua.” Foi então que, explica a criadora portuguesa, convidaram Nádia Yracema e Tita Maravilha a juntarem-se a elas e a adicionarem camadas de complexidade à reflexão já iniciada. “Somos confrontadas com isto todos os dias, com este questionamento sobre a língua, e todos estes estudos que nos interessam, pós-coloniais, de descolonização do pensamento, descolonização do ser, descolonização do eu.”
Em palco, são “quatro mulheres que falam «portugueses»”, explica Tati, num espetáculo em que a estrutura vai variando. “Além de cenas coletivas, temos quase a ideia de que cada uma protagoniza um olhar dentro do espetáculo”, refere, acrescentando que as quatro criadoras e intérpretes de Outra Língua tiveram duas aulas com duas linguistas, durante o processo de criação desta performance.
Keli, Raquel, Nádia (ou Náná, como carinhosamente lhe chamam) e Tati são um grupo de mulheres, criadoras, linguistas, pensadoras e imigrantes de língua portuguesa.
Nádia nasceu em Angola, e o português foi das primeiras línguas com que teve contato. Era um idioma que tinha presença na região onde morava, em Malange, e que a circundava. Mas não era o único. Também o Kimbundu, que a mãe falava, o Tchokwé ou o Fiote eram línguas que faziam parte do seu dia a dia, que ouvia na rua ou em casa. “Depois faço um processo de migração, que me faz desaprender a língua e, mais tarde, volto a aprendê-la de uma outra forma, com uma outra idade.” Reencontrou-se com a língua não só em Angola, mas depois também em Portugal, onde notava que, “falando a mesma língua”, havia comunicação que se perdia. “Quando falava português, em Portugal, com um conjunto de palavras que se usa em Angola, as pessoas não percebiam. No entanto, estava a falar a mesma língua.”
Falamos todas a mesma língua? “Falamos e não falamos”, responde Nádia. “Tem que ver com História, com identidade, com pensamento, com posicionamento em relação ao mundo”, refere. “O que existe sempre – não só na língua, mas mesmo no nosso trabalho enquanto artistas – é essa vontade de querer comunicar alguma coisa e, para chegarmos a essa comunicação, vamos usar várias ferramentas.” A língua é uma delas.
Oficial em todos os países representados em cena, o português não é a “língua-mãe” de todas as performers, que com ele travam diferentes relações, fruto de diferentes cruzamentos. “É uma língua que se usa , mas, na minha casa, com as minhas tias, ou com as minhas avós, não. Nós falamos outra coisa”, diz Nádia. Para a criadora angolana, o facto de não conseguir falar fluentemente nem Kimbundu nem Fiote, apesar de perceber, sempre foi também uma questão, enquanto mulher negra a viver em Portugal e a falar português fluentemente. “Como é que eu faço esse resgate? Como é que eu trago as línguas para aquilo que é o meu trabalho? Como é que eu imprimo essa parte de mim?”, questionava. “Era muito importante, para mim, que isso, de alguma forma, passasse neste trabalho, nesta Outra Língua, que sou múltipla”, afirma. “O português é só um desses fios condutores. A língua da minha mãe é o Kimbundu, a língua do meu pai é o Fiote, e o português também está lá, então eu sou uma mistura disso tudo.”
Por ser o maior documento vivo da história de qualquer povo, uma língua tem de poder ser, sempre, uma nova língua. A língua é de quem a fala, e é por amor à língua que se deve acreditar nela, duvidar dela ou refazê-la.
“Uma das linguistas que nos orientou disse que a língua não é sobre a língua que aprendemos. A língua é sobre onde estamos”, conta Raquel, que viveu durante dez anos no Brasil. Quando lá chegou, cedo percebeu que havia palavras que não podia dizer, “porque as pessoas desatavam-se a rir, ou porque não entendiam de todo.” Era uma mulher branca europeia em território brasileiro, e isso impactou-a. “Foi quando percebi – ou ainda estou a perceber – uma série de coisas que nunca me foram apresentadas, nunca foram ensinadas na escola, na minha família, ou no meu núcleo de amigos. É no Brasil que o meu corpo e a minha noção disso tudo ganham outra dimensão, e aí começo a questionar-me se, de facto, falamos na mesma língua?”
Também nesse período, foi impelida a reconhecer o que a língua portuguesa – a sua língua mãe –, enquanto língua colonizadora, significa no corpo de outras pessoas e no contexto daquele país.
Já Tita, traz da infância, a ideia de que o português falado no Brasil “é errado”. Por isso, fala de uma emancipação. “Talvez possa dizer que falo outra língua, mas tudo depende do contexto. E do para quem. Porque o olhar do preconceito ainda está muito presente”, começa a atriz brasileira, relembrando que as línguas estruturam o pensamento. “O que estamos a falar não é sobre a língua e, sim, sobre as questões culturais que a envolvem e das subjetividades e densidades que estão ali impregnadas”. Avança, cintando Jota Mombaça (“A ferida colonial ainda sangra, ainda machuca”), e coloca a tónica em repensar o futuro. “Acho que o nosso lugar aqui realmente tem que ver com essa negociação do futuro, da língua e da linguagem.”
“Volta para a terra. Eu não entendo a tua língua, você não fala a minha língua.” Keli partilha as palavras de que foi alvo num episódio recente de xenofobia em Portugal. “Para este senhor, especificamente, é claro que tenho de fazer esta peça para dizer que falamos a mesma língua, sim, porque o meu país foi colonizado por Portugal. E 1 200 línguas indígenas desapareceram no processo de colonização”, argumenta. “Essa língua foi imposta ao povo que lá vivia. E nós somos esse povo hoje vivo.”
Noutros contextos artísticos, em que esse tipo de problema não é a questão, o foco está nos processos de transformação da língua. “Estamos interessadas no processo de como o português de Angola impregnou a língua da sua forma de vida, como o brasileiro e a brasileira impregnaram esta mesma língua”, clarifica. “Não é à toa que esta língua tem o mesmo nome, com tantas histórias diferentes.”
Depois de passar pelo Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, e pelo Teatro Viriato, em Viseu, Outra Língua, que estreou esta quinta-feira no Teatro D. Maria II, apresenta-se com uma equipa no feminino, em cima e fora do palco – uma decisão intencional, uma vez que o espetáculo é sobre “uma língua estruturalmente machista”. Raquel, que partilha a direção da performance-conferência com Keli, esclarece: “O género neutro é o masculino, e nós também queríamos falar sobre isso.” Outra das razões prende-se com o facto de a representatividade de mulheres encenadoras em Portugal ser baixa. “Queríamos também ocupar esse espaço, enquanto mulheres que encenam, desenham luz, fazem som para espetáculo”, afirma a criadora que acredita que este cenário possa estar a mudar na sua geração.
A peça é uma coprodução do TNDMII, com Teatro Viriato e O Espaço do Tempo, e conta com sessões de quarta a sábado, às 19h30, e domingos, às 16h30, sempre com interpretação em língua gestual portuguesa, audiodescrição e legendagem em português – até 12 de junho.
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